Rafael Crespo Machado — Intervenção federal no Rio de Janeiro

 

Michel Temer assina intervenção ao lado de Rodrigo Maia e Luiz Fernando Pezão (Foto: Beto Barata/PR)

 

 

Intervenção federal do Rio de Janeiro

 

Por Rafael Crespo Machado(*)

 

 

No decorrer da semana que acaba de findar, os chefes dos Executivos Federal e Estadual Fluminense e os responsáveis pela segurança pública nos respectivos âmbitos, certamente impressionados com as imagens de notória anomia na cidade do Rio de Janeiro e adjacências durante o carnaval, entenderam que a situação posta revela singular gravidade e que o remédio a ser ministrado deve ser igualmente drástico: intervenção federal.

A intervenção federal possui assento constitucional e rege-se por três princípios basilares: excepcionalidade, temporariedade e taxatividade.

À luz da excepcionalidade, afirma-se que a regra é a não-intervenção. Isto é, devem os entes federados exercerem sua autonomia em plenitude, dispondo, assim, de capacidade de autogoverno, autoadministração e autolegislação.

Neste contexto, a intervenção deve representar o último recurso a ser manejado, devendo ser, portanto, antecedida de medidas menos restritivas.

Ainda acerca das características, frisa-se a temporariedade da medida interventiva, que, de certa forma, é uma decorrência lógica da excepcionalidade e possui significado intuitivo, qual seja, sendo a intervenção recurso excepcional, deve esta ser mantida enquanto a excepcionalidade estiver presente, e não de forma perpétua.

Sendo medida extrema e temporária, a intervenção não materializa panaceia a qual os detentores do poder podem recorrer a qualquer momento ou ao seu bel-prazer. Assim, a medida interventiva só poderá ser decretada nas hipóteses taxativamente previstas no rol do artigo 34 da Constituição Federal.

Do geral para o particular, segundo publicado pela imprensa, o atual presidente da República respaldará o decreto de intervenção no artigo 34, inciso 3º, da Constituição, que estabelece: pôr termo a grave comprometimento da ordem pública.

Em primeiro lugar, cumpre ressaltar que o dispositivo constitucional invocado representa, de fato, uma das hipóteses em que o presidente pode atuar de ofício. Ou seja, independentemente de provocação pelo Legislativo ou pelo Judiciário.

Além disso, pontua-se que, ao contrário de constituições passadas, que condicionavam a decretação da intervenção à existência de guerra civil, o atual texto constitucional contenta-se com o grave comprometimento da ordem pública, o qual, segundo a literatura constitucionalista, estará presente quando a situação de descontrole for notória, incontestável e as autoridades estaduais demonstrarem incapacidade de reação diante da realidade subjacente.

Como ponto ainda digno de nota, assevera-se que, decretada a intervenção, deverá o Poder Legislativo tomar ciência de tal ato e exercer verdadeiro controle político sobre a medida interventiva, podendo concordar ou discordar da medida adotada. Em caso de discordância legislativa, deverá a intervenção cessar imediatamente, sob pena de configuração de crime de responsabilidade do presidente.

Assentados todos estes pontos, cabe ainda realizar dois questionamentos: pode a intervenção federal alcançar apenas uma determinada área de atuação do ente que sofre a intervenção, como a segurança? Seria constitucional a suspensão do decreto interventivo para a aprovação de uma emenda à Constituição?

Quanto à primeira indagação, a resposta, em minha opinião, é positiva. Considerando a excepcionalidade da medida e a regra hermenêutica de que quem pode o mais, pode o menos, não haveria óbice à intervenção delimitada a um determinado setor, visto que a intervenção poderia, em tese, alcançar todos os âmbitos de atuação do ente que sofre a medida interventiva.

Em relação ao segundo questionamento, não vejo campo para tal manobra por dois motivos. O artigo 60, parágrafo 1º, da Constituição impôs uma clara limitação circunstancial à modificação do seu texto, uma vez que vedou qualquer alteração durante a vigência da intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio. Não obstante a vedação expressa, conclui-se que a modificação da Constituição no decorrer de um período de intervenção federal, mesmo que suspenso por curto período de tempo, contraria todos os valores que informam a medida interventiva, bem como o contexto histórico-social que lhe confere respaldo, qual seja, verdadeira anormalidade institucional, que não desaparece em um passe de mágica.

