Entre Getúlio e Juscelino, travestis e generais, Covid do Brasil a Campos

 

Getúlio Vargas e Juscelino Kubistchek

A frase “Campos é o espelho do Brasil” é creditada ao ex-presidente Getúlio Vargas. E a semana foi movimentada nos dois lados do reflexo. No que é refletido, o país ultrapassou na quinta (29) os 400 mil mortos por Covid-19. É um número sem precedentes em meio milênio de História do Brasil. Enquanto esta ciência existir, morramos ou não pela pandemia, assombraremos a memória dos que souberem quem fomos. Mesmo aos cegos que vivem entre nós e ainda fingem se ver coisa melhor. E, por isso, são cúmplices do crime.

Maior conflito armado da América do Sul e nosso evento anterior mais fatal, a Guerra do Paraguai (1864/1870) demorou seis anos para matar cerca de 50 mil brasileiros. Com a primeira baixa tupiniquim em 12 de março de 2020, a Covid precisou de pouco mais de quatro meses para ultrapassar os mesmos 50 mil óbitos na Terra de Vera Cruz. Foi em 20 de junho do ano passado. Exatos 15 dias após o coronavírus ter igualado os 35 mil mortos que a gripe espanhola (1918/1920), pandemia anterior, levou dois anos para matar no país.

 

Patrono do Exército Brasileiro, Duque de Caxias só tinha negros em sua guarda pessoal na Guerra do Paraguai

 

Num piscar de olhos da História, tudo que conhecíamos como tragédias nacionais em 500 anos ficou para trás. No darwinismo social imposto por um governo federal disposto a arriscar as vidas de 211 milhões na busca da imunidade de rebanho. Com 30% deles assumindo seu papel de “gado”. Que, ruminando defesa do tratamento precoce com combate ao uso da máscara, conduziram os outros 70% do país ao abatedouro. Em 8 de agosto, chegamos aos 100 mil mortos. Naquele mês, Bolsonaro recusou a oferta de 70 milhões de doses de vacina da Pfizer.

Com as festas de final de ano, dezembro traria presentes de grego. Celeiro da pandemia com a livre circulação do vírus, o Brasil identificou naquele mês sua primeira variante. A P1 de Manaus teria sua carga viral até 10 vezes maior depois confirmada. Dezembro traria ainda o primeiro caso brasileiro de reinfecção da doença. Que erodiu o mito da imunidade de rebanho do “mito”. Se adquiridas por ele em agosto, as vacinas da Pfizer chegariam em dezembro. Ao todo, foram 11 ofertas de imunizantes recusadas. No jogo do bicho, 11 é dezena do burro.

Sem vacinas e com a expansão da P1 rápida e mortal, como Sharon Stone no auge, chegamos aos 200 mil mortos em 7 de janeiro. A primeira brasileira só seria vacinada 10 dias depois, com a Coronavac. Foi um triunfo político do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), na parceria do Instituto Butantan com o laboratório chinês Sinovac. Antes recusada seis vezes por Bolsonaro, foi por ele chamada de “vachina”. Assim como por seu rebanho imune apenas aos fatos, “valentes” das redes sociais que na vida real correram como “maricas” para tomá-la.

Em 23 de janeiro seriam vacinados os primeiros brasileiros com a AstraZeneca, fruto do consórcio da Oxford com a Fiocruz. Mas sem o lockdown nacional adotado pela maioria dos países junto à imunização, levaríamos só 76 dias para pular dos 200 mil aos 300 mil mortos de 24 de março. Foi um dia após batermos 3 mil mortos em apenas 24 horas. Treze dias depois, em 6 de abril, ultrapassaríamos pela primeira vez a marca dos 4 mil mortos em um único dia. Ao todo, foram apenas 36 dias para pularmos dos 300 mil aos 401 mil mortos de quinta.

Na mesma quinta, o general da reserva Eduardo José Barbosa divulgou uma carta como presidente do Clube Militar do Rio de Janeiro. Na qual pregou usar o controvertido Art. 142 da Constituição para um golpe militar no Brasil. Tentou refletir um leão, urrando contra a convocação do general Eduardo Pazuello como ex-ministro da Saúde para depor na CPI da Covid, instalada no Senado na terça (27). Como vai lá nesta quarta (05) na condição de testemunha, se mentir, vai preso. CPI não é um tribunal, onde se tem a prerrogativa de não produzir prova contra si.

