Criticado pela péssima condução da pandemia da Covid-19 no país e por suas ligações perigosas com Fabrício Queiroz, seu amigo de longa data, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fez dos limões uma limonada. Por conta do auxílio emergencial de R$ 600 à população de baixa renda, que perdeu sua subsistência no isolamento social, o capitão hoje goza da maior popularidade desde que assumiu a presidência da República. Segundo o Datafolha, instituto de pesquisas antes atacado e hoje celebrado pelos bolsonaristas, o “mito” destes tem seu governo hoje avaliado como bom ou ótimo por 37% dos brasileiros.
Por outro lado, para evitar as perguntas sem resposta sobre Queiroz, desde que este foi preso, seu amigo passou a evitar o cercadinho do Alvorada. E, calado, sem criar uma nova crise a cada declaração polêmica, diminuiu também sua rejeição. Este bom momento do presidente, que o afasta da ameaça de impeachment, vai durar até 2022? Pode ainda melhorar? Para tentar responder estas e outras perguntas, este painel ouviu, em ordem alfabética, o historiador Arthur Soffiati, professor da UFF-Campos; o colunista da Folha Murillo Dieguez, especialista em pesquisas; e o sociólogo Roberto Dutra, professor da Uenf. O primeiro foi crítico: “o rei está nu por baixo de um roupão roto”. Murillo ressalvou que “a única coisa certa é a incerteza”. Já Roberto, mesmo sendo de esquerda, apostou: Bolsonaro “é cada vez mais favorito para se reeleger em 2022”.
Folha da Manhã – Como 37% de bom e ótimo na última pesquisa Datafolha (confira aqui) realizada nos últimos dias 11 e 12, e divulgada no dia 14, Jair Bolsonaro (sem partido) atingiu a maior aprovação popular do seu governo, com 37% de bom e ótimo. Credita isso ao auxílio-emergencial, ao sumiço do presidente do cercadinho do Alvorada após a prisão de Queiroz, ou a algum outro fator?
Arthur Soffiati – Um só fator não basta para explicar. Considero fundamental sua mudança de atitude. De incendiário, ele passou a vulcão adormecido. Digo isso porque ele pode entrar em erupção novamente. Credito a mudança primeiramente ao desejo de se reeleger. Os conselheiros são importantes. O caso Queiroz deu uma esfriada nele. Suspeito de algo mais profundo que pode comprometê-lo e à sua família. Melhor um comportamento mais moderado para esfriar o ataque adversário. Melhor deixar os apoiadores fanáticos meio órfãos por enquanto. Melhor investir no auxílio emergencial.
Murillo Dieguez – Entendo que foi um pouco de tudo: cercadinho, auxílio emergencial, fuga às respostas constrangedoras sobre Queiroz, segurada nas colocações ácidas nas redes sociais e um dado pouco percebido: o ataque implacável da mídia, que parece que tem mais o ajudado do que prejudicado. Tendemos, por natureza, a ser solidários com quem apanha muito, principalmente se o ataque sugere perseguição. Outra questão é um pressuposto clássico em avaliações de pesquisa: o efeito teflon. Quando a panela é nova, o ovo não gruda. Arranha um pouco a panela, continua não grudando, até começar a grudar.
Roberto Dutra – Acredito que estes dois fatores explicam boa parte do aumento da popularidade de Bolsonaro. O auxílio emergencial demarca uma mudança de orientação, cuja continuidade é incerta. O benefício tem um impacto positivo inegável. O sumiço do presidente do cercadinho do Alvorada reforça essa mudança. O que se delineia é um arrefecimento da guerra cultural e a mudança do eixo do governo para a entrega de resultados econômicos e sociais. Mas o presidente também vem ganhando a batalha da comunicação. Bolsonaro sabe fazer política, embora com um modus operandi diferente de todos os outros presidentes.
Folha – O governo mandou a proposta de auxílio emergencial de R$ 200, que o Congresso elevou a R$ 500 e o presidente, para ter a palavra final, subiu a R$ 600. Bolsonaro airou no que viu e acertou no que não viu? Roubou o antigo eleitor petista do Bolsa Família, sobretudo no Nordeste, que não votou no capitão em 2018? Como mantê-lo até 2022?
Arthur – Ele não é um bom estrategista, embora militar. Mas não creio que atirou no que viu e acertou no que não viu. Ele está ouvindo mais os conselheiros. O auxílio emergencial não parece estratégia dele, mas aceita por ele por alguém mais experiente em política. Se ele tem estratégia, esta é a reeleição. As táticas parecem vir dos experientes. Convém tirar voto do PT em território inimigo. Essa é uma tática meio estranha para ele, acostumado ao confronto. Creio em outros por trás dele.
Murillo – Não considerar que ele é intuitivo é desconsiderar sua trajetória. Tudo indica que tem uma estratégia coordenando suas ações. Se é por ter aumentado para R$ 600, o fato de ter “roubado” o discurso da Câmara, não sei, embora seja provável. Mas é pacífico que o auxílio emergencial está na sua conta. E é uma bomba atômica para elevar a popularidade de qualquer político. Aumentou consideravelmente o poder de compra. Esse eleitor é pragmático e muda à medida das voltas que a vida dá. Quanto a 2022, tem muita água para passar debaixo da ponte.
