Engenheiro, economista, primeiro reitor da Universidade de Brasília (UNB) eleito após a nossa última ditadura militar (1964/1985), ex-governador do Distrito Federal pelo PT, no qual implantou o Bolsa Escola em 1995, depois adotado no governo federal Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e ampliado como Bolsa Família no carro chefe dos 13 anos petistas no comando do país, Cristovam Buarque foi também ministro da Educação de Lula. E senador duas vezes: uma pelo PT e reeleito pelo PDT, pelo qual disputou a presidência da República em 2006. Como educador e político, é um currículo nacional de destaque. Que se aproxima de Campos nesta sexta (14), no debate virtual “A política econômica do desenvolvimento: de Vargas aos nossos dias”, entre 16h e 19h, promovido pela Fundação Astrojildo Pereira e com transmissão ao vivo pela Folha FM 98,3 e Plena TV. Nesta entrevista, Cristovam falou do seu rompimento com o PT, que o levou a votar como senador pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. De quem reafirma a prática de crime de responsabilidade, contrária à narrativa de “golpe”. Progressista, criticou uma “esquerda brasileira (que) nunca lutou pelo fim das mordomias, privilégios, desperdícios”. A classificou de “exquerda” e acusou de “negacionista” no “vício de considerar o Tesouro como ilimitado”. Ainda assim, prega a aliança entre as forças de oposição contra o que considera o objetivo principal em 2022: “vencer Bolsonaro”.
Folha da Manhã – Governador de Brasília, quando ainda estava no PT, o senhor implantou o Bolsa Escola em 1995, que seria adotado em 2001 pelo governo federal Fernando Henrique Cardoso. Em 2003, no governo Lula, o programa foi incorporado a outros no Bolsa Família, carro-chefe dos 13 anos do PT no poder. Que saldo faz do programa?
Cristovam Buarque – O Lula não acreditava no Bolsa Escola, tanto que não aceitou colocá-lo como proposta no documento “Educação Já”, publicado em nome dele e meu, em 1990, como produto do governo paralelo (ao do presidente Fernando Collor de Mello, eleito em 1989, batendo Lula no segundo turno). Quando assumiu o governo (federal, em 2003), eu disse (a Lula) que o Fome Zero não era necessário. Bastava espalhar e ampliar o valor do Bolsa Escola Federal que o FHC tinha criado, cinco anos depois de Brasília e por muita insistência minha. Quando percebeu a importância da ideia, por influência do Duda Mendonça (publicitário que criou o “Lulinha Paz e Amor” vencedor da eleição de 2002), Lula agarrou-a como seu grande programa, coisa que FHC nunca fez, como se sentisse vergonha diante do mundo de que o Brasil precisasse pagar para as crianças estudarem. Apesar disto, em sua autobiografia (“Minha Vida”, lançado em 2004), Bill Clinton (ex-presidente dos EUA) fez elogios, mantendo o nome Bolsa Escola em português. Mas ao adotar o programa, Lula provocou três deformações que levaram um programa educacional a ficar assistencial. Trocou o nome, o que faz com que uma mãe receba o dinheiro pensando que é porque sua família é pobre, antes era porque seus filhos iam à escola. Tirou do MEC e colocou no ministério da Assistência Social, que se chamava Desenvolvimento Social. E misturou beneficiários de filhos na escola com todos que precisavam de ajuda. Melhorou a gestão e elevou de 4 para 12 milhões de beneficiários. Tirou o Brasil do mapa da fome, mas não fez a mudança estrutural que, graças à Bolsa Escola, a educação teria feito.
Folha – Primeiro ministro da Educação de Lula, o senhor foi demitido por ele por telefone em janeiro de 2004. Mas só saiu do PT em 2005, com críticas ao “desprezo” do partido pela educação. Que foi a bandeira da sua candidatura a presidente pelo PDT em 2006, ficando em 4º lugar. De lá para cá, qual o lugar da educação na agenda de desenvolvimento do país?
Cristovam – Continua menosprezada. Quando me demitiu, Lula disse que queria um ministro dedicado a aumentar o número de alunos na universidade. De fato, minha preocupação maior era com a erradicação do analfabetismo e iniciar um processo de maior cuidado federal com a educação de base. Até hoje deixamos a educação de base para os pobres entregue às prefeituras pobres e desiguais. E financiamos a universidade com dinheiro federal. Há 50 anos melhoramos a passo de tartaruga, mas ampliando três brechas: entre pobres e ricos, entre o Brasil e o resto do mundo, e entre o que ensinamos e o que é preciso ensinar. Melhoramos ficando para trás e por conta disto estamos nos tornando um país de quarta classe. Já fomos emergentes, estamos caminhando para submergentes. São muitas razões, mas o atraso e a desigualdade educacional são as principais. Pior que não podemos colocar a culpa nos portugueses ou nos escravocratas ou nos latifundiários ou na ditadura militar. Nós, democratas progressistas, ficamos 26 anos no poder, 13 deles com o PT, e não fizemos o que sempre prometemos. Deixamos o país com 35 milhões sem água, 100 milhões sem esgoto, 12 milhões de analfabetos, recessão, desemprego, recessão e corrupção.
