No mundo sem boteco, Covid, Bolsonaro, Gilmar, Exército e futuro de Campos

 

 

“Saturno devora um filho”, óleo sobre tela de Peter Paul Rubens, 1636/1638, Museu do Prado (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

— E a tal da Covid-19? — abriu os trabalhos Adriano, enquanto tomava o primeiro gole de cerveja na visita à casa do amigo.

— Sem botequim aberto, é o pior dos mundos! — resumiu Aníbal, sem nenhum traço de ironia na voz ou expressão facial.

— Ainda não tinha parado para pensar nisso.

— Mesmo em países islâmicos teocráticos, onde o álcool é proibido, há bares para turistas, nem que seja nos hotéis. Essa pandemia é pior que fundamentalismo religioso. Clássico dos anos 80, em “Platoon”, o protagonista de Charlie Sheen diz ao final do filme: “O inferno é a impossibilidade da razão”. É com isso que um mundo sem boteco se parece: com o inferno!

— Se o inferno é a impossibilidade da razão, o que dizer desse governo Bolsonaro?

— Aí é o que Polônio, conselheiro do rei, diz sobre Hamlet: “Parece loucura, mas há método”.

— Método no genocídio, como Gilmar Mendes acusou o Exército Brasileiro de estar se associando?

— Polônio queria dizer o seguinte: se havia método na simulação da loucura do seu genro Hamlet, é porque não era loucura. Pode haver método no genocídio. Quer prova maior que a linha de montagem da Alemanha nazista na II Guerra, para exterminar gente em câmaras de gás e queimar seus corpos em fornos, em escala industrial?

— E como o Exército se associa a uma loucura dessas? Ter um general da ativa como Pazuello, sem a menor experiência em Saúde Pública, dois meses à frente do ministério da Saúde, na maior pandemia dos últimos 100 anos? Que já produziu mais de 76 mil mortes no Brasil?

— Já soma três vezes mais mortos que a Guerra de Canudos, maior guerra civil brasileira. No genocídio promovido pelo Exército contra os seus próprios civis no sertão da Bahia.

 

Mulheres e crianças sobreviventes de Canudos, com os soldados do Exército Brasileiro ao fundo, no sertão da Bahia de 1897 (Foto: Flávio de Barros)

 

— Logo com Prudente de Moraes, primeiro civil que tivemos como presidente da República.

— Naquele final do século 19, foi o genocídio do positivismo de Comte e Benjamin Constant, quando o Exército produzia a intelectualidade brasileira. Era o “Ordem e Progresso” da nossa bandeira. Com o qual o ex-militar Euclides da Cunha rompeu ao dar seu testemunho da Guerra de Canudos em “Os Sertões”. E sabe o que é mais irônico?

— Ainda não sei. Mas acho que agora vou saber. Não dá é para ter orgulho da própria ignorância, como os bolsonaristas.

— Não sei o que é pior. Orgulhar-se da ignorância ou posar de intelectual e embarcar no mesmo negacionismo, como fizeram e fazem os lulopetistas. Antes deles, a ironia é que o positivismo se anunciava pela prevalência dos fatos científicos sobre a religião e a superstição. Mais de 100 anos depois, o Exército e sua tradição positivista se associaram a um governo eleito na promiscuidade entre religião e política, com o anticomunismo como superstição em torno de um “mito”. Que o mundo condena pela negação dos fatos científicos.

— Foi a ferida em que Gilmar colocou o dedo. Por isso provocou tanta reação das Forças Armadas. Até da Marinha e da Aeronáutica, que nem foram citadas. Citação boa foi a de Mandetta: “É como colocar médicos para comandar uma guerra. Ou como tirar os jogadores da Seleção e escalar 11 coronéis numa Copa do Mundo. O Brasil não vai tomar outro 7 a 1, vai tomar de 20”.

— A leitura dos atos e falas de Gilmar varia de acordo com o gosto político do intérprete. Foi inimigo público nº 1 do PT, quando impediu que Dilma nomeasse Lula ministro, para ganhar foro privilegiado e fugir da Lava Jato. Depois virou aliado, quando Lula foi condenado em segunda instância e preso. E o ministro passou a defender que a prisão só se desse após o transitado em julgado. O que eu penso de Gilmar é impublicável. Mas, na trincheira em que o STF se transformou contra o autoritarismo, ele é a prova de que as instituições e sua defesa podem ser muito maiores que os eventuais “homens honrados” que as compõem.

— Homens honrados?