 

(*)Advogado e professor da Faculdade de Direito de Campos

 

Publicado hoje (18) na Folha da Manhã

 

Guilherme Carvalhal — O ano em que não teve carnaval

 

 

 

Então, como se todo mundo houvesse combinado, os brasileiros decidiram que naquele ano ninguém pularia carnaval.

Nos dias de festa, todos se empenharam a trabalhar com afinco. Não se viu pelas ruas pessoas bêbadas, se beijando, urinando pelos cantos. Nenhum indício de briga ou qualquer violência foi registrado. O que aconteceu foi o amplo concentrar em suas tarefas, em uma dedicação única com suas atividades.

As madrugadas ganharam contornos pacíficos e silenciosos. As famílias dormiram cedo e pelos bairros apenas o barulho dos cachorros e do vento cortando os prédios foi ouvido. Nem os bares receberam movimento e as pousadas não tiveram hóspedes.

Ao invés de blocos nas avenidas, os antigos foliões saíram em protestos civilizados, cobrando saúde, segurança, educação. Todos levavam faixas com reivindicações. O Hino Nacional Brasileiro foi executado no lugar de músicas para balançar a bunda.

Aquele trabalho árduo de montar carros alegóricos e de construir fantasias se converteu em ampla ação social. Essas pessoas reformaram escolas, consertaram equipamentos hospitalares, pintaram sinalização no asfalto, construíram rampas para os cadeirantes. Uma nova espécie de sinergia incipiente se manifestou.

Na televisão, no horário da transmissão dos desfiles, a programação contou com conteúdo educativo. Foram transmitidos documentários debatendo política, economia, sociedade, tudo na intenção de aumentar a conscientização da população.

As rádios dedicaram seu horário a música mais sofisticada, sem abrir espaço para os típicos hits carnavalescos. Tocaram sinfonias, jazz, sonoridade de muitas décadas passadas.

As cidades turísticas substituíram os shows e os trio elétrico por teatro e apresentações artísticas. Os logradouros público contaram com peças de Shakespeare, de Sófocles, de Dias Gomes.

Na quarta-feira de Cinzas, todos concluíram que nenhuma alteração substancial de fato decorreria dessa decisão e sonharam avidamente com o retorno da folia no ano seguinte.

 

Ricardo André Vasconcelos — Garotinho tenta ressurreição no Facebook

 

Sobre o afastamento do prefeito Rafael Diniz, falta mais credibilidade a quem lidera o movimento do que motivos para a mobilização

Irresignado com o ostracismo imposto após sua estadia preventiva nas cadeias de Benfica e Bangu, o ex-governador Anthony Garotinho (sem partido) ocupa a mente baldia entre devaneios e conspirações. Alguém em seu juízo perfeito e réu em diversas ações judiciais usaria o tempo disponível para cuidar da própria defesa. Registre-se: Garotinho teve prisão preventiva decretada tanto na “Operação Chequinho” (que apura compra de votos em troca de cheque cidadão nas eleições de 2016) quanto na “Caixa D’água” (esquema ilícito de arrecadação de fundos para campanhas eleitorais). Em ambas foi solto por decisão do ministro Gilmar Mendes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas os processos prosseguem…

Com tanto a explicar na Justiça, sem programa de rádio, enxotado do próprio partido do qual era presidente estadual e, portanto, sem legenda para tentar uma eventual eleição em outubro, Garotinho tem se valido de entrevistas em rádios comunitárias e transmissões ao vivo pelo Facebook para destilar sandices contra adversários, como se fosse o mais puro dos mortais. Agora aventa um mirabolante movimento pelo impeachment do prefeito Rafael Diniz (PPS). Talvez ainda afetado pela estadia em celas inóspitas, tem cometido erros que não se perdoa em um político com sua experiência (no bom e mau sentido): pede votos para imaginária campanha de governador e ainda para os candidatos a deputado estadual que o apoiariam. Disse, literalmente: “faça o seguinte: não vote só em mim. Vote num deputado que está no meu lado. Porque olha só, o cara vai votar em mim e vai votar num deputado estadual contrário, sabe o que vai acontecer? Depois eu vou ter que gastar dinheiro para comprar esse deputado…” A entrevista rendeu duas investigações pela Procuradoria Eleitoral, uma por campanha antecipada e outra pela desastrada declaração.

