Vazio da órbita perdida — Uma história do basquete

 

Com a pequena filha no colo, Nikola Jokic comemorou na última segunda-feira o primeiro título do seu Denver Nuggets na NBA, em que o revolucionário pivô sérvio bateu os recordes individuais do melhor basquete do mundo

 

Desde que Michael Jordan conquistou seu sexto e último título da NBA pelo Chicago Bulls, contra o Utah Jazz de Karl Malone e John Stockton, não acompanhava mais o melhor basquete do mundo com a mesma intensidade. Naquele mesmo ano de 1998 descobrira que seria pai do primeiro e único filho. E foi capturado por outra esfera, ainda no ventre materno, em torno da qual passou a orbitar.

 

Michael Jordan acima de todos os outros

 

Kareem Abdul-Jabbar e sua jogada-assinatura, mesmo sobre Hakeem Olajuwon: o skyhook (“gancho do céu”)

O filho nasceu em julho de 1999. E o pai passou os 23 anos seguintes tentando dizer-lhe por que Jordan foi o maior gênio que viu entre os seus contemporâneos. O humano mais à frente de todos os demais, em seu próprio tempo, numa determinada expressão intelectual e física de arte. Mas, embora tenha herdado vários gostos paternos, o filho seria bola no aro em relação a basquete. Nos esportes, apenas o boxe foi legado continuado.

Apesar de devoto do gênio de Jordan, o pai torcia para o Los Angeles Lakers. Desde os anos 1980, quando descobriu o basquete ainda criança, com o Showtime de Magic Johnson e Kareem Abdul-Jabbar. Juntos, o maior armador de todos os tempos e o lendário pivô conquistaram cinco títulos da NBA. Dois deles contra o Boston Celtics do ala Larry Bird, considerado o maior jogador branco da história, na grande rivalidade daquela década.

 

Larry Bird e Magic Johnson rivalizaram, entre Boston Celtics e Los Angeles Lakers, o melhor time e jogador de basquete do mundo nos anos 1980

 

Não por acaso, foi ao derrotar o Lakers de Johnson, já sem Jabbar, nas finais de 1991, que o Bulls abriria sua dinastia. Seguida dos títulos de 1992, 1993, 1996, 1997 e o derradeiro de 1998. Com o intervalo momentâneo do basquete dado por Jordan para jogar baseball.

Depois de Jordan, tudo mais que pudesse ver em basquete parecia ao pai inferior. Tim Duncan foi um grande ala-pivô e pivô, à altura de Jabbar, onde é difícil não padecer de vertigem. Ganhou cinco títulos na NBA. Os dois primeiros, em 1999 e 2003, ao lado de outro super-pivô, David Robinson, com quem compunha as chamadas “Torres Gêmeas”.

 

As “Torres Gêmeas” do San Atonio Spurs, Tim Duncan e David Robinson

 

Já sem Robinson, Duncan contou com o armador francês Tony Parker e o ala-armador argentino Manu Ginóbili, sem favor o melhor basqueteiro produzido na América Latina, para ganhar mais três títulos: 2005, 2007 e 2014. Embora Parker e o Ginóbili já estivessem no San Antonio desde a conquista de 2003.

 

O armador francês Tony Parker, Tim Duncan e o ala-armador argentino Manu Ginóbili, maior jogador de basquete já produzido na América Latina, comemoram o título de 2014 da NBA, contabilizando os anteriores

 

Como Duncan, o jogador mais parecido em estilo com Jordan chegou a jogar contra ele. E, melhor, Kobe Bryant só jogou pelos Lakers. Tinha o mesmo instinto ofensivo, aplicação defensiva, plasticidade e “capacidade de voar” de Jordan. Não bastasse, os dois alas-armadores tinham a mesma dedicação inumana aos treinos. E a mesma altura: 1,98 metro.

 

Michael Jordan e Kobe Bryant tinham a mesma altura, o mesmo estilo de jogo e até a mesma característica pessoal da língua para fora nos momentos de concentração dentro de quadra

 

Kobe formou uma dupla arrasadora dentro de quadra com Shaquille O’Neall. Outro super-pivô, era dominante no garrafão pela altura e massa muscular, com um poder de enterrada nunca antes visto na NBA. Mas era também descuidado com a forma física, passivo na defesa e tinha uma constrangedora dificuldade no arremesso livre.

 

Kobe Bryant e Shaquille O’Neal: casamento perfeito nas quadras, com três títulos da NBA pelos Lakers, geraria o divórcio fora delas

 

O trio se completava com o técnico Phil Jackson fora de quadra. De onde comandara os seis títulos do Bulls de Jordan e Scottie Pippen. Com Shaq e Kobe, o treinador ganhou mais três, consecutivos, de 2000 a 2002. Após a saída de Jackson e Shaq, e de trocar o número 8 pelo 24, Kobe virou a grande estrela do Lakers. Escudado pelo pivô espanhol Paul Gasol, menos dominante, mas mais técnico que Shaq, conquistou mais dois títulos da NBA: 2009 e 2010.

 

Kobe Bryant e o pivô espanhol Paul Gasol conquistaram dois títulos da NBA pelos Los Angeles Lakers: 2009 e 2010

 

Pesa uma diferença de Jordan para Duncan e — mesmo com os movimentos de corpo muito parecidos — Kobe. Jordan disputou seis finais de NBA, chamou o jogo para si em todas e levou as seis. Kobe jogou sete finais e ganhou cinco. Duncan teve aproveitamento maior: chegou a seis finais para conquistar as mesmas cinco.