Folha – Em 2010, ainda no PDT, seu partido apoiou Dilma Rousseff (PT) a presidente. Em 2014 seu apoio foi para Eduardo Campos (PSB) e, após a morte dele, para Marina Silva. Ela foi a chance eleitoralmente mais viável para um progressista romper com a polarização entre PSBD e PT?
Cristovam — Além da origem e biografia, que o Lula também tem, Marina trazia os dois compromissos centrais para o futuro: educação e meio ambiente, com responsabilidade fiscal. E era uma posição de avanço nas propostas e comportamentos dos governos do PT, sem o aparelhamento da máquina do Estado e submissão ao corporativismo de trabalhadores e de empresários.
Folha – Em 2014, a disputa presidencial ferveu. Dilma se disse disposta a “fazer o diabo” para se reeleger, Lula chamou Aécio e o PSDB de “nazistas”, e a campanha do PT contra a ex-petista Marina seria classificada de fake news, termo criado em 2016, pelo presidente do TSE, ministro Luiz Fux. Se não era novidade, o “nós contra eles” radicalizou demais a partir dali?
Cristovam – A esquerda tem tendência a esta divisão com respeito à democracia, Bolsonaro radicaliza nesta posição, sem respeito à democracia. Mas a esquerda tende a se sentir dona da verdade e única defensora dos interesses populares, não aceita facilmente a alternância no poder. A derrota eleitoral é vista como derrota histórica. Por isto os partidos comunistas se perpetuam. Evo Morales tentou quatro mandatos sucessivos e tentaria o quinto, Chávez e Maduro nem sabemos quantos. Verdade que vencendo eleições, mas, como disse a Dilma, fazendo o diabo, porque a derrota do partido é vista como escravidão para o povo e derrocada do país. Some-se a isto o gosto de muitos pelo poder e pela fortuna.
Folha – O senhor é até hoje criticado pelos ex-companheiros petistas por ter votado, após trocar o PDT pelo PPS (atual Cidadania), pelo impeachment de Dilma no Senado. Assim como a favor da PEC do Teto dos Gastos Públicos e da proposta de reforma trabalhista do governo Michel Temer (MDB). Se pudesse voltar atrás, mudaria algo? Por quê?
Cristovam – Quanto à PEC do Teto e reforma trabalhista, não tenho a menor dúvida que eram necessidades. Não sou negacionista e acredito que 2 mais 2 é igual a 4 também nas finanças. Vejo que a inflação sempre empobrece ainda mais os pobres. E que o vício brasileiro de considerar o Tesouro como ilimitado, da mesma maneira que as florestas, tem servido para esmorecer as forças progressistas que reivindicam novos direitos sem cortar velhos privilégios. A esquerda brasileira nunca lutou pelo fim das mordomias, privilégios, desperdícios, subsídios. Prefere reivindicar a lutar, aumentando os déficits públicos, comemorando vitórias e deixando o povo pagar a conta com inflação e juros altos. Também não sou negacionista na realidade dos avanços técnicos e suas consequências nas relações entre capital e trabalho nos tempos atuais, comparados com o tempo da CLT. Naquele tempo não havia nem elevador sem ascensorista, hoje tem avião sem piloto. Não votei a lei da reforma previdenciária porque estava fora do Senado, mas afirmo que nisto também não sou negacionista: nascem menos crianças, os velhos vivem mais e o Estado se esgotou. Teria votado a favor. Quanto ao impeachment, a resposta é mais complicada. Foi um erro lógico diante do que perdi e sofri. Até netas minhas de menos de 10 anos foram atacadas por cartazes em Brasília. Não foi um voto inteligente e lamento ter sido obrigado a votar para manter minha coerência. Foi um voto decidido por razões morais. Passei dois anos alertando a presidente Dilma do crime de responsabilidade que ela cometia e das trágicas consequências de recessão e desemprego e inflação. Votar contra seria inteligente, mas não seria coerente. Fui prisioneiro de minha biografia moral, que arranhou bastante minha biografia política, porque meus eleitores, leitores e amigos se afastaram. Fiquei só com minha consciência e a sensação de ter sido corajoso e coerente. Eu continuei de esquerda, mas para ser de esquerda você não pode ser negacionista, nem covarde e tem que ser contemporâneo da contemporaneidade. Nossa esquerda ficou saudosista e não vê a história passar. Por isto chamo de “exquerda”.
Folha – Apontado em 2018 como alternativa progressista ao PT e à extrema-direita de Jair Bolsonaro (então, PSL), Ciro Gomes também sofreu críticas suas. Em 2015, quando se disse “rifado” do PDT, o senhor falou do cearense: “Não é um quadro que me entusiasme. O PDT está tão ruim, que nem a entrada do Ciro consegue piorar”. Qual era a opção em 2018?