Se isso não bastasse o ex-governador deu para aparecer no Facebook com uma pasta preta que guardaria, segundo ele, documentos que comprovariam atos de corrupção na atual administração da Prefeitura de Campos, liderada pelo prefeito Rafael Diniz que, em outubro de 2016, ganhou a eleição, no primeiro turno. O roteiro é detalhado. Primeiro as “denúncias” seriam levadas à Câmara Municipal — a petição já estaria até pronta — garante Garotinho; no mesmo dia as denúncias seriam protocoladas no Ministério Público Estadual e Federal, porque os “desvios” envolveriam verbas tanto do Estado quanto da União. Enquanto isso, segundo os planos, um abaixo-assinado pedindo o impeachment do prefeito seria passado nos bairros e distritos para culminar simbolicamente no dia 8 de março com um “grande ato na praça São Salvador” e a “documentação” da pasta preta finalmente seria revelada. O vídeo está disponível na internet.

É certo que a gestão conservadora do prefeito Rafael Diniz e a escassez de recursos nos cofres municipais abrem espaço para a manifestação garotista, que é típica da democracia e bem-vinda seja qualquer iniciativa que torne a administração pública mais transparente. Falta, no entanto, mais credibilidade a quem lidera o movimento do que motivos para a mobilização.

Prefeito eleito duas vezes e por mais dois mandatos de prefeito de fato, Garotinho sabe melhor do que ninguém como funciona a máquina da Prefeitura. Portanto, se houver algum desvio na atual administração ele deve conhecer o caminho e é lícito e justo que denuncie e que sejam apuradas as denúncias e punidos os culpados. Mas, por mais esforço que se faça para ver boa intenção por trás dessa iniciativa aparentemente cívica, a movimentação da combalida e desacreditada máquina garotista não passa de uma tentativa de sobrevivência política e alguma esperança de acordar a minguada militância para uma natimorta campanha eleitoral. Mobilizar insatisfeitos com o aumento na taxa de iluminação pública e de coleta de lixo, apesar de pesar no bolso, convenhamos, é pouco, muito pouco para indignar a população ao ponto de exigir o afastamento do prefeito eleito por 155 mil eleitores (55% dos votos válidos) e convocação de nova eleição. Depois de marcar e remarcar nova eleição para a prefeitura em 2017, desta vez, o ex-governador anunciou eleição suplementar municipal para dia 07 de outubro, coincidente com as eleições da presidente, governador e para o Congresso Nacional.

Enquanto aguarda as eleições nas quais o próprio ainda não tem nem partido pelo qual concorrer, Garotinho ainda tem de administrar o que restou de seu projeto de poder, muito bem definido pelo ex-aliado fiel, o deputado estadual Geraldo Pudim (MDB) numa entrevista para a Folha da Manhã no domingo dia 04 (aqui): “o pai, a mãe e os dois filhos”. Ora, se os dois filhos são candidatos à Câmara Federal (Wladimir com votos do interior e Clarissa com a Capital e Grande Rio), restaria ao chefe do clã só o Governo do Estado ou o Senado. Ou vai sacrificar os rebentos e impor-se como candidato a deputado federal numa eleição mais fácil, praticamente certa e que lhe garanta um palanque e holofotes por quatro anos? Em qualquer cenário as perspectivas não lhe são favoráveis: só lhe restaria algum partido nanico, com pouco tempo de rádio e TV; não tem máquina administrativa para extrair apoio financeiro e ainda padece de crise de credibilidade com os sucessivos processos judiciais e prisões e que estão longe, muito longe de acabar.

 

Orávio de Campos — Memória, história e esquecimento

 

 

 

Quinta-feira, dia 01 de fevereiro de 2018. Numa manhã de sol abrasador, na Pelinca comercial de hoje, de repente (nada mais que de repente), surge à nossa frente uma figura que há muito não via, demonstrando, no aspecto físico, assim como nós, as marcas imponderáveis do tempo. Embora a memória histórica (Jacques Le Goff) tivesse, num relance, o poder de plasmar o cenário antagônico de relações estremecidas, automatizamos a mão estendida, recusada com rancor e dedo acusador em riste.

— Esse aí disse a Churchill (Winston Churchill Rangel, teatrólogo e mulherófago amigo dos litigantes), que fui seu opressor e carcereiro durante a Revolução (referia-se ao Golpe de 1964). “Isso é uma grande mentira, pois nem delegado era (…)”, esbravejou. Após, olhando parentes circunstantes, alteou o canto para deixar sair alguma coisa em torno da ofensa: “Ficou velho e canalha (…). Diante do inusitado, olhando nos seus olhos, tranquilamente, rebatemos: “Que bom que você tenha esquecido, delegado”.