Mal comparado a Jordan, o ala LeBron James disputou 10 finais. Mas só conquistou quatro: pelo Miami Heat em 2012 e 2013, pelo Cleveland Cavaliers em 2016 e pelo Lakers, em 2020. Este ano, aos 38 de idade e ainda atuando em alto nível, ultrapassou Jabbar como maior pontuador da história da NBA. Ainda assim, fica abaixo de Air Jordan, e outros, como o mais decisivo.

 

LeBron James quando passou Kareem Abdul-Jabbar, em 8 de feveriro deste ano, como maior pontuador da história da NBA

 

O fato é que LeBron jogava pelo Lakers do pai. Que disputaria as finais da Conferência Oeste dos EUA (+ Canadá), pela vaga à grande final com o vencedor da Conferência Leste. Nessa expectativa, teve sua última conversa com o filho. Quando este lhe disse que vira o filme “Air: A História por trás do Logo”, de Ben Affleck (2023), na PrimeVideo. Que conta como Michael Jordan revolucionou a indústria dos esportes, antes mesmo de revolucionar o basquete.

— Acho que finalmente eu vou querer ver Jordan jogar, papai! — disse, a partir da curiosidade gerada pela paixão herdada pelo cinema.

 

 

O filho morreria precocemente, aos 23 anos, na noite daquela mesma tarde. Não estava em seu destino ver Michael Jordan jogar.

Náufrago sem ter ao que se agarrar, o pai passou a acompanhar, como tinha feito pela última vez com o Chicago Bulls daquele 1998 de quando se descobriu “grávido”, as finais da Conferência Oeste de 2023. Que seriam disputadas entre o seu Lakers e o “azarão” Denver Nuggets. Mirou em LeBron James e acertou no pivô sérvio Nikola Jokic. Que, na melhor de sete jogos, comandou a varrida dos favoritos por 4 a 0.

Na final contra o aguerrido Miami Heats, que perdeu o primeiro jogo da final para o Denver e venceu o segundo para empatar a série, o terceiro confronto de 7 de junho foi encerrado com mais um espetáculo de Jokic. Que marcou 32 pontos, deu 10 assistências e pegou 21 rebotes. Extasiado, o pai enviou mensagem de WhatsApp ao irmão, que sabia estar vendo o jogo, já avançadas as 23h:

— Está vendo? Jokic é um monstro! Na capacidade de um pivô ser também armador e chutador de 3 pontos, só vi algo parecido em Arvydas Sabonis — disse em referência ao pivô soviético, depois lituano, que foi jogar na NBA já com 31 anos e quase inutilizado por lesões. Mas que, mesmo assim, marcou a história do Portland Trail Blazers entre os anos 1990 e 2000.

 

O pivô lituano Arvydas Sabonis, em seu auge, quando ainda jogava pela seleção da União Soviética, que conduziu à medalha olímpica de ouro em Seul-1988

 

— Vi, sim. Jokic joga demais, cracaço! Ele e o Jamal Murray estão fazendo uma dupla infernal. Mas o Miami não está morto. Esse time não desiste nunca — retrucou o irmão, já na manhã seguinte.

— Jamal está disputando com Jimmy Butler (do Miami Heats) para ver quem é o melhor ala-armador do seu tempo. Jokic é diferente. Ele disputa com Kareem Abdul-Jabbar, com Hakeem Olajuwon (bicampeão pelo Houston Rockets, em 1994 e 1995, no intervalo de Jordan), com Tim Duncan e com Arvydas Sabonis para ser o melhor pivô de todos os tempos. No que dá até significado à minha vida: ter essa dimensão e poder vê-lo jogar em meu tempo. O que esse sérvio faz na quadra é como se Zidane e Ronaldo, ou Modric e Benzema, tivessem suas melhores características reunidas em um mesmo jogador de futebol — exemplificou o pai.

 

Jamal Murray conduz a bola pelo Denver Nuggets, sob a marcação de Jimmy Butler, do Miami Heats

 

O Denver de Jokic não seria mais alcançado. Em 12 de junho, na sua casa, a Ball Arena, por 4 jogos a 1, sagrou-se campeão da NBA pela primeira vez. Comandado pelo primeiro jogador a liderar as três principais estatísticas do basquete nos playoffs: pontos, rebotes e assistências. Na tecla SAP, o sérvio liderou toda a fase final nas cestas marcadas, nas que impediu o adversário de fazer e nas que deu para os companheiros fazerem.

 

 

Com 2,11 metros e 129 kg, Jokic não voa como Jordan. Mas é tão completo, e mental, quanto. Dificilmente chegará a ser tão decisivo. Aos 28 anos, o tempo dirá.

Encerrada a temporada, conquistado o título coletivo, reescritas as melhores estatísticas individuais do melhor basquete do mundo, Jokic foi perguntado como se sentia. E disse com a pequena filha ao colo: “É bom. É bom. O trabalho está feito. Agora podemos voltar para casa”.

Pela TV, outro pai assistia. Dividido entre a gratidão e o vazio da órbita perdida.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

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