Ícaro Barbosa — Pirica, “um dos protótipos pessoais de Deus”

 

Foram várias as manifestações sentidas após a morte precoce de Marcelo Silva Martins, o icônico Pirica, aos 50 anos, na manhã da última quinta. Entre elas, só fui ver na noite de domingo (13) a do meu próprio filho, o jornalista Ícaro Barbosa, de quem Pirica se tornou amigo e “filho adotivo” nos últimos anos.

Ícaro diz ter crescido em meio às histórias de Pirica, pelo fato deste ter sido meu amigo desde a infância. Entre elas, sempre contei ao meu filho a do primeiro encontro entre os dois. Que relato aqui, antes de passar ao pungente texto do Smart.

Era o início dos anos 2000, quando Christiano, meu irmão e padrinho de Ícaro, nos tinha chamado para vê-lo jogando pelada na quadra de futebol de salão — naquela época, ainda se chama em sua forma portuguesa o futsal de hoje — do Tênis Clube. Fomos e lá estava também Pirica, que gostava de jogar de goleiro, posição que nós dois disputávamos, anos antes, em tantas outras peladas da nossa infância e adolescência comuns.

Ícaro tinha cerca de 2 anos e rápido encheu o saco de ver o futebol dos adultos, preferindo o parquinho infantil ao lado da quadra. Levei ele lá, para se distrair, quando Pirica, no time da cerca, se chegou e ficamos conversando. Após algum tempo de papo, de costas para Ícaro e diante do meu interlocutor, percebi que este ria, olhando por cima do meu ombro, de onde tambem vinham risos.

Tomado pela curiosidade súbita, olhei para trás, para notar Ícaro se divertindo. Não com nenhum brinquedo do parquinho, mas rodando sozinho, até ficar tonto e cair de bunda no chão. Após se refazer, levantava e repetia o pique consigo mesmo, até cair de novo, demonstrando em seus risos de criança o prazer com a sensação de vertigem. Voltei-me novamente a Pirica, quando ele sentenciou, em meio a gargalhadas: “Esse é dos meus!”.

Mesmo com um calafrio me correndo a espinha de pai com a “profecia” — que, graças a Deus, nunca se cumpriu, pelo menos não integralmente —, foi inevitável que eu risse também. Como faziam Ícaro e Pirica na identificação à primeira vista entre ambos, estreitada ao correr dos anos na bela amizade relatada abaixo:

 

Pirica e Ícaro no “escritório” do primeiro, na calçada da Beira Valão (Foto: Fernanda Toledo)

 

Ícaro Barbosa, jornalista (Foto: Facebook)

Pirica, muito estranho para viver e muito raro para morrer

Por Ícaro Barbosa

 

Pirica foi muitas coisas: surfista, radialista, chapeiro, encrenqueiro profissional e vendedor de água. Ele foi o que quis, com um grande coração e sem se preocupar com qualquer julgamento dos ditos “normais”. Tudo isso acabou na última quinta, quando ele foi atropelado e deixado para morrer, abandonado na Salvador Corrêa.

Marcelo Pirica, mais ou menos com a idade que Ícaro tem hoje (Foto: Arquivo Pessoal)

Comecei a ter mais contato com Pirica nos últimos quase dois anos, quando virei seu vizinho. Já o conhecia de vista e através de histórias, por conta da amizade de longa data que Marcelo Silva Martins tinha com meu pai, o jornalista Aluysio Abreu Barbosa. Eu sabia do jeito louco e amigável daquele cara incompreendido… e até me identificava com ele, de certa forma.

Afinidade entre nós dois, o gosto pelo blues e pela cerveja estreitou os laços, a ponto de eu chegar receber o apelido de “Smart” e ser chamado pelo maluco beleza da planície de “irmão” e “filho”.

Frequentemente passava pelo “escritório de Pirica”, aquele trecho final da Beira-Valão que é marcado com colorjet preto nas calçadas, nas muretas e nos arcos com o apelido de Marcelo.

Numa dessas caminhadas, em uma segunda-feira, por volta das 15h, parei e conversei com ele sobre as novidades do mundo do blues. Logo sentei e comecei a mostrar algumas músicas novas para ele. Pirica dançava, acompanhava com atenção e olhos fechados… e com o ouvido afiado ele opinava sobre cada um dos músicos e instrumentos, em cada uma das músicas.

— Gostei disso — disse, se referindo ao headphone conectado no Spotify.

— É a melhor coisa que tem, Pirica… você ouve a música que quiser, de qualquer lugar e a qualquer hora — expliquei.

— Porque você não falou antes, Smart… coloca uma pra mim — pediu, animado com o poder de escolha.

Perguntei qual ele queria e a resposta apressada foi:

— Bota aí “TV Dinners”, do ZZ Top.

A pancada começou no último volume do fone e Pirica entrou em frenesi: balançava a cabeça, tocava uma guitarra imaginária, cantava na calçada do seu escritório e, quando o sinal fechava, estendia o show para a rua — mandando dedo do meio e fazendo caretas para qualquer motorista que por acaso o olhasse meio atravessado.

Quando a música acabou, ele se sentou ao meu lado, na mureta do Valão, de onde eu acompanhava e me divertia com a cena. Pirica, então, devolveu o headphone e voltou a si. Ele falou sério, com os olhos meio marejados, e me deu um abraço: “esse foi o momento mais feliz do meu dia!”, suspirou.

Eu fiquei emocionado com aquilo e resolvi ir numa loja de churrasco das proximidades comprar umas garrafas de cerveja para dividirmos. Ele me acompanhou e conversamos um pouco sobre tudo ao longo do percurso.

Voltamos para o “escritório” e bebemos, assistindo os carros passarem, enquanto no celular tocava The Doors, Eric Clapton, Stevie Ray Vaughan e Barão Vermelho. Quando estava quase acabando a minha segunda garrafa — acompanhando o ritmo pesado de Pirica —, expliquei que tinha que ir embora para fazer algumas coisas em casa.

A gente se despediu e matou o líquido que restava nas garrafas. Pirica enxugou a boca na manga da camisa e sentado, de costas para o valão, arremessou o casco sem se preocupar com o local de aterrissagem. Eu observei, meio incrédulo, a garrafa caindo como bala de morteiro e se estilhaçando no outro lado do declive da Beira Valão. O barulho acabou provocando uma crise de risos em nós dois e chamando a atenção dos transeuntes para a gente… atenção para qual Pirica destinou seu tradicional “FODA-SE”.

Finalmente voltei caminhando pra casa, ainda com um sorriso no canto da boca por causa daquela cena assustadoramente espontânea.

Naquele dia, assim como quando recebi o soco que foi a notícia da sua morte, lembrei de um trecho do livro que estava lendo na época, “Medo e Delírio em Las Vegas”, do jornalista estadunidense Hunter S. Thompson:

“Lá vai ele. Um dos protótipos pessoais de Deus. Uma espécie de mutante de alta potência que nunca foi considerado para fabricação em massa. Muito estranho para viver e muito raro para morrer.”

Numa quinta nebulosa, pensei que nenhuma combinação de palavras ou notas musicais vai ilustrar tão bem o que foi o lendário Pirica. Seja lá o que tenha significado para si mesmo e para todos aqueles tantos campistas que conviveram com ele.

 

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Este post tem um comentário

  1. Dídimo

    Maravilhoso e comovente o texto!
    Conheci bem este nosso amável “MALUCO BELEZA “.
    Ele para o Céu foi,
    A sua história para nós ficou,
    Para os braços do pai celestial por certo a paz ele encontrou!!!
    Dídimo Ribeiro Gomes .

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