O voo do Ícaro de um Dédalo órfão do filho único

 

Ícaro e Aluysio Abreu Barbosa no cume do Monte Sinai, na porção asiática do Egito, ao nascer do sol de 25 de janeiro de 2023 (Foto: Ícaro Barbosa)

 

 

Ícaro voador

“Ícaro e Dédalo”, óleo sobre tela de Clarles Paul Landon, 1799

Tinha uns 7 anos quando meu pai, o jornalista Aluysio Cardoso Barbosa, me presenteou com a obra completa infantil de Monteiro Lobato. Com ela tomei conhecimento da mitologia grega de Ícaro e Dédalo. Filho e pai, respectivamente, que constroem dois pares de asas com penas de pássaro e cera de abelhas. E com elas fogem do cativeiro na ilha de Creta.

Antes de saírem voando sobre o Mar Egeu, o pai aconselhou o filho que não subisse perto demais do sol, para que este não derretesse a cera das asas. Inebriado pela proximidade com o astro rei, Ícaro ignorou a advertência paterna. A opção do jovem foi ser o homem mais próximo ao sol. Pela qual morreu na queda. Em prantos, o pai seguiu voo e vida órfão do filho.

Desde feto — Desde que o menino que fui leu a história pela primeira vez, tomou sua decisão: teria um filho, o seu menino, a quem chamaria de Ícaro. Cumprida em 15 de julho de 1999, quando nasceu Ícaro Paes Pasco Abreu Barbosa, meu filho com a jornalista Dora Paula Paes. Após 20 anos de expectativa, minha interação com ele começou quando ainda era feto. Quando passou a se mexer na barriga da mãe, a partir do quarto mês de gestação.

Chegava tarde da noite, às vezes de madrugada, do trabalho puxado de editor-geral da Folha, deitava na cama e o acordava. Mexia de maneira carinhosa, mas insistente, na barriga da mãe. Até ser respondido de dentro dela, em diálogo de tato até que caíssemos ambos no sono. Desde ali, ele se fez notívago, característica que manteria em seus 23 anos de vida, encerrados precocemente na noite do último sábado (13).

O bebê — Recém-nascido, lembro de segurá-lo na cama, a nuca apoiada na palma da mão direita, com a coluna deitada até a metade do antebraço. Passava horas em contemplação e gratidão ao Divino. E indagava em mantra o pensamento: “Como pude fazer algo tão perfeito?”

Quando começou a falar, aos 2 anos, se deu o apelido com que passaria a ser chamado em família: Carô. Ainda incapaz de reproduzir o “í”, foi assim que ele primeiro se reconheceu e identificou enquanto indivíduo. Sua primeira palavra foi “mama”. Que me deu uma inveja danada de Dora.

Ele só me identificaria foneticamente meses depois. Passou a me chamar de “papagaio”. No início, foi frustrante a quem passara a vida ansiando ser chamado de pai pelo filho chamado Ícaro. Como daria saudades depois, quando ele, por volta dos 4 anos, finalmente começou a me chamar de “papai”. E aposentou, sem motivo aparente, a distinção paterna de “papagaio”.

Menino e adolescente — Aos 10 anos, Ícaro também experimentou a paternidade. Sua mãe Dora, com quem vivia, teve mais um filho. Que o meu batizou com outro nome grego: Aquiles. Mesmo que este tenha pai no exercício do papel, como nunca viveu com a mãe, coube ao meu filho ser pai cotidiano do irmão. A quem, em nome dessa relação tão bonita, tomei por afilhado.

 

Aquiles e Ícaro, em 16 de julho de 2014 (Foto: Facebook)

 

Figura paterna para Ícaro tão ou mais importante que eu, era o seu “vovô Ísio”. O velho Aluysio e ele extrapolavam em muito a relação já naturalmente especial entre avô e neto. Meu pai era carente e meu filho, uma criança muito carinhosa. A morte de Aluysio, em 2012, foi o trauma mais impactante da vida de Ícaro.

