Ataques de ódio no caso Marielle/Padilha nivelam esquerda identitária ao bolsonarismo

 

Marielle Franco e José Padilha (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

No dia 18 de março de 2018, escrevi um artigo (confira aqui) sobre as mortes, quatro dias antes, do astrofísico inglês Stephen Hawking e da vereadora carioca Marielle Franco (Psol). O primeiro, sucumbiu a uma rara doença degenerativa, enquanto a segunda foi executada a tiros pela milícia carioca, sem que até hoje se saiba o porquê, nas ruas do Rio. E naquele texto ainda fresco da perda de ambos, projetei:

“Goste-se ou não, Marielle representou o que o governo Lula (PT), que instituiu o Prouni em 2005, teve de melhor na inclusão educacional e social do país. Por partidas, vias, destinos (e quebra-molas) distintos, é exemplo de superação que pode ser comparado ao de Hawking. Se a vida e a obra deste viraram filme — ‘A teoria de tudo’ (2014), de Steve Marsh —, as da ativista e vereadora carioca reúnem condições de também se tornar”.

Tudo correria conforme o script até a esquerda identitária alegar que o cineasta José Padilha, das populares séries “Tropa de Eite” para o cinema, e “O Mecanismo”, para a Netflix, não poderia dirigir uma outra série sobre a vida de Marielle. E por quê? Porque, segundo o neopentecostalismo politicamente correto, Padilha é branco e… “fascista”. Quem não aprendeu nada com a banalização do termo que ajudou a eleger Jair Bolsonaro presidente em 2018, parece disposto a reelegê-lo em 2022. Com base na mesma pregação de ódio de quem diz se opor, enquanto se retroalimentam.

 

Quentin Tarantino e Spike Lee (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Política ao largo e para ficar só no cinema, a resposta que essa gente do politicamente correto merece, foi dada há mais de 20 anos pelo cineasta ítalo-americano Quentin Tarantino ao seu colega afro-americano Spike Lee. Em 1998, após filmar “Jackie Brown” no estilo blaxpoitation, do cinema negro independente dos EUA nos anos 1970, Tarantino foi acusado por Sipke de “apropriação cultural”.

Ao que Tarantino, fiel ao seu estilo próprio e inconfundível, respondeu à época: “Tenho muito respeito por Spike e seu cinema. Mas quer dizer que ele pode, por que é negro? E eu não posso, por que sou branco? Ele que suba num banquinho e beije a minha bunda”.

Em inglês, a expressão “kiss my ass” não tem nenhuma conotação sexual. É só pejorativa.

No mais, cabe a leitura ao artigo escrito por Padilha em resposta à turminha lacradora que o ataca. Com a abertura do Marcos Cavalcanti, professor da UFRJ:

 

Marcos Cavalcanti, professor da UFRJ

Nosso inimigo é o ódio: as patrulhas atacam novamente

Por Marcos Cavalcanti

 

O cineasta José Padilha e Antonia Pelegrino estão sendo atacados porque vão fazer uma série sobre Marielle e segundo as patrulhas ideológicas e raciais eles “não são negros” e Padilha é “fascista”.

A resposta do Padilha é irretocável, mas eu acrescentaria que o pior legado destes últimos anos de governos do PT e agora de Bolsonaro é o culto ao ódio e à visão binária segundo a qual o mundo se divide entre “nós” e “eles”. A patrulha que chama Padilha de fascista e argumenta, segundo a lógica do “lugar de fala”, que um cineasta branco não pode fazer um filme sobre uma negra é o reverso da medalha de quem quer proibir filmes de gays e censurar exposições de arte.

Ambos se alimentam do ódio ao diferente, aos que pensam fora da sua cartilha e são os grandes inimigos da democracia. Não podemos nos iludir mais: a censura e o patrulhamento “de esquerda” não é melhor ou mais aceitável que a censura e o patrulhamento “de direita”.

Precisamos derrotar ambos.

Segue o texto do Padilha:

 

Dois maiores lídreres da defesa dos direitos dos negros nos EUA dos anos 1960, Martin Luther King e Malcom X, depois que este renunicou ao caminho do ódio. Um foi assassinado pelo ódio dos brancos. O outro, pelo ódio dos próprios negros.

 

 

José Padilha, cineasta

Linchamento Moral

Por José Padinha

 

No dia 13 de abril de 1964, Malcolm X iniciou sua jornada espiritual ao Oriente Médio. Na Arábia Saudita, presenciou a confluência de pessoas de várias raças no entorno de Meca. Voltou mudado aos Estados Unidos. Anunciou que seu inimigo não era o homem branco, era o ódio.

Malcolm X dormia com sua esposa e seus filhos quando duas bombas incendiarias foram lançadas dentro de sua casa. Acordou em meio a fumaça, correu, ajudou a esposa a resgatar duas filhas e um bebê. Conseguiu escapar. Uma semana depois, levou um tiro de 12 no peito. Seus assassinos, também negros, provaram sua tese: o inimigo não era o homem branco, o inimigo era o ódio.

Conheci Marielle Franco no mesmo dia em que conheci Marcelo Freixo. Foi no Cine Odeon, em um debate ancorado na projeção de “Ônibus 174”, meu primeiro filme. Participamos de outros debates. Tenho alguns deles filmados. Freixo e Marielle nuca me chamaram de fascista. Pelo contrário, me ajudaram na pesquisa e na pré-produção do “Tropa 2”.