Do outro lado do espelho, a manifestação antidemocrática miava como gatinho. Refletiu o governo se borrando de medo na caixinha de areia. Após mostrar sua incompetência política na série de derrotas na CPI. Na qual tudo tentou, sem conseguir nada, para impedir Renan Calheiros (MDB/AL) de assumir a relatoria. O presidente do Clube Militar reflete melhor outro general do governo, Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Casa Civil. Apelidado de “Maria Fofoca” pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo “Passando a Boiada” Salles, Ramos foi flagrado dizendo a verdade. Em reunião na mesma terça em que a CPI era instalada:

 

 

— Tomei (a vacina) escondido porque a orientação (do governo) era não criar caso, mas vazou. Mas tomei mesmo, não tenho vergonha não. Eu tomei e vou ser sincero porque eu, como qualquer ser humano, eu quero viver. Eu tenho dois netos maravilhosos, eu tenho uma mulher linda, eu tenho sonhos ainda. Então, eu quero viver, pô. E se a ciência, a medicina, fala que é a vacina, quem sou eu para me contrapor? (…) E tenho tentado convencer o presidente de que essa cepa, eu tive Covid em outubro do ano passado, ela é uma variante muito violenta que está ceifando vidas e próximas da gente.

Pela toada da manifestação do presidente do Clube Militar, difícil considerá-la além do pastiche de pastor neopentecostal: “O Brasil é a pátria do evangelho! Natural, portanto, que o poder das trevas queira destruir nossa nação (…) bastou a eleição de um presidente que acredita em Deus para que todo o inferno se levantasse contra ele”. Mas, se fosse o caso de levar a sério, bom lembrar o editorial do jornal Washington Post de 2 de abril. Que dificilmente faria a advertência sem saber como pensa quem hoje comanda a Casa Branca:

 

 

— As democracias dos Estados Unidos e da América Latina devem prestar atenção à medida que as eleições (presidenciais do Brasil) do próximo ano se aproximam. E deixar claro para Bolsonaro que uma interrupção da democracia seria intolerável. O presidente brasileiro já contribuiu muito para o agravamento da pandemia da Covid-19 em seu próprio país e, por meio da disseminação da variante brasileira, pelo mundo. Ele não deve ter permissão para destruir uma das maiores democracias do mundo também.

 

 

Na sentença imortalizada por Pazuello, que será posta à prova na próxima quarta: “Um manda e o outro obedece”. Sobre o desespero do governo refletido nas “ameaças” do Clube Militar do Rio, é como cantou Cazuza. Foi nos anos 1980 da redemocratização do país, ao final de uma ditadura que só se sustentou enquanto durou o apoio dos EUA. Ao final da Guerra Fria que só continua a existir para quem crê em ameaça comunista, cloroquina e Saci Pererê: “Copacabana, você não me engana/ Com seus travestis e generais de pijama”.

 

Em 14 de maio de 2019, em Dallas, no Texas, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro bate continência à bandeira dos EUA (Foto: Reporudução de vídeo)

 

Enquanto isso, pela desorganização do governo federal, Campos está desde a terça da CPI sem aplicar a Coronavac. No comando do combate à Covid no município, os médicos infectologistas Charbell Kury e Rodrigo Carneiro têm serviços prestados à saúde pública. Mas talvez não devessem levar tão a sério as promessas do ministério da Saúde. Como em todos os demais municípios em que a “vachina” teve a segunda dose reservada. Medicina, como qualquer ciência e a própria democracia, é feita de tentativa e erro. Outro ex-presidente, Juscelino Kubistchek aconselharia: “Costumo voltar atrás, sim. Não tenho compromisso com o erro”.

 

Publicado hoje (01) na Folha da Manhã

 

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Este post tem um comentário

  1. Alcenir Bueno Freire

    Bom dia!
    Aluyzio, parabéns por esse belo artigo. É necessário levar o leitor à uma análise crítica sobre a pandemia que traz a saúde pública como efeito de Inanição politica que se instalou no país dentro de um projeto de poder sob a perspectiva burguesa e elitista.
    Portanto, torna- se fundamental levar à compreensão desse protagonismo no contexto de um Darwinismo social.

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