Roberto – Não subestimo a capacidade política de Bolsonaro. Acho isso um erro infantil. Acredito que ele sempre soube que política de transferência de renda seria um trunfo para o eleitorado pobre e, no contexto atual, de classe média. Na campanha ele falou em um “13º” do Bolsa Família. Com a pandemia, foi forçado a isso e transformou constrangimento em oportunidade. O aumento de popularidade entre os mais pobres indica o acerto. Mas não se pode dizer que ele roubou o eleitor petista do Bolsa Família. Isso ainda não está consolidado. Sem emprego e salário, quais parcelas da população continuarão leais ao presidente?
Folha – Desde sua fundamentação por Bismarck no século 19, o conceito da realpolitik é analisado na academia. Sua tradução real não é esse eleitor do Bolsa Família, que migrou ao auxílio emergencial? Como é o Centrão, ao qual Bolsonaro sempre pertenceu como deputado e agora, como presidente, cooptou para impedir o impeachment e isolar Rodrigo Maia no Congresso?
Arthur – Quem nasceu para Recruta Zero nunca chega a Bismarck. Bolsonaro disse que o negócio dele é matar, não salvar. Não creio que seja ele a buscar espontaneamente o apoio do Centrão, mas deste convidá-lo a votar para a casa de onde saiu e onde foi sempre um morador obscuro. É como se o Centrão dissesse: “Capitão, cala a boca e deixa que nós cuidamos”. Depois, a gente manda a conta. Ele urrou muito, mas agora está rouco.
Murillo – Em relação aos beneficiários do “Bolsa Capitão”, estão raciocinando com o estômago. Embora pragmáticos, estão longe do conceito estrito da realpolitik. Já o Centrão o pratica com muita competência. Por mais que digam que Bolsonaro joga para 2022, vejo suas mudanças de comportamento com o monstro do impeachment assustando sua cadeira. Tinha que estancar a queda. Com 37% de bom e ótimo todos vão enfiar a viola no saco. Quanto a isolar o Rodrigo Maia, tudo que o presidente não perdoa é que o contrariem e não o obedeçam cegamente. A história está aí, cheia de exemplos. Vide Moro, Mandetta e outros.
Roberto – O Centrão apostou na capacidade do presidente de reorientar seu governo para a entrega de resultados econômicos e sociais e para o arrefecimento da guerra cultural. A saída de Sérgio Moro facilitou a reaproximação com o Congresso. A realpolitik dessa reaproximação é a mesma do auxílio emergencial. Bolsonaro percebeu que o auge da guerra cultural passou. E que escalar o confronto antissistema não o levaria a bom termo. Com o afastamento do risco de impeachment, a questão é se essa reaproximação com o Congresso dura até 2022. O mesmo vale à aproximação com o eleitorado mais popular que votou no PT em 2018.
Folha – Ao tomar gosto pelo assistencialismo, Bolsonaro abandona a pauta liberal que usou para se eleger em 2018? O gasto público não é realmente o mais apropriado em tempo de crise, como preconizava Keynes? Se mantido após a pandemia, por que esse resgate nacional-desenvolvimentista não redundaria mais uma vez na grave recessão das “ressacas” do “Milagre Econômico” da ditadura militar, ou da “Nova Matriz Econômica” de Dilma?
Arthur – De fato, nota-se que Bolsonaro está se afastando da pauta liberal de Paulo Guedes, mas não está caminhando na direção de Keynes, economista que sabia muito bem a importância do investimento público para salvar o capitalismo do nazifascismo e do comunismo, além de conquistar o apoio popular. O descuido com a pauta neoliberal de Guedes parece patente, mas não é estratégica e, sim, tática. Essa postura pode levar o país à bancarrota numa perspectiva de médio prazo. Mas, para fins eleitorais em curto prazo, parece o caminho que ele deseja trilhar, contrariando promessas de campanha. A realpolitik dele é míope.
Murillo – É confessa a falta de profundidade do presidente com os fundamentos econômicos, vide a criação do “Posto Ipiranga”. Por outro lado, há o populismo na veia. Com o resultado que está dando, difícil retroceder. É inegável a necessidade de uma reforma profunda da máquina pública, do ataque aos privilégios. Pressupõe enfrentamento hercúleo e vai no sentido inverso do populismo e do assistencialismo. Nada leva a crer que haverá grandes avanços dessas imperiosas reformas. As experiências anteriores da política nacional-desenvolvimentista terminaram em décadas perdidas. Mas, o tempo é o senhor da razão.
