Cinema como Experiência: Algumas Reflexões
Por Carlos Valpassos(*)
Eu era um garoto, estudante da Escola Técnica Federal de Campos, quando, em meados dos anos 90, aproveitei da falta de um professor para ir ao cinema com alguns de meus colegas de classe. Caminhamos juntos até o Campos Shopping, onde funcionava o único cinema da cidade — que viria a fechar suas portas pouco tempo depois. Não consigo lembrar qual filme assistimos, mas lembro do caminho que percorremos e das brincadeiras pueris vivenciadas naquela tarde. Nosso grupo era variado: jovens de Nova Brasília, Lapa, Pecuária e também moradores de distritos como Sabonete e Poço Gordo. Naquela tarde “conquistamos” a cidade com o pretexto de assistir um filme: vagamos pelas ruas, observamos vitrines de lojas, pesquisamos a variação dos preços da pipoca para valorizar nossas moedas. Não apenas fomos ao cinema: flanamos e vivenciamos o centro da cidade, o que nos proporcionou aprendizados a partir de uma experiência difusa. Não lembro quem foi o professor que faltou; tampouco qual matéria ele lecionava. Lembro que naquela tarde a aula foi ir ao cinema com meus colegas.
Depois disso Campos passou alguns longos anos sem uma tela de projeções. Foi o apogeu das vídeo-locadoras. Isso me marcou, pois fixou em mim a experiência do que é viver em uma cidade sem cinemas — mesmo que nela seja possível ter acesso aos filmes. E a falta que essa instituição fez na cidade ficou evidenciada quando o cinema do Turf Centro abriu suas portas e passou mais de três meses exibindo o naufrágio do Titanic para salas lotadas. Não consigo recordar quantas vezes assisti Jack afundando enquanto Rose monopolizava um latifúndio flutuante, mas lembro que, embora já tivesse decorado, assim como meus colegas, várias das falas dos filmes, o cinema era algo que transcendia o filme projetado. Era um pretexto para sair de casa, encontrar pessoas e viver as experiências que apenas os encontros são capazes de proporcionar.
Se a cidade não tivesse ficado aqueles anos sem cinemas, talvez tais reflexões nunca tivessem me ocorrido. Acontece que essa experiência foi marcante e depois disso passei a entender o cinema como instituição que engloba questões para além da película apresentada. Não é que o filme não tenha importância — pois essa é uma questão crucial —, mas sim que ele não é a única nota da melodia: a instituição cinema é um arranjo complexo. Há inúmeras questões que engendram a experiência do cinema: você precisa se “arrumar” para ir ao cinema, deslocar-se, utilizar o sistema de transporte (público ou particular), expor-se ao espaço público, observar tudo aquilo que te cerca — no caminho e também dentro da própria sala. Desse modo, busquei ir a cinemas em todas as cidades que visitei como uma forma de conhece-las. Mesmo que não conseguisse acompanhar perfeitamente o que estava sendo dito pelos atores dos filmes, me interessava vivenciar cada cinema local.
Da última vez que fui ao Rio, fui ao cinema. Enquanto aguardava pela exibição do filme na Estação Botafogo, aproveitei para visitar uma livraria e um sebo. Foi a oportunidade de comprar um livro, de ver lançamentos e folhear algumas publicações. Alguém poderá objetar que estou falando da perspectiva de um intelectual de meia idade, mas não creio que a questão seja simples assim. Pois em nosso carnaval goytacá, aproveitei para ir ao cinema encontrar meu amigo Tom Hanks. Na saída, resolvi “flanar” pelo shopping e descobri a existência de funis de silicone. Algo trivial, que eu desconhecia, mas que poderia ser de grande utilidade para diversos fins. Ou seja, fui ao cinema encontrar Tom Hanks e Meryl Strep; de quebra, conheci um instrumento, fora da sala de projeções, que pode facilitar minha vida. Ir ao cinema é uma experiência de aprendizado para além do que é exibido; é uma experiência que começa antes mesmo de você sair de casa e que pode terminar muito depois do seu retorno, a partir da reflexão sobre aquilo que foi vivenciado – no filme, no caminho e nas ideias.
Escrevendo sobre os “rolezinhos”, aqueles “fenômenos rituais” onde jovens das periferias das grandes cidades brasileiras se reuniam para visitar os shoppings-centers no início desta década, a antropóloga Rosana Pinheiro Machado foi objetiva: “o ato de ir ao shopping é um ato político: porque esses jovens estão se apropriando de coisas e espaços que a sociedade lhes nega dia a dia”. Meu argumento é que o cinema se constitui enquanto experiência a partir de um conjunto de fatores e que, num país marcado por desigualdades e em uma cidade caracterizada pela segregação social como a nossa, o ato de ir ao cinema é um ato político.
Uma tela de projeção armada em uma região isolada pode até causar algum encanto, mas se o objetivo é proporcionar uma “Experiência” plena — como definiu John Dewey — para propósitos educacionais, é pouco. Pois os filmes estão disponíveis a partir de inúmeras mídias: tablets, smartphones, TVs e DVDs. Hoje, esses bens estão disponíveis. Acreditar que a exibição de um filme, em pleno século XXI, constitui-se como um evento transformador por si mesmo é um equívoco. Parte de um pressuposto colonialista e, de certo modo, dogmático, que acaba por reforçar a exclusão social e salientar a segregação.
Nesse sentido, influenciado por uma literatura antropológica e sociológica sobre cultura material, narrativas e experiências — Mary Douglas, Daniel Miller, Grant McCraken, Wilhelm Schapp, John Dewey etc —, acredito no potencial pedagógico do cinema enquanto arte política e politizada, capaz de proporcionar reflexões e ações sociais. E para que a experiência seja fecunda e não apenas mais uma pirotecnia em uma sociedade do espetáculo, as pessoas devem ir ao cinema; e não o contrário. Levar as pessoas ao cinema é um ato político contra a segregação.
(*) Antropólogo e professor da UFF-Campos
Ótimo texto! Cinema é magia, e tudo que envolve a ida ao cinema também!
Hermosa nota, participe de la travesia desde el paycarabí.. Quisiera contactarme con David. Soy antropólogo y estoy encarando una investigación sobre cooperstivas isleñaa. Podrían facilitarme un dato de contacto?