Saímos, de soslaio, para evitar maiores encrencas, do ringue das discussões. Mas, por dever do oficio de jornalista, precisamos reafirmar essas acontecências para não pairar dúvidas sobre os documentários a respeito dos “anos de chumbo”, durante os quais, como editor do jornal “A Cidade”, pudemos contribuir para embasar pesquisas científicas por parte de estudantes universitários ávidos de conhecer, pelo menos, parte do clima de perversidade instituída nas redações, após a edição do famigerado AI-5, em 1968.

Os anos posteriores ao ato do general Costa e Silva, com fulgor maior nos primeiros anos 70, durante os governos de Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979), a censura fora impiedosa e, nas redações, recebíamos “telegramas” do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e da Polícia Federal dizendo o que podíamos (ou não) publicar na edição do dia seguinte. Um acinte contra a liberdade de expressão. E foi o descumprimento de uma dessas normas que nos levou à cadeia antiga da Rua Barão de Miracema.

Numa manhã, quando preparávamos a pauta, fomos surpreendidos por dois policiais: José Madruga e João Batista Sá. Levado à delegacia nos deparamos com o policial José Roberto Vieira (irmão de pessoas preclaras, como Beth e Marilda Vieira, ambas ligadas à educação e à cultura). Com o poder instituído pelo AI-5, que lhe dava o direito (?) de prender sem culpa formada, o trêfego dito cujo recolheu nossos pertences, mandou retirar o cinto da calça e nos recolheu às masmorras do antigo prédio histórico.

Isso sem falar nas pressões psicológicas e morais, discursos autoritários e outras iniquidades contra os direitos humanos. Só à tarde do mesmo dia fomos libertados, após assinar um documento dizendo “que deveríamos cumprir as ordens da censura”, isso graças à expertise do saudoso doutor Jonas Lopes de Carvalho, advogado do jornal. O fato aconteceu, está registrado e se transformou em história. Como vítima nunca tivemos interesse em/de esquecer, mas, ao contrário, é natural que o delegado tenha se esquecido.

O ritual da censura daquela época poderia, por sua agudeza, ter inspirado a obra de Michel Foucault, “Vigiar e Punir” (1975). Depois, ninguém consegue, de sã consciência, trabalhar pelos princípios da democracia sem direito à opinião. Revendo o cenário simples desse acontecimento banal de nossa vida de repórter, olhando para múltiplas atrocidades praticadas pelos generais de plantão, não há dúvidas: somos sobreviventes, nós e o delegado, porquanto cada um cumpriu, em seu tempo, o que lhe era destinado pela profissão.

E tem razão o jornalista escritor Zuenir Ventura, em seu livro “1968 — O ano que não terminou”, ao afirmar que a ideologia da direita continua, com outras rotulações, a atuar na sociedade brasileira, a partir de outros ordenamentos sociais, políticos e econômicos. A anistia — geral e irrestrita — absolveu vítimas e algozes, mas não teve (e não tem) moral para apagar da memória os fatos (graves ou não) da forma como realmente aconteceram.

Ficaram feridas e cicatrizes. Memórias e esquecimentos: faces de uma mesma moeda. Mas, uma coisa é certa: o espirito do tempo (Edgard Morin) se encarrega de fazer sua justiça. Tanto é que reserva, com muita sapiência, para os arrogantes, prepotentes e desalmados o escaninho inferior da história. No qual inclui, também, os esquecidos…

Meio século depois, se não fosse Zuenir, não haveria lógica estarmos comentando essas animosidades construídas ao longo da vida. Os cabelos brancos, hoje, deveriam significar, pelo menos, respeito entre as pessoas. Todavia, as nossas (minhas) mãos continuam estendidas…

 

Igor Franco — Paolla Oliveira e o recalque

 

Os justiceiros sociais estão em polvorosa neste carnaval. Da prescrição sobre as fantasias permitidas para este carnaval ao manual de como realizar uma paquera, os progressistas já possuem material suficiente para escrever um novo Index Librorum Prohibitorum. Tal como as velhas freiras dos antigos internatos mediam o comprimento das saias das alunas, há sempre um bando de justiceiros sociais no corredor mais próximo munidos de suas réguas problematizadoras para avaliarem o que pode ou não ser feito/ vestido/ visto/ publicado/ curtido/ compartilhado.