Freixo me deu acesso à CPI das milícias, que frequentei regularmente. Com o sucesso do “Tropa 2”, ficou ainda mais popular. Merecido. Senti a importância do gabinete de Freixo e aportei recursos na campanha do Psol. Nunca escrevi sobre isso. Não gosto de me explicar. Mas tomem nota por favor.

Saí do país alguns meses depois, porque fui vítima de uma tentativa de sequestro por parte de policiais milicianos. Mesmo morando fora, Antonia Pellegrino me procurou. Queria ajudar as pessoas mais próximas de Marielle e de Anderson. Queria fazer uma série de TV. Queria levar o nome de Marielle aos quatro cantos da terra. Julgava que, com meu nome no projeto, a série teria mais chance de obter distribuição internacional. E a família teria mais recursos. Aceitei na hora. Negociei por meses. Estava fechando um acordo internacional quando a Globoplay se interessou pelo projeto.

Não é difícil perceber porque a Globoplay é o melhor parceiro. No Brasil, a Globo tem alcance infinitamente maior do que qualquer estúdio estrangeiro. Tem ótimo elenco de atores negros. Tem ótimos diretores negros. Tem ótimas escritoras negras. Tem ótima equipe técnica negra. Sim, pensamos em tudo isso. Vocês não me conhecem, mas conhecem a Antonia. Além disso, uma série na Globo pressionaria as autoridades a encontrar e a punir quem matou Marielle.

Cheguei ao Brasil para assinar contrato. O meu trabalho seria ajudar na montagem do “writers room”, escrever um roteiro em parceira com a Antonia e dirigir o primeiro de, no mínimo, oito episódios. Além disso, queria ajudar Antonia, a Globoplay e o Instituto Marielle Franco a treinar novos talentos, usando a série como uma espécie de escola.

Não consegui nem começar.

O que aconteceu no dia seguinte ao da assinatura do contrato foi estarrecedor. Além de acusarem Antonia de racismo — apesar de a Antonia estar trabalhando com afinco para montar um equipe representativa da comunidade negra no Brasil e no exterior — e de me taxarem de fascista (Marielle nunca me chamou de fascista), atacaram a legitimidade da família de Marielle, atacaram a Mônica e atacaram Marcelo Freixo.

Foi um linchamento moral sem direito a respostas ou tempo para explicações. Os linchadores reduziram tudo à cor da minha pele, como se eu fosse fazer o projeto sozinho, como se não fôssemos contar a história de Anderson, um homem branco, como se não fôssemos montar uma equipe repleta de realizadores negros. Linchamentos sumários são compatíveis com os valores de Marielle?

Eu tenho um sonho. Eu sonho que meus filhos um dia viverão em uma nação em que as pessoas não serão julgadas pela cor de sua pele, mas sim pela natureza de seu caráter. Quem disse isso foi Martin Luther King. Sobre o meu caráter: nunca roubei ninguém, nunca cometi ato de racismo, nunca pressionei mulheres, nunca discriminei qualquer pessoa por sua opção sexual. Na minha vida, só fui processado por policiais do Bope e por milicianos.

No entanto, me tornei fascista porque filmei “Tropa de Elite”. Isso apesar de ter recebido o Urso de Ouro das mãos de Costa Gravas, ícone do cinema de esquerda, e de tê-lo entregue ao Lula, que queria fazer uma foto com ele. Nenhum dos dois me chamou de fascista.

Fiz vários outros filmes, incluindo “Garapa”, um documentário sobre a fome no Nordeste. Ajudo as famílias filmadas mensalmente, faz 12 anos. O primeiro documentário que produzi foi sobre carvoeiros. Retratou trabalho insalubre, escravidão e trabalho infantil. Na época, depois de uma exibição do filme no Congresso, eu, Eduardo Suplicy e Luciana Genro invadimos a sala de Michel Temer para pressioná-lo a colocar em pauta uma emenda constitucional que tornaria a alimentação um direito fundamental de todos os brasileiros. Conseguimos.

Posso continuar listando inúmeros fatos dessa natureza, mas acho que, no fundo, vocês já conhecem a minha trajetória de cineasta. E acho que o maior problema de vocês comigo foi a minha critica à corrupção sistêmica do PT e do PMDB. Embora eu também ache que vocês saibam que o petrolão, o mensalão e Belo Monte aconteceram de fato.

Talvez não saibam, entretanto, que não vivo sozinho. Tenho um filho e uma companheira. Será que estas pessoas estão sendo afetadas pelo linchamento em decurso? O mesmo vale, evidentemente, para as pessoas próximas de Marielle, de Antonia e de Mônica.

O pensamento de Martin Luther King é incompatível com a limitação da liberdade de expressão, com o julgamento de pessoas com base na sua cor e na sua sexualidade. A política de identidade é fundamental, mas levada ao extremo fulmina gente como Malcolm X. (Não, não estou me comparando com Malcolm X.)

O inimigo, amigos, é o ódio.

 

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Este post tem um comentário

  1. Amauri Mendes Pereira

    José Padilha, assim como Marcos Cavalcanti têm a prerrogativa da razão. Aprendemos assim: “quem sabe, sabe”!!! Vamos precisar desaprender e reaprender.
    Penso que os Movimentos Sociais, vistos nos textos como IDENTITÁRIOS tem a vantagem (se quiserem) de saber disso.
    O MOVIMENTO Negro se tornou IDENTITÁRIO devido ao identitarismo branco, que tem séculos.
    Mas reaprenderemos.
    Se estivermos todxs juntxs será mais fácil e melhor.

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