Cristovam – Eu pensei ser o candidato à presidência pelo PPS, repetir a candidatura de 2006 pelo PDT. Mas Roberto Freire (presidente do PPS, hoje Cidadania) não quis e eu, recém ingressado no partido, abri mão em uma reunião do diretório. Ele queria apoiar (Geraldo) Alckmin (PSDB). Os deputados (Arnaldo) Jordy e Rubens Bueno até hoje reclamam dessa minha posição. O PPS apoiou Alckmin que nem ao menos apoiou minha candidatura ao Senado no DF (na qual ficou em terceiro lugar e não se reelegeu ao terceiro mandato). Eu explicitei que meu apoio era outra vez a Marina Silva, como tinha sido em 2014, depois da morte de Eduardo Campos.
Folha – Após o plenário do STF anular as condenações de Lula na Lava Jato de Curitiba, ele voltou com força ao tabuleiro eleitoral de 2022, no qual vem liderando todas as pesquisas ao primeiro turno e batendo Bolsonaro nas projeções do segundo. Como os 30% de intenções de voto de ambos podem ser alcançados por uma terceira via, a menos de 17 meses da urna?
Cristovam – Nossa tragédia é que acho difícil qualquer um chegar ao segundo turno sem apoio do PT e Lula, mas o PT poderá ter dificuldade no segundo turno para vencer Bolsonaro na disputa para ver quem tem menos rejeição. Além disto, a disputa no primeiro turno gera muito antagonismo, que é levado ao segundo. Temo que a luta entre os antibolsonaristas no primeiro turno leve muitos democratas a anularem o voto, viajarem, votarem em branco e o Bolsonaro vença da mesma forma que venceu ao Haddad, um candidato muito melhor e mais qualificado, técnica e moralmente. Tenho defendido que os candidatos atuais se unam logo no primeiro turno, e o eleito se comprometa a ficar um único mandato. Os outros candidatos de hoje adiariam a disputa para 2026. O ideal seria que o PT ajudasse a escolher um candidato sem rejeição. Mas se o PT não perceber que o momento deve colocar o Brasil e a democracia na frente, se não encontrarmos um candidato que unifique, melhor ir com o PT do que o suicídio nacional com um Bolsonaro reeleito, formando o “seu” exército oficial ou não oficial das milícias. Nem Lula, nem Ciro, nem (Luciano) Huck (sem partido), nem (João) Doria (PSDB), nem Tasso (Jereissati, PSDB) tem o direito de abrir caminho para este suicídio. Melhor que abram mão de suas candidaturas e escolham um deles em um esforço para vencer Bolsonaro. Mas parece que cada um está colocando mais a chance de ser presidente e de beneficiar seus partidos com o Fundo Partidário do que salvar o país. Uma das provas de que nossa geração não está à altura do momento é termos feito em nome de fortalecer a democracia um fundo partidário que ameaça afundar o país.
Folha – Os petistas têm encarado o reinício dos processos de Lula como sua inocência. Em seu livro “Por que falhamos — O Brasil de 1992 a 2019”, o senhor lista os erros da esquerda que levaram a Bolsonaro. E diz: “Nossos intelectuais toleraram de maneira subserviente a corrupção explícita”. Se essa leniência voltar ao poder, onde o Brasil pode parar?
Cristovam – Não será um bom destino, mas melhor do que Bolsonaro. Além disto, o PT e Lula devem ter aprendido com os erros. Apesar de que nunca reconhecem isto publicamente.
Folha – Refém do Centrão no Congresso, com mais de 100 pedidos de impeachment na Câmara, CPI da Covid no Senado, 420 mil brasileiros mortos pela pandemia, volta da inflação, desemprego e dólar em alta, e sem nenhum apoio internacional desde a derrota de Donald Trump nos EUA, Bolsonaro ainda mantém cerca de 30% de apoio popular. Collor e Dilma só caíram quando tinham 1/3 disso. O que projetar?
Cristovam – Projeto que Bolsonaro manterá seu núcleo fanatizado e os outros divididos ajudarão para que ele chegue ao segundo turno. A ideia de dois turnos é formidável: no primeiro, o eleitor escolhe o candidato mais próximo, no segundo, o menos distante. Mas em tempo de radicalismo, o primeiro turno elege os extremos que mantêm seus núcleos aguerridos. E, no segundo turno, os não extremos elegem um dos extremos com menor rejeição.
Folha – Quais são suas expectativas para o debate virtual “A política econômica do desenvolvimento: de Vargas aos nossos dias”, junto ao também professor e economista Bresser Pereira, que será promovido pela Fundação Astrojildo Pereira, das 16h às 19h da próxima sexta (14), com transmissão ao vivo pela Folha FM 98,3 e a Plena TV?
Cristovam – Vou me concentrar menos no que os economistas erraram e mais no que eles esqueceram: os limites ecológicos que desde os anos 60/70 já se percebiam; vetor educacional que outros países já percebiam nos anos 60/70, como mais do que um direito de cada pessoa, a alavanca do progresso econômico e da justiça social; a pobreza como um entrave ao crescimento; a perspectiva histórica que cobra a conta da modernidade apressada; e o esgotamento do Estado, fiscal, gerencial e moralmente. Qualquer que fosse o partido no poder nos últimos quase 100 anos, seus economistas não perceberam essas lacunas no pensamento econômico. Concentraram-se em caminhar rápido, sem perceber que estavam em um rumo errado.