Ícaro e Zidane (Foto: Ícaro Barbosa)

O trauma só foi superado quando, a conselho de um amigo com experiência profissional com adolescentes, dei ao meu filho um filhote de buldogue francês que batizei Zidane. Além do nome, herdou o apelido do craque francês: Zizou. O que aquele pequeno cão ensinou a Ícaro em responsabilidade, dedicação e compromisso, talvez nenhum humano tenha conseguido.

O jornalismo — Ícaro cresceu muito em seus 23 anos de vida. Quatro anos antes, enquanto cursava História, decidiu ser jornalista em julho de 2019. Inicialmente, fui contra. Até porque, tinha feito a mesma opção na juventude. Para até hoje me indagar que historiador poderia ter sido.

Criança e adolescente criado dentro de uma redação de jornal, como eu também havia sido, ele tomou sua decisão. E alcançou evolução rápida na profissão. Sua boa bagagem de leitura e cultural o ajudou. Como a distinção do pai no temperamento: onde sou assertivo, ele era doce. Paradoxalmente, tinha preferência pela reportagem de polícia. Que é a melhor escola do jornalismo, embora desagradável à maioria.

 

Ícaro começando no jornalismo, em cobertura da enchente em Lagoa de Cima, em 30 de novembro de 2019 (Foto: Genilson Pessanha)

 

Com a adaptação do jornalismo às redes sociais, das quais ele era íntimo geracional, as assumiu na Folha a partir de 2021. Conferiu-lhes dinamismo e passou a integrar a diretoria. No tamanho físico, Ícaro não era alto nem baixo. Com seu 1,78m, tinha exatamente a minha altura e dos dois tios gêmeos maternos. E, tão logo passou a ter barba, deixou a sua crescer. Como a que sempre cultivei, desde a juventude.

 

 

Após batalhar contra a tendência à obesidade desde a adolescência, Ícaro decidiu fazer uma cirurgia bariátrica no início da juventude. Foi outra decisão pessoal dele à qual fui inicialmente contra. Mas depois da qual passou a ter um figurino bem menos largo, embora ainda corpulento, também semelhante ao meu. O que me fez perder algumas camisas, moletons e casacos que só percebia terem outro dono, quando os via vestidos nele.

A literatura — Como roupas, levou-me vários livros. Quase todos os de Homero, Heródoto, Tucídides, Plutarco, Shakespeare, Cortez, Gibbon, Nietzsche, Twain, Kerouac, Fitzgerald e Hemingway. Este, talvez, sua maior influência. Tanto pela introdução da sua intensa vida de “porre, pesca, caça, guerra” quanto da prosa jornalística como matérias de literatura.

Por conta própria, leu outros autores, como William Faulkner e Hunter Thompson, pai do jornalismo gonzo, em que se abandonou a objetividade e “isenção” jornalística. Para o repórter se assumir como personagem da história. É o que ele, ousadamente, buscava implementar em seus textos e na Folha.

Para além do jornalismo, abarcou uma compreensão sobre a prosa modernista dos EUA, da primeira metade do século XX, em contraponto histórico e conceitual com o pós-II Guerra Mundial (1939/1945), impressionante em um autodidata tão jovem. Neste sentido, escreveu um texto (confira na íntegra aqui), que cheguei a mandar a literatos, como o historiador Arthur Soffiati e poeta Adriano Moura, sem dizer quem era o autor.

Só após os dois, sempre sem favores no juízo crítico, elogiarem a consistência do texto como minha, revelei que era de Ícaro. Destaco o trecho sobre literatura e convicções:

— Convicções fortes são difíceis para qualquer escritor preservar. Fitzgerald desmoronou quando o mundo parou de dançar seu jazz. A força das convicções de Faulkner tropeçou quando ele precisou enfrentar os negros do século XX ao invés dos símbolos negros de seus livros. Thompson vacilou quando a revolução digital da internet bateu na porta de seu rancho e ameaçou sua persona e modo de vida. Todos estes escritores ficaram atolados no que parece uma crise de convicções causada, como as de Hemingway, pela natureza cruel de um mundo que se recusa a ficar parado tempo o bastante para que o enxerguem com alguma clareza.