Para seu azar, a atriz Paolla Oliveira foi a vítima da vez dos patrulheiros da consciência alheia. A beleza intensa da atriz só pode ser comparada à intensidade do recalque despertado após a publicação de uma foto fantasiada de índia. O furor das feministas de plantão neste Carnaval logo resultou em manchetes como “foto polêmica de Paolla Oliveira divide opiniões na internet”. Como observa o crítico cultural Alexandre Borges, toda vez que um justiceiro social menciona “divisão de opiniões”, pode acreditar que a única divisão existente é, de fato, a opinião dele versus a de qualquer outra pessoa normal. Exceto três ou quatro desocupados que incomodavam com mensagens repetidas, a esmagadora maioria dos mais de sete mil comentários da foto repetidos elogios como “linda”, “deslumbrante”. A desconexão com a realidade é traço marcante dos justiceiros sociais, que buscam moldar o mundo à sua visão — e não o contrário.

O que se tornou o progressismo nos dias de hoje — uma implacável perseguição às opiniões de quem ouse divergir do suposto consenso das almas mais elevadas da academia e da mídia — reflete um pouco a mistura louca que deu origem a esse fenômeno político-social.

Na formulação do psicólogo canadense Jordan Peterson, o progressismo é o resultado do pós-modernismo relativista com a dialética marxista salpicada de leitura foucaultiana do mundo, a partir de estruturas de poder e hierarquia. Em resumo: para o progressismo moderno, ao mesmo tempo em que é possível afirmar que não há superioridade moral da cultura ocidental (ou do “homem branco”) sobre a cultura indígena, é inegável o fato de que os indígenas foram oprimidos pelo homem branco e essa opressão permanece hoje embutida nas relações de poder estabelecidas na sociedade, sendo a “fantasia de índio” no Carnaval apenas uma das expressões dessa opressão continuada. Ao denunciar uma inocente foto do Instagram, o justiceiro social cumpriria, assim, sua missão de denunciar e fragilizar tais estruturas, contribuindo para uma rachadura a ponto de fraturar o atual sistema de poder, que ruiria, permitindo a construção de uma nova forma mais justa, que privilegiasse os antigos oprimidos.

Um observador mais atento poderia levantar uma série de questionamentos, do tipo “por que a nova estrutura seria mais justa, uma vez que o conceito de justiça precisa ter uma validade única e os relativistas discordam disso?” ou “sendo a sociedade construída sobre estruturas de poder e hierarquia, a mera inversão dos papéis não perpetuaria a lógica da opressão, desta vez com atores distintos?” ou, por fim, “sendo mulher, não seria Paolla Oliveira parte de uma minoria que deveria ser protegida e não denunciada?”. Esse tipo de contra-argumentação é pesada demais para os ouvidos dos justiceiros sociais. Convencidos que estão de sua infinita bondade em relação aos oprimidos, a racionalidade e a coerência por trás de seus atos são meros detalhes que podem ser esquecidos ou deixados de lado se a agenda de defesa das minorias puder ser cumprida.

Numa leitura menos sofisticada, segundo Mário Henrique Simonsen, um dos mais brilhantes pensadores brasileiros, por esse tipo de incoerência, “ninguém sabe o que significa (o progressismo) porque, na verdade, não significa coisa alguma além de um progressivo estado de tumulto mental”.

Eu, humildemente, ouso discordar de Simonsen e Peterson. A única leitura possível do progressismo pós-moderno é: uma reunião de gente insuportavelmente chata e ressentida, pronta para disparar sua metralhadora de frustrações sobre qualquer pessoa capaz de levar a vida como deseja — e não como eles desejam.

 

Em cartaz em Campos, filme sobre jornalismo é opção no Carnaval

 

Capa do Washington Post de 1º de julho de 1971

 

 

Por indicação da professora e escritora Carol Poesia, colaboradora do blog, assisti na noite de ontem (11) a “The Post — A Guerra Secreta”, de Steven Spielberg. Tem duas indicações ao Oscar: melhor filme e atriz (Meryl Streep). Como sempre, ela está muito bem na pele da proprietária do conceituado jornal Washington Post. Assim como um parceiro de Spielberg desde “O Resgate do Soldado Ryan” (1998): Tom Hanks, que agora interpreta o editor-geral do Post.

