Há filmes que são odes de amor ao cinema. Mesmo que pelo viés ácido da crítica, como no final das relações mais intensas entre sentimento e carne, ainda assim amor. “Te adorando pelo avesso”, como no verso de Chico Buarque em “Atrás da porta”.
É o caso de “Babilônia” (2022), vencedor de três estatuetas do Oscar, entregues mês passado: melhor trilha sonora original, figurino e direção de arte. Dirigido pelo roteirista e cineasta estadunidense Damien Chazelle, o mesmo do sucesso “La La Land” (2016), seu novo filme tem como chamarizes as estrelas Brad Pitt e Margot Robbie. E pode ser alugado pelos assinantes do canal de streaming Amazon Prime, como boa opção para o feriadão da Páscoa.
ׅ“Babilônia” se arrisca ao contar uma história já imortalizada por clássicos talvez insuperáveis, dos quais Chazelle bebe assumidamente: “Crepúsculo dos deuses” (1950), de Billy Wilder; e “Cantando na chuva” (1952), de Stanley Donen e Gene Kelly. Tratam da passagem do cinema mudo ao falado, no final dos anos 1920. Que foi tão rápida, avassaladora e traumática quanto é a comunicação de massas com a redes sociais, nestes anos 2020.
O CINEMA
A quem nasceu e viveu com o cinema falado, e supõe que o mundo e o cinema nasceram junto consigo, necessário o flashback. A primeira exibição de cinema, pelos irmãos Auguste e Louis Lumière, se deu na Paris de 1895. “A saída da fábrica Lumière em Lyon” era um documentário de curta-metragem, de 45 segundos. Mas foi nos EUA que a invenção, ainda muda, se popularizou.
Em 1903, a ficção “O grande roubo de trem”, de Edwin S. Porter, foi o primeiro grande sucesso de público do cinema. Que levou à abertura de salas de exibição em todo o país: os “nickelodeons”. O nome era referência ao preço do ingresso: 5 centavos de dólar, moeda cunhada em níquel.
Ainda sem som, que não dos pianos ao vivo nos nickelodeons, a novidade ganhou caráter industrial com a demanda de filmes o ano inteiro. Cuja produção passou a ser sediada no início dos anos 1910 em um distrito de Los Angeles, Hollywood. Tinha terra barata, tempo bom e condições de filmagem o ano inteiro. Diferente da já cara Nova York, com seu inverno rigoroso.
Com a participação na 1ª Guerra Mundial (1914/1918) na Europa, mais a pujança da sua economia, os EUA passaram de potência regional a mundial. E levaram junto seu cinema, já em escala industrial. Com base na divisão de tarefas entre especialistas em cada fase da produção. Na linha de montagem criada por Henry Ford para fabricar, baratear e popularizar automóveis.
Na sequência, os anos 1920 retratados em “Babilônia” seriam, segundo o crítico e historiador Arthur Soffiati, o auge do cinema. Porque foi quando este, ainda mudo, se afirmou como arte, sétima e última. Mesmo vista com desdém elitista pelas seis anteriores, por ser um fenômeno da cultura de massas. Que lhe conferiu um retorno pecuniário ainda desconhecido às artes.
A 5 centavos de dólar pago por cada um dos milhões de espectadores, os executivos dos estúdios e seus principais atores e diretores se tornaram milionários. Com uma vida suntuosa como a do rei Nabucodonosor e sua corte na Babilônia da Antiguidade.
Ditado pelas massas que pagavam ingresso, esse universo literalmente nababesco virou de ponta à cabeça em 6 de outubro de 1927. Com o imenso e imediato sucesso de “O cantor de jazz”, de Alan Crosland. Até hoje mais conhecido como “o primeiro filme falado” e estrelado pelo cantor Al Jolson, a fala mais famosa da sua personagem, Jakie Rabinowitz, nunca mais se calaria: “Espere um minuto, espere um minuto. Você ainda não ouviu nada”.
O FILME
Nos últimos dias do cinema mudo, ao som do jazz e antes de “O cantor de jazz”, “Babilônia” traz o galã e a musa do cinema dos anos 2020 como um galã (Jack Conrad) e uma musa (Nellie LaRoy) do cinema dos anos 1920. Sem coincidência e com spoiler, as personagens de Brad Pitt e Margot Robbie não têm relação carnal em “Babilônia”. Como em outra ode de amor recente ao cinema que os dois estrelaram: “Era uma vez em… Hollywood” (2019), de Quentin Tarantino.
Se não entre si, Conrad/Pitt e LaRoy/Robbie não economizam na penca de relacionamentos com outros. O primeiro, com vários casos, noivas e esposas. Que se sucedem como a clássica animação Tom & Jerry: de maneira acelerada e sempre com o mesmo fim.