Aluysio, Dora e eu o influenciamos no jornalismo. Mas Hemingway e Thompson estavam uma oitava acima nas suas referências em letras e vida.

 

Em 7 de abril de 2020, dia do jornalista e ainda antes de tomar conhecimento de Hunter Thompson, Ícaro elencou suas influências no ofício: Ernest Hemingay, Aluysio Abreu, Dora Paula Paes e Aluysio Barbosa (Montagem: Ícaro Barbosa)

 

O articulista — Foi com base em Thompson que ele narrou a vida e a morte, aos 52 anos, em 10 de fevereiro de 2022, de uma figura icônica da contracultura de Campos. Marcelo Silva Martins, o Pirica, era meu amigo de infância. Que conheceu e se identificou com Ícaro ainda criança de colo, para dele se tornar amigo quando adulto, sem minha intermediação.

Além de noticiar a morte de Pirica, vítima de um atropelamento, escrevi um texto pessoal sobre ele, publicado no dia 12. E só depois fui ver que, desde o dia 10, Ícaro já havia feito antes o mesmo, publicando nas redes sociais e sem me avisar. Comparando os dois escritos, sem favor de pai, pude constatar o quanto meu filho havia crescido como jornalista. O testemunho dele (confira na íntegra aqui) descrevia Pirica melhor do que fui capaz. Destaco o trecho:

 

Pirica e Ícaro no “escritório” do primeiro, na calçada da Beira Valão, em plena pandemia da Covid-19 (Foto: Fernanda Toledo)

 

— Naquele dia, assim como quando recebi o soco que foi a notícia da sua morte, lembrei de um trecho do livro que estava lendo na época, “Medo e Delírio em Las Vegas”, do jornalista estadunidense Hunter S. Thompson: “Lá vai ele. Um dos protótipos pessoais de Deus. Uma espécie de mutante de alta potência que nunca foi considerado para fabricação em massa. Muito estranho para viver e muito raro para morrer”. Numa quinta nebulosa, pensei que nenhuma combinação de palavras ou notas musicais vai ilustrar tão bem o que foi o lendário Pirica. Seja lá o que tenha significado para si mesmo e para todos aqueles tantos campistas que conviveram com ele.

A música — Ícaro, como Pirica, adorava música, sobretudo blues e rock. De tanto ouvir desde criança, foi muito além a partir de algumas influências minhas: Robert Johnson, BB King, Aretha Franklin, Janes Joplin, Beatles, Cream, Eric Clapton, Buddy Guy, Raul Seixas, Rita Lee, Barão Vermelho, Cazuza, Legião Urbana, Lobão, Nirvana, The Doors. Vocalista e letrista desta banda, Jim Morrison seria outra grande influência ao meu filho.

Fomos juntos ao show do Pearl Jam no Maracanã, em 2018. Além de algumas edições do Festival de Blues e Jazz de Rio das Ostras e similares em Campos. Agora profundamente arrependido, estava cansado e não o acompanhei no Dia do Rock Goitacá na Praça do Liceu, no sábado do último dia 6.

A política — Vários amigos em comum me disseram que Ícaro curtiu bastante. Como sua mãe me falou que ele lhe confidenciou sua maior alegria. Em meio à música, comungou seu vinho com um morador de rua. “Ele contou que bebeu a alegria do homem que tomou vinho na tampa de uma quentinha, como se estivesse bebendo na melhor taça”, repassou Dora.

Apesar da preocupação social latente em um coração maior que ele, Ícaro era um libertário. Dos que pretendem a junção do anarquismo com o liberalismo econômico. Que, cansei de explicar sem sucesso, são como água e óleo. No calor das discussões políticas, eu o chamava de “reacinha de sapatênis”. Por sua vez, ele me classificava de constitucionalista de centro-esquerda, sem que isso fosse um elogio. E seguíamos, ambos, com nossas convicções.

Companheiro de viagem — Da infância à sua idade adulta, Ícaro foi também meu grande companheiro de viagem. Pelo Brasil, muitas no Rio, algumas na serra do Espírito Santo, no Nordeste e nas cidades históricas de Minas. Mas, sobretudo no exterior, ao qual quase sempre viajávamos apenas nós, precisando contar muito um com o outro.

Em 2009, quando ele tinha apenas 10 anos, passamos 33 dias entre Turquia e Grécia. Em um roteiro histórico que montei junto com meu irmão, Christiano, padrinho de Ícaro, foi sedimentada a grande paixão do meu filho por História e cultura clássica. Como é pelo consumismo e o Pateta os que levam os filhos dessa idade à Disney.

Entre vários momentos marcantes, andamos nas ruínas históricas de Esparta durante todo um dia muito quente daquele vale do Peloponeso. E cruzamos apenas com outra pessoa: uma turista italiana de meia idade. Lembro de, em certo momento, ter-lhe dito: “Fizemos o que nem Alexandre conseguiu: Esparta é nossa!” Ao que ele, criança, sorriu com orgulho.

Ainda naquela viagem, estávamos na ilha de Ítaca, lar do mítico príncipe Odisseu, em seu batismo à “Odisseia” de Homero. Quando mergulhamos de máscara e snorkel na praia de Filiatro, das mais belas do mundo. Enquanto eu tinha praticado caça submarina desde a adolescência, ele nunca havia mergulhado.

Apesar da claridade da água azul turquesa, o Mar Mediterrâneo, por semiaberto, é pobre em vida marinha, comparado ao oceano Atlântico. De cujo fundo, Ícaro crescera ouvindo histórias. Para dar-lhe algo próximo, recorri a um velho truque da caça. Subimos a cabeça à superfície para lhe explicar antes. Após, peguei um ouriço e o esmaguei com uma pedra, estripando-o. E, como combinado, ficamos imóveis na superfície, a observar.

Antes escondidos nas pedras, os peixes surgiram para se refastelar do banquete oferecido. Enquanto o faziam, sem poder emitir som dentro d’água, Ícaro passou seu pequeno braço de criança em torno dos meus ombros. Foi sua maneira de agradecer “no mar que Ulisses cortou”, em versão submarina de Castro Alves, comungada por filho e pai.

Em maio de 2013, quando Ícaro tinha 12 anos, passamos seis dias pelo Uruguai, entre Montevidéu e Colônia de Sacramento. Em fevereiro de 2015, quando ele tinha 13 anos, junto também da minha mãe, Diva, passamos 9 dias na Cidade do México. Com tempo para passar um deles na grandiosa cidade pré-colombiana de Teotihuacán. Onde meu filho e eu subimos aos cumes das pirâmides do Sol e da Lua.

Aluysio e Ícaro navegando pelo rio Tigre, na cidade homônima de Tigre, nos arredores de Buenos Aires, na Argentina de junho de 2019

Em junho de 2019, quando meu filho já tinha 19 anos, cumprimos um roteiro de 17 dias entre Argentina e Chile. Desembarcamos em Buenos Aires, fomos para Bariloche e de lá atravessamos os Lagos Andinos até Santiago, onde passamos meu aniversário. Como presente, foi a primeira viagem internacional em que ele também foi meu companheiro de copo.

Subimos um dia ao Vale Nevado, onde Ícaro pôde ver neve pela primeira e única vez. E me sacanear muito pela minha incompatibilidade natural com o piso escorregadio de gelo. Na capital chilena, diante do Palácio de La Moneda, pudemos também testemunhar os protestos que sacudiram o país naquele ano.

Despedida em três continentes — A última viagem internacional, mais longa que fizemos, durou 45 dias entre janeiro e fevereiro deste ano. Nos quais conhecemos cinco países em três continentes. Foi também, vejo hoje, a nossa despedida. E a primeira em que ele, com um inglês já muito melhor do que o meu e mais afeito aos mapeamentos virtuais pelo celular, tomou de mim a função de guia.

 

Ícaro, no Museu Van Gogh, diante de um dos autorretratos de Van Gogh, na Amsterdã de 3 de janeiro de 2023 (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

 

Ícaro e Aluysio Abreu Barbosa nas grandes Pirâmides de Gizé, no Egito de 7 de janeiro de 2023 (Foto: Mohammad)

Na Holanda, navegamos pelos canais e as telas de Van Gogh em Amsterdã, dedicando um dia a bater pernas na capital de Haia. No Egito, conhecemos muito mais pirâmides do que as três mais famosas de Gizé, com Ícaro se aventurando sozinho dentro delas. Fomos também ao sítio pouco visitado de Tel el-Amarna, onde foi criado historicamente o conceito do Deus único.

Conhecemos a imponente Cidadela de Saladino, no Cairo. Atravessamos juntos o Egito da cidade de Alexandria ao norte, à Assuã, ao sul. Navegamos por todos os museus e o rio Nilo. Atravessamos da África à Ásia para seguirmos as pegadas de Moisés no Êxodo e vermos juntos o sol nascer no cume do Monte Sinai.

 

Aluysio e Ícaro na Mesquita de Muhammad Ali, dentro da Cidadela de Saladino, no Cairo de 23 de janeiro de 2023 (Foto: Ícaro Barbosa)

 

Em Israel, descemos na sua capital “ocidental” de Telavive. De onde fomos de carro a Eremos Grotto, dividindo só nós dois a gruta em que Jesus orava e meditava sozinho diante do Mar da Galileia. E seguimos ao Monte das Beatitudes, onde ele proferiu o Sermão da Montanha, base do cristianismo.

 

Ícaro e Aluysio na Eremos Grotto, gruta diante do Mar da Galileia, onde Jesus orava e meditava sozinho, em Emek ha-Jarden, Israeal (Foto: Ícaro Barbosa)

 

Depois fomos à cidade “oriental” de Jerusalém, percorremos toda a Via Dolorosa do Cristo. Na Basílica do Santo Sepulcro, oramos no Gólgota onde ele foi crucificado e entramos onde teria ressuscitado. No alto do Monte das Oliveiras, descemos às tumbas dos profetas Ageu, Zacarias e Malaquias, do Velho Testamento. E descemos até à base do Monte, onde Jesus chorou ao pedir que o Pai afastasse dele o cálice do suplício e da morte.

 

Ícaro e Aluysio, iluminados apenas pelas velas levadas nas mãos, no interior da Tumba dos Profetas Ageu, Zacarias e Malaquias, do Velho Testamento, no alto do Monte das Oliveiras, em Jerusalém (Foto: Ícaro Barbosa)

 

Ainda em Jerusalém, percorremos o Muro das Lamentações. E vivemos, no mesmo dia, as experiências angustiante do Museu do Holocausto e historicamente exultante do Museu de Israel. Fomos depois visitar a Palestina, até Jericó, cidade mais antiga do mundo, continuamente habitada há 10 mil anos, que vimos cercada pelo exército israelense.

 

Ícaro e Aluysio diante das muralhas de Jericó, cidade mais antiga do mundo, habitada continuamente há 10 mil anos, no sítio arquológico de Tell es-Sultan, na Palestina (Foto: Ícaro Barbosa)

 

Depois de subirmos ao Monte Gerizim, na Cisjordânia, em que os samaritanos adoram Deus segundo tradição própria, voltamos a Telavive. De onde embarcamos para Paris, para encontramos minha mãe, quase local na capital da França. Vimos os três a Catedral de Notre-Dame em reconstrução, visitamos o túmulo de Napoleão, no Les Invalides, e os Museus de Orsay e de Rodin. E, apenas Ícaro e eu, passamos um dia inteiro no Museu do Louvre.

 

Ícaro e Aluysio na disputa de espaço para ver a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, no Museu do Louvre, na Paris de 12 de fevereiro de 2023 (Foto: Ícaro Barbosa)

 

Novamente com dona Diva, saímos de Paris para visitar o Palácio de Versalhes e sua suntuosidade, ao qual Ícaro e eu fomos igualmente refratários. E seguimos até à bela comuna de Amboise, no Vale do Loire. Onde, após termos conhecido várias de suas obras, ficamos felizes ao constatar o fim de vida digno que Leonardo da Vinci teve.

 

Ícaro, Diva e Aluysio no atleier de Leonardo da Vinci no solar Clos Lucé, na Amboise de 10 de fevereiro de 2023 (Foto: Ícaro Barbosa)

 

Como ocorreu em Santiago em 2019, tivemos a chance histórica de ver neste ano de 2023, em Telavive e depois em Paris, o começo dos protestos que depois tomariam os dois países a partir das suas capitais.

Definição — Nessa grande última viagem, a melhor definição do homem que Ícaro se tornou veio do egípcio Mohammad, conhecedor profundo da cultura milenar do seu país, como dos hóspedes de todo mundo que hospedava e cujas culturas se empenhava em conhecer.

Dono de uma pousada em Saqqara, nos arredores do Cairo, após dividir algumas noites frias em seu pátio, entre a fogueira de lenha e goles de café, Mohammad formou juízo. Que dividiu apenas comigo, em inglês, apertando minha mão e olhando dentro dos meus olhos, quando nos despedimos: “You are a father blessed by God. Your son is a golden boy and a special man” (“Você é um pai abençoado por Deus. Seu filho é um menino de ouro e um homem especial”).

Amor após a morte — Troquei as primeiras fraldas de Ícaro. Como vesti seu corpo adulto e já sem vida pela última vez. Em seus 23 anos, ele foi e é muito melhor do que jamais serei. Honesto a ponto de nunca pedir dinheiro aos próprios pais, ético, inteligente, culto, alegre, atencioso, educado, generoso, amigo e humilde, sem abrir mão das suas convicções.

 

 

Como todo homem que chega muito perto do sol, para refletir mais que outros a luz, meu filho único brilhou e se foi cedo demais. Levou consigo o melhor de mim. Não compreendo a sua partida. Mas descobri que podemos amar completamente, sem entender completamente.

Fisga da entranha descobrir o que resta desse saber não poder vê-lo de novo, com seu riso fácil e sacana. Dormir, sonhar com ele vivo e acordar para lembrá-lo morto é ter pavor do acordar. Antes dele, buscava no céu noturno estrelas cadentes e variava pedidos. Depois que meu filho nasceu, só pedi uma coisa.

Meu voo mais alto, meu maior orgulho, é ser pai de Ícaro. O amei do momento em que abriu os olhos ao que eles se fecharam. Amo agora. Amarei sempre. Como a nada mais.

 

Entre o smathphone e o laptop, na mesa que herdou do avô Aluysio Cardoso Barbosa, Ícaro na redação da Folha da Manhã (Foto: Rodrigo Silveira)

 

ícaro voador

 

na descoberta do eixo

ele gira seu pequeno corpo

busca com os olhos

me identifica neles

simula espanto

e ri

ri estridente como os anjos

agita seus bracinhos morenos

bate palmas

e leva as mãos à boca

escancarada em riso

desdentada e ávida de gostos

 

eu, que nunca cri

ser motivo de tanta alegria

por estar ao lado de alguém

percebo meu choro

no reflexo dos seus olhos

 

cambuci, 15/11/1999

 

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Este post tem 19 comentários

  1. Paulo

    Uma linda homenagem.
    Descanse e paz e que Deus conforte a todos nesse momento tão difícil.

  2. Ruy

    Que coisa triste.

  3. Gedaias de Azevedo Carneiro

    Sinto muito ele ter ido tão jovem, seu único filho.

  4. LEANDRO BASTOS LOPES

    Fiquei surpreso com o ocorrido e desejo meus sentimentos a família. Vi o Ícaro pela primeira vez na redação e já havia percebido um grande potencial ali. Descanse em paz!

  5. Ana Helena Nogueira Ribeiro Gomes

    Estou em prantos. Já estava pronta a desabar qdo recebi a notícia da partida dele no domingo. Segurei, estava em casa do meu filho com a família, me contive até agora. Sou um mar de lágrimas por ele, por vc, por mim, por Diva.
    Tenho lido os poemas seus e agora esse texto de profundidade e sentimento. Volto a chorar por todos os meus que partiram, acrescido dessa dor sem palavras que é ver vc perder o filho tão amado. Fique em paz, com Deus! Meu coração no seu, Aluysio.

  6. Rafael Abreu

    Meu querido primo Ícaro. Sua partida tão precoce é uma perda inestimável para mim. Estreitamos muito nosso convívio e relação nos últimos dois anos e meio quando pude, mais intensamente, desfrutar da sua amizade e ao mesmo tempo pude cuidar e aconselhar, como primo mais velho e mais experiente, passando adiante, para sua geração, esse forte e admirável hábito, característico da nossa família, que eu havia recebido e aprendido com meus primos mais velhos, especialmente com seu pai. Sentirei muito a sua falta. Será sempre, por mim, lembrado e ressaltado como meu primo amado, homem de coração puro, caráter íntegro e amigo verdadeiro.

  7. NinoBellieny

    Chove no meu teclado, dentro de casa, mas chove. Um logo temporal a espera do sol.

  8. CARLOS MANHÃES

    LINDO HOMENAGEM…
    QUE DEUS TE CONFORTE E TODA À SUA FAMÍLIA.
    ATT.
    CARLOS MANHÃES

  9. Michel O Haddad

    Homenagem emocionante . Que Deus possa confortar a familia .

  10. Robson Colla

    Não há o que se falar a um pai e uma mãe que perdem um filho a não ser que esperamos que ele esteja em um lugar melhor. A você, Aluisio, e à Dora, desejo, sinceramente, que tenham força, muita força nesse momento.

  11. Flavio Mussa Tavares

    Caro Aloysio!
    Emocionado com este texto e amargurado com a perda súbita de quem aprendi a gostar na adolescência.
    E hoje , quase quatro anos da perda de meu filho Alexandre que também, como o filho de Dédalo e o macedônio, buscou voos improváveis.
    Deixo meu abraço

  12. Edilson. 17/05/2023

    O senhor resgata a alma dos seus servos, e nenhum dos que nele confiam será condenado..Deus abençoe a família e amigos nesse momento muito difícil que é a dor da perca..agora o que fica é só saudade e lembranças da pessoa amada querido e maravilhoso que ele foi..Ícaro Barbosa,,meus sentimentos à todos os familiares!

  13. Getúlio Pereira Bretas

    Linda homenagem, mas nada supera a dor da perda de quem amamos….nossos sinceros sentimentos…..

  14. Whasen

    Linda homenagem! Dura de se ler e quem dirá de escrever. Que nosso amigo agora esteja em um lugar de muita luz porque ele merece. Que coração puro! Nunca vou esquecer da inteligência e bondade desse rapaz, ficam só boas lembranças.

  15. Rita Boechat

    Meu carinho nessa hora e orações, quem amamos nunca está longe, como pode estar longe, quem está dentro de nós.

  16. César Peixoto

    Caro jornalista Aluysio Barbosa ,meus sentimentos por esse momento tão difícil que todos da família estão passando.Peço a Deus que de força a todos para superar esse momento tão difícil.

  17. Maria Irene Acquaviva de Carvalho

    Meus mais profundos sentimentos, Aluysio, a você e a todos os seus. Que Deus conforte vocês.

  18. Rose David

    Meu abraço afetuoso a você e à Dora. Impossível dimensionar a dor de pais que enfrentam a partida tão precoce de seus filhos. Só posso pedir a Deus que traga conforto aos corações de vocês. Tenham o meu carinho.

  19. Eliana

    Meus sinceros sentimentos!
    Deus conforte a todos.

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