Apesar do começo um pouco arrastado, o filme engrena quando se apresenta seu drama real, no começo dos anos 1970: às vésperas de se abrir ao mercado de ações, na tentativa de se capitalizar, o Post deveria ou não publicar documentos secretos que provavam as mentiras contadas por cinco presidentes dos EUA sobre a Guerra do Vietnã (1955/75)? Isto depois do jornal ter sido “furado” pelo New York Times, seu tradicional concorrente, proibido por uma decisão judicial de seguir na cobertura do caso.

Quem já assistiu a “A Montanha dos Sete Abutres” (1951), sabe o quão difícil é fazer um filme sobre jornalismo depois do clássico definitivo do mestre Billy Wilder (1906/2002), que foi jornalista em sua Áustria natal, antes de se mudar para os EUA com a ascensão do nazismo. E quem não assistiu ainda precisa aprender muita coisa sobre jornalismo e cinema.

O jornalismo teve tratamento de primeira também em longas mais recentes, como “O Informante” (1999), de Michael Mann; “O Abutre” (2014), de Dan Gilroy; e “Spotlight: Segredos Revelados” (2015), de Thomas McCarthy, que levou o Oscar de melhor filme. Isso sem contar, é claro, com o nem tão recente assim “Todos os Homens do Presidente” (1976), de Alan J. Pakula. Mas essa é uma história que, mesmo filmada 41 anos antes, trata do final de “The Post” (e do governo Richard Nixon).

Mesmo para jornalistas que nunca passaram pela edição, o filme de Spielberg talvez seja o mais revelador das enormes pressões nos bastidores das decisões de (e sobre) uma redação de jornal. Cai com uma luva tanto ao tempo presente dos EUA, com um imbecil guindado a presidente pelo colégio eleitoral (não pelo voto popular) como Donald Trump, que já elegeu como “inimigos” os mesmos Washington Post e New York Times. E, como luva, também bate à face presente dos imbecis tupiniquins à direita e à esquerda, cujo eco das vozes pelas redes sociais demonstra pouca noção de ridículo na pretensão de “substituir” o jornalismo.

E mais não digo para, como alerta a persongem de Meryl Streep: “não pular o lead”. Para quem não gosta de Carnaval ou quer fazer um pit stop durante a folia, é uma excelente opção. Em versão legendada, desde a última quinta (08), está em cartaz em Campos no Shopping 28.

Confira o trailer do filme:

 

 

Aristides Soffiati — Drenagem urbana de Campos

 

 

 

“Riacho do Navio/ Corre pro Pajeú/ O rio Pajeú vai despejar/ No São Francisco/ O rio São Francisco vai bater no mei do mar…” A melodia ritmada de Luiz Gonzaga dá uma ideia simples do que é uma bacia hídrica. Na verdade, ela é mais complexa que isso. Uma bacia tem um rio principal com rios secundários, rios terciários e muitos outros. O rio principal desemboca numa lagoa ou no mar.

A Baixada Campista foi construída por dois sistemas hídricos. O principal é o do Paraíba do Sul. O segundo é… Fica difícil nomeá-lo porque não se trata de um rio apenas, mas sim de um complexo de rios e lagoas. No passado, eu daria a ele o nome do último rio – Iguaçu –, que saía da lagoa Feia e chegava ao mar. Hoje, vou denominá-lo de sistema Ururaí, por ser este rio bem conhecido. O primeiro integrante da bacia é o rio Imbé e todos os que desembocam nele. O Imbé desemboca na lagoa de Cima, assim como o Urubu, e escoa pelo Ururaí até a lagoa Feia, que hoje chega ao mar pelo construído canal da Flecha.

Os dois sistemas ou cruzavam lagoas ou tinham lagoas em suas margens ligadas a eles por canais naturais ou não. Entre os dois também existiam defluentes — rios que saem de outro, ao contrário do afluente — que nasciam no Paraíba do Sul e engrossavam o rio Iguaçu por conta da ligeira declividade da planície.

Na visão de uma geometria euclidiana, a baixada era um verdadeiro caos. Para um naturalista, era um caos maravilhoso pela complexidade e pela biodiversidade. Para aumentar áreas para a agropecuária, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) substituiu o rio Iguaçu pelo canal da Flecha e escavou canais retilíneos das lagoas para os dois sistemas hídricos. A finalidade era drenar as lagoas e aproveitar seu leito para atividades econômicas.

A cidade de Campos alastrou-se de forma desordenada sobre lavouras e pastos. Como as lagoas da planície são muito rasas, entendeu-se que não era necessário tamponar seus leitos vazios para a nivelação do terreno. Terra para isso só na margem esquerda do Paraíba do Sul, área de tabuleiros, que já se esgotam com a extração de terra. Para agravar mais a dificuldade de drenagem, os canais abertos para tanto se transformaram em valas de esgoto e depósito de lixo. Os moradores de Campos não sabem como os canais deixados pelo DNOS são importantes para uma planície aluvial. Assim, com uma chuva mais intensa, Campos alaga.

Já escrevi muito sobre esse assunto. Dessa vez, particularmente, quero tratar da drenagem urbana na borda da cidade onde ficam os bairros Parque São Lino, Parque Dr. Beda, Parque Rui Barbosa e Parque São Benedito, todos eles extensão do Parque Aurora. E a expansão continua numa área verde em direção ao canal de Tocos. Pelo visto, nenhuma providência será tomada para impedir o inchaço urbano. No passado, onde estão esses bairros, existiam muitas lagoas. Num mapa de 1954, Alberto Ribeiro Lamego ainda as registrou, nomeando as lagoas da Caraca e da Barata, assim como o brejo do Cachorangongo. A lagoa da Piabanha drenada ainda não foi alcançada pela cidade e tinha fundamental importância para a baixada.

 

Mapa desenhado por Alberto Ribeiro Lamego em 1954, mostrando a área com lagoas e brejos hoje ocupada pelo Parque Autora e outros bairros

 

Para drenar as lagoas nas terras para onde, futuramente, a cidade cresceria e daria lugar a novos bairros, sendo o Parque Aurora, o DNOS abriu o canal do Rosário. Segundo informação pessoal do Engenheiro Agrônomo José Carlos Mendonça, ele foi canalizado sob a rua Doutor Beda, ficando com um trecho aberto de aproximadamente 1,500 m. Ele desemboca no canal de Tocos que nasce no canal Campos-Macaé que desemboca na lagoa do Jacaré, que é associada à lagoa Feia. Portanto, de forma artificial, ele foi incorporado ao sistema Ururaí.

 

 

Canais ao sul da cidade de Campos

Tanto ele quanto o canal Santo Antônio, também afluente do canal de Tocos, contribuem para a drenagem urbana. Como todos os canais que cortam a cidade ou que a cidade abraçou, a visão da população sobre eles é bastante negativa. Por isso, eles recebem esgoto clandestino e lixo. Ficam entupidos por resíduos e por vegetação que cresce por conta dos nutrientes contidos no esgoto, pela lâmina d’água delgada e pela luz do sol. Quando chove, eles transbordam e geram reclamações dos moradores que os entupiram. Então, a prefeitura efetua uma limpeza superficial neles para tudo começar novamente na próxima estação chuvosa.

 

Entroncamento do canal de Tocos no canal Campos-Macaé. Estrutura abandonada e danificada, exigindo restauração e manutenção

 

Há quem reclame daqueles que criticam o governo municipal e não fazem proposições. Não sou desses. Proponho que o governo coloque em discussão o quanto antes a revisão do Plano Diretor de 2008 e a questão da macrodrenagem urbana. Existem um plano talvez defasado por nunca ter sido aplicado e um conselho específico para o assunto. A partir de então, voltemos a proceder a um diagnóstico dos canais no entorno de Campos e um plano de recuperação e proteção da rede. Se a questão não for tratada de forma estrutural, anualmente continuaremos a fazer intervenções paliativas.

 

Os evangélicos no país do Carnaval

 

Nada tenho contra os evangélicos. Teologicamente, acho muito interessantes alguns dos seus aspectos, como o estudo da Bíblia e a retomada de principíos do judaísmo do Velho Testamento. Ademais, quem já leu “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, de Mar Weber (1864/1920), é capaz de perceber a contribuição relevante que o elemento evangélico traz à essência católica brasileira, representado em figuras como o procurador da República Deltan Dallagnol, ou o juiz federal Marcelo Bretas.

Agora, noves fora o papo sério, não me leve a mal que hoje é Carnaval…