A protagonista feminina não fica atrás, mas tem duas relações mais marcantes. Ainda como aspirante a atriz, em meio a uma orgia da Hollywood/Babilônia, a primeira é ironicamente platônica. Com o ainda aspirante mexicano a produtor Manoel “Manny” Torres, na pele de Diego Calva. Que é o protagonista, de fato, do filme. A outra, já após o estrelato, é lésbica. Com a cantora chinesa Lady Fay Zhu (Ji Jun Li), que faz legendas para filmes mudos.
A aparente contradição entre arte e pop é explorada pelo diretor e roteirista no tenso diálogo de Conrad/Pitt com uma de suas esposas, a atriz de teatro Estelle Conrad (Katherine Waterston). Com soberba, ela tenta ensiná-lo como colocar suas falas nos filmes. Enquanto a tragédia anunciada com o produtor e amigo George Munn (Lukas Hass), em seu romantismo incurável, representa tudo que não tinha mais volta após a estreia de “O cantor de jazz”.
Protagonista de “O cantor de jazz”, o exemplo real de Jolson, imigrante judeu nascido na Lituânia, é retratado em “Babilônia”. Noves fora o significado de depravação moral que a Bíblia confere à cidade homônima da antiga Mesopotâmia (atual Iraque), pela Babel étnica da qual Hollywood é fruto.
Iluminadas parcialmente pela luz da projeção e hipnotizadas por seu reflexo na tela, as faces brancas, pretas, latinas e orientais do público do cinema, ao final de “Babilônia”, é o retrato do sucesso. Como no slogan do cigarro Hollywood nos anos 1980. Banido pelo mesmo “politicamente correto” que hoje cobra diversidade.
A METALINGUAGEM
Um dos pontos mais polêmicos de “O cantor de jazz” é o fato de que o branco Jolson pinta o rosto de negro para se apresentar no palco. Comum nos anos 1920 e hoje amplamente condenada como prática racista, é o blackface que o produtor mexicano Manny Torres impõe em “Babilônia” ao trompetista negro Sidney Palmer (Jovan Adepo).
Com seus anacronismos dos anos 1920, “O cantor de jazz” tornou o cinema mudo anacrônico da noite para o dia. É o beco sem saída contra o qual batem de cara as personagens de “Babilônia”. Assim como em “Cantando na chuva”, não por acaso exibido na tela de cinema como epílogo do filme mais recente.
Quem não se adaptou virou um dos “bonecos de cera” retratado em “Crepúsculo dos deuses”. Cuja protagonista, a então esquecida estrela do cinema mudo Gloria Swanson, brilhante ao se interpretar na personagem Norman Desmond, também não surge ao acaso em “Babilônia”.
Em diálogo por telefone, Swanson tenta cavar um papel com o Conrad de Pitt. É um pouco depois deste cair bêbado da varanda à piscina da sua mansão. Onde boia por instantes como o Joe Gillis interpretado por William Holden, “Brás Cubas” do clássico de Billy Wilder.
Sessenta e cinco anos após o sucesso de “O cantor de jazz” ferir de morte o cinema mudo, Quentin Tarantino revolucionaria o falado. Foi logo em seu filme de estreia, “Cães de Aluguel”, de 1992. Onde dialogou com tudo que veio antes para produzir algo absolutamente original.
Também roteirista e produtor, Chazelle não tem e dificilmente terá essa mesma gravidade. Mas tem uma carreira original. Muito baseada no jazz, como mostrou desde “Whiplash: em busca da perfeição” (2014), antes da afluência dessa fonte em “La La Land” e “Babilônia”.
No elefante real do começo do novo filme, antes de o paquiderme se revelar só um adereço à vertigem de sexo, drogas e jazz dos anos 1920, numa Hollywood muito antes do rock and roll, “Babilônia” evoca seu batismo em outra ode de amor ao cinema: “Bom dia, Babilônia” (1987), dos irmãos Vittorio e Paolo Tavianni. Que, por sua vez, é uma homenagem italiana ao cinema do seu primeiro grande mestre nos EUA, David W. Griffith.
A exemplo de Tarantino, Chazelle usou e abusou da metalinguagem em “Babilônia”. Mergulhou até “Intolerância” (1916), de Griffith, para emergir com seu cinema sobre cinema. Com o snorkel natural de suas trombras, elefantes são excelentes nadadores.
O SALDO E O SAMBA
Pela poderosa atuação de Margot Robbie, como a inevitável identificação de Brad Pitt com quem interpreta, dá para não conhecer cinema e gostar de “Babilônia”. Como saber um pouco mais dos EUA e do mundo naqueles “loucos” anos 1920, sem nunca ter lido F. Scott Fitzgerald ou Ernest Hemingway. Só não dá para mergulhar. Nem reconhecer o fundo. Pelo avesso.
Como o carioca Noel Rosa cantaria em 1933, logo ao primeiro verso do samba “Não tem tradução”: “O cinema falado é o grande culpado da transformação”.
Abaixo, o trailer de “Babilônia”: