Basta navegar alguns minutos no oceano virtual brasileiro para verificar o quão certo estava o semiólogo, filósofo e escritor italiano Umberto Eco (1932/2016): “as redes sociais deram voz aos imbecis”. Mas em meio às ondas de acefalia política quebrando dos dois lados, podemos dar a sorte de achar também lucidez, como mensagem dentro de uma garrafa.
Foi o caso do texto do Guilherme Dal Sasso, jovem com formação de esquerda de quem nada mais sei, além da sensatez das suas palavras. Independente de discordâncias, é um diagnóstico honesto da febre de intolerância em que arde o país. E de como o quadro pode piorar, antes de melhorar. Publicado aqui, em sua linha do tempo, peço licença para republicar abaixo:
Por que não voto no Haddad
Por Guilherme Dal Sasso
Primeiro, porque o objetivo principal do PT nas eleições foi sempre manter sua hegemonia na esquerda, e não pensar um projeto interessante e viável ou formas de barrar o fascismo. Nesse sentido, foi extremamente irresponsável a insistência em Lula como candidato (enganando a população) e sobretudo a estratégia de isolar Ciro, neutralizando o PSB e fortalecendo um lulista no PSOL. Quem está realmente preocupado em barrar Bolsonaro já sabia há muitos meses que Lula não seria candidato e que as opções mais viáveis contra o fascista eram Ciro e Marina Silva. A prioridade sempre foi Lula, depois o partido e por último o país.
Segundo, porque a (falsa) polarização atingiu níveis intoleráveis, e ameaça cada vez mais se concretizar em violência física. Falo em falsa polarização porque não expressa os antagonismos de fundo da sociedade brasileira, como querem nos fazer pensar quando dizem que a polarização representa a “luta de classes”. Tanto o PT como qualquer centro-direita vai colocar um liberal na fazenda (Dilma com Levy, Lula com Meirelles, Haddad possivelmente com Lisboa), fechar com o agronegócio, etc. No entanto, a radicalização retórica aniquilou qualquer campo democrático de diálogo e sobretudo de capacidade de expressão de forças não alinhadas. Um segundo turno entre Haddad e Bolsonaro tornará a esquerda inteira mais cooptada do que nunca, sendo impossibilitada radicalmente de criticar um eventual governo petista, ao passo que a paranoia anticomunista deverá explodir de vez.
Terceiro, pela relação que a esquerda criou com o governo Dilma. Após o impeachment, incorporou-se o espírito combativo contra o retrocesso de Temer. Ok. Mas nunca se discutiu criticamente o governo e o legado de Dilma, que basicamente foi endividamento público, recessão, desemprego, concentração de renda e retrocesso socioambiental. O próprio Haddad acho que reconhece em boa medida isso, tendendo a ser responsável fiscalmente. No entanto seu conselheiro econômico, Marcio Pochman, insiste que as políticas econômicas de Dilma foram acertadas e que o caos todo começou com Temer. Dessa forma, existe o que o Haddad pensa, e que nós não sabemos ao certo, e existe o que o PT pensa e fala, e não sei o quanto são a mesma coisa. Eu votei na Dilma no segundo turno em 2014, e a última coisa que cogito é dar um cheque em branco de novo sob a chantagem do “menos pior”. O imperativo de defender a Dilma no impeachment impede até hoje que a esquerda realize um balanço sério e elabore alternativas àquele projeto que fracassou de forma retumbante.
Em quarto lugar, as alianças do partido hoje apontam que de fato o PT utilizou uma retórica de vítima do golpe para disciplinar a esquerda em torno de seu projeto em vez de se comportar como quem de fato sofreu um golpe. As alianças com os “golpistas” seguem naturalmente país afora, como se estivéssemos em 2014. Isso naturalmente reproduz o sistema político tal qual conhecemos e enfraquece as candidaturas de esquerda, renovando todas condições de possibilidade das crises que nos trouxeram ao abismo: radicalidade retórica e conciliação conservadora de fundo. Então não adianta choramingar e dizer “aff o PT não aprende”. O PT está fazendo aquilo que julga necessário para reproduzir sua hegemonia à esquerda e seu lugar no interior do sistema político brasileiro, incluindo a aliança programática com o MDB. Quem não aprende é quem acha que o PT não aprende.
Em suma, simpatizo pessoalmente com o Haddad, mas o projeto do PT é insistir numa radicalização retórica que está nos levando a níveis delirantes e apostar na pacificação por cima e conciliação de fundo do sistema político. Como disse de certa maneira o Silvio Pedrosa, Haddad pode até vencer Bolsonaro no segundo turno, mas renova e alimenta mais que ninguém as condições de possibilidade do bolsonarismo.
Mais um texto enorme da canhota… Mas vamos conseguir colocar esse país em Ordem e Progresso. !7 neles !
Caro Marcos Caldeira,
Sim, é um texto de um autor de esquerda. Mas de autocrítica. Virtude também muito escassa na direita.
Grato pela participção!
Aluysio