 

“A morte de Júlio César”, óleo sobre tela de Vicenzo Camuccini, 1804/1805 (Foto: Reprodução)

 

— Aí é outra tragédia de Shakespeare, “Júlio César”. O discurso depois que ele morre esfaqueado no Senado de Roma. Inclusive por Brutus, que tratava como filho. E Marco Antônio, sobre o corpo ensanguentado de César, fala ao povo: “Quando os pobres sofriam, César chorava. Ora, a ambição torna as pessoas duras e sem compaixão. Entretanto, Brutus diz que César era ambicioso. E Brutus é um homem honrado”.

— Se é para comparar Gilmar com Marco Antônio, quem seria Cleópatra?

— A comparação é com Brutus. E Gilmar está mais para seu sósia João Plenário, de “A Praça é Nosssa”, que para Shakespeare. Ou, na obra deste, menos para Cleópatra que Lady MacBeth. Pode ser para bravatear um “Supremo voltando a ser Supremo”, ao livrar Zé Dirceu da cana dura. Mas pode ser também para tombar a lona verde-oliva e fazer o Exército se tocar da tremenda furada em que se meteu.

“Saturno”, óleo sobre parede de Francisco de Goya y Lucientes, 1820/1823, Museu do Prado (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

— E o que você acha que vai ser da pandemia?

— No Brasil, não chegamos ao dilema shakespeariano de ter que escolher qual doente vai viver ou morrer, por falta de leito de UTI e respirador. Como foi no Irã, na Itália, na Espanha ou em Nova York. Salvo, talvez, em Manaus e Belém, nosso sistema de saúde não colapsou. E, complexo de vira-latas à parte, serviu para provar como o SUS, com todas as suas mazelas, é um grande avanço da Constituição de 1988 sobre países do primeiro mundo.

— E Campos?

— Também não colapsou. Pelo menos até agora. E muito graças ao CCC, que o governo Rafael inaugurou na Beneficência. Ironicamente, após uma médica bolsonarista aloprada divulgar áudios alarmistas com fake news sobre a doença.

— Verdade. Deve ter confundido cirurgia estética de vagina para dondoca com Saúde Pública. Mas sabe qual é a outra grande ironia dessa história toda?

— “Ainda não sei. Mas acho que agora vou saber”… — ironizou, desta vez, Aníbal.

— É o que Rafael, Caio, Wladimir, ou qualquer outro candidato a prefeito eleito em novembro vai enfrentar. Na crise econômica que já era grande e vai piorar muito antes de melhorar, no efeito colateral da pandemia, administrar a máquina pública de Campos, inchada na época das vacas gordas dos royalties, será escolher entre qual paciente fica vivo e qual vai morrer. Inclusive na categoria médica, heroica no enfrentamento da Covid e que não tem quase ninguém fora do serviço público municipal, será a mesma história de sempre: farinha pouca, meu pirão primeiro! — profetizou Adriano, sentindo a cerveja descer mais amarga à garganta.

 

Publicado hoje (18) na Folha da Manhã

 

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Este post tem um comentário

  1. Marta Tomaz

    Reabertura de shoppings em Campos é preocupante, diz Sindicato dos Médicos
    Médico explica porque a prefeitura não poderia ter autorizado a reabertura e os riscos para os campistas

    A decisão do prefeito Rafael Diniz (Cidadania) em autorizar a reabertura dos shoppings centers e galerias em Campos, a partir desta segunda-feira (20), foi precoce na opinião do presidente do Sindicato dos Médicos de Campos, porque o município e Macaé estão entre as cidades que mais preocupam no interior do Estado pelo nível de infecção e por não fazerem testagem em massa, além da capacidade hospitalar estar no limite.

    O presidente do Sindicato dos Médicos de Campos, José Roberto Crespo, demonstrou preocupação com a medida. “Vejo com muita preocupação, já que os índices de infecções com continuam altos no município, assim como o número diário de mortes continua também elevado. O nível de contágio se espalha agora pelo interior, e o Norte Fluminense está na linha de preocupação, com Campos e Macaé aparecendo com destaque negativo nessas estatísticas”, avaliou.

    “Eu compreendo a situação da economia, dos negócios e do comércio, que tem amargado sérios prejuízos, mas me preocupa esse avanço do contágio, que não para de crescer, enquanto os leitos se encontram todos ocupados. Nossa estrutura hospitalar está no limite. Não temos o hospital de campanha, não fazemos testagem em massa, então o cenário fica mais preocupante”.

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