Roberto – Aumento do gasto público não é, por si só, política nacional-desenvolvimentista. A ditadura militar tinha muito mais clareza sobre isso que o governo Dilma, cuja aventura nacional-desenvolvimentista nunca passou mesmo de aventura. O governo Lula 2 e Dilma não fizeram nacional-desenvolvimentismo, mas nacional-consumismo, keynesianismo vulgar. O aumento do gasto é fundamental na crise, e é o que tem sido feito no mundo todo. O período de maior crescimento da economia brasileira ocorreu entre 1930 e 1980, sob o nacional-desenvolvimentismo. Bolsonaro não tem uma agenda nesta direção. O que ele pretende é simplesmente gastar mais. Isto não é nacional-desenvolvimentismo. É a continuidade do keynesianismo vulgar que sacramentou o fracasso da política econômica petista.
Folha – Bolsonaro apostou no negacionismo da Covid-19, que chamou de “gripezinha”. E já matou mais de 107 mil brasileiros, marca superada no mundo apenas pelos EUA governados por Donald Trump, em quem se espelha. “Às favas com os escrúpulos de consciência”, como o ex-ministro Jarbas Passarinho ao assinar o AI-5, R$ 600,00 é o preço político dessas vidas?
Arthur – Bolsonaro é muito canhestro para lidar com situações inesperadas. Como disse, é um péssimo estrategista. Nasceu para ser comandado, não para comandar. Está sendo um péssimo comandante na guerra contra a Covid-19, tanto em palavras como em atos. Ele falou o quis. Foi desumano e cruel. Continua sendo. Aconselhado a mudar, ele não sabe como. É completamente desajeitado com os pronunciamentos. A pandemia mostrou seus limites como chefe de uma nação. Se o auxílio emergencial melhorou sua imagem é porque a maioria da população brasileira é carente. Falta a ela educação política. Assim, o pouco se torna muito.
Murillo – Seu negacionismo prejudicou a formação de um discurso nacional ao enfrentamento à Covid. Mas, a decisão do STF, dando aos governadores e prefeitos a condução das ações, tirou de suas costas a responsabilidade. Com a aprovação do decreto de crise pelo Congresso, não faltaram recursos aos estados e municípios. O Brasil começou tarde a enfrentar o problema. Aqui, fica tudo para depois do Carnaval. Sou dos que acham que Bolsonaro não é o responsável pelas 107 mil mortes. Entretanto, sua falta de empatia e solidariedade com as vítimas são injustificáveis. Essa postura foi determinante à queda de popularidade.
Roberto – Maquiavel dizia que as pessoas esquecem mais rapidamente a morte de seus pais que a dilapidação de seu patrimônio. Em um país que, no dizer de Darcy Ribeiro, sempre foi uma “máquina de moer gente”, a aposta de Bolsonaro é macabra: pagar um preço político baixo pelas dezenas de milhares de vidas e ainda colher frutos adicionais. Mas parece realmente funcionar.
Folha – Pelo Datafolha, os 37% de Bolsonaro são superiores aos 30% de ótimo e bom de FHC em junho de 1996 e aos 35% de Lula, em agosto de 2004. Mas é inferior aos 62% de Dilma em agosto de 2012. Com o que hoje sabemos, o que esperar da fotografia do momento para o futuro? E é irônico ver os bolsonaristas divulgando a Datafolha nas redes sociais?
Arthur – Os bolsonaristas rejeitam pesquisas de opinião pública, se elas mostram o que lhes desagrada, mas, como todo político de esquerda, centro e direita, divulgam-no com caixa de ressonância, caso elas sejam favoráveis. Dilma conseguiu 62% e acabou impedida de governar. Ainda ressoam em mim as palavras de sabedoria da velha raposa política Manoel Gonçalves: “eleitor é velhaco”. Não se deve surfar na onda dos bons resultados. Eles podem mudar rapidamente. Enfim, apesar da mudança, ainda vejo que o rei está nu por baixo de um roupão roto.
Murillo – Qualquer análise agora sobre o futuro é prematura. Muita coisa vai acontecer e estes números de aprovação de hoje só servem para tirar de cena o impeachment. O jogo ainda vai começar. Meu sentimento é de que, quando a Covid sair da mídia, os reais problemas irão aparecer. Tempos ainda mais difíceis virão. Dilma tinha quase o dobro de aprovação dos outros e terminou afastada. Pesquisa é fotografia. Registra o momento. Quem assegura que Bolsonaro bateu no teto? E se ele crescer mais? Como será o dia seguinte pós-coronavoucher? Como administrar R$ 800 bilhões de déficit? Enfim: a única coisa certa é a incerteza.
Roberto – É irônico ver os bolsonaristas divulgando o Datafolha e apoiando uma mega política de transferência de renda sem condicionalidades. Eu diria que já temos algumas fotografias que nos permitem rascunhar um roteiro favorável a Bolsonaro, que na minha visão é cada vez mais favorito para se reeleger em 2022. Se algo vier a atrapalhar este roteiro rascunhado nesta fase da pandemia, será apenas a ação do próprio presidente. Não me parece que a oposição, seja de esquerda, seja de centro-direita, possa adquirir o protagonismo que não teve até aqui.
Faltou alguém com o contraditório nesse “debate”, não?
Caro Manoel dos Santos Ribeiro,
Basta ler o conjunto das análises para constatar que não.
Abç e grato pela participação!
Aluysio