Não sou simpatizante de Donald Trump, da extrema-direita ou de nenhum político populista de qualquer matiz ideológico. Mas, como analista impessoal, sou obrigado a reconhecer que a vitória de Trump e do Partido Republicano sob sua liderança foi inquestionável. Não surpreendeu por ter ocorrido, possibilidade apontada por todas as pesquisas. Mas por sua dimensão acachapante, muito além de qualquer margem de erro matemática.
Eleição suburbana — No que a matemática explica, não houve surpresa demográfica. Os democratas continuaram a ser um partido urbano. Representando 29% dos eleitores efetivos de um país onde o voto não é obrigatório, 59% deles votaram em Kamala Harris e 38% em Trump. Como os republicanos continuaram a ser um partido rural. Representando 19% dos eleitores efetivos, 64% deles votaram em Trump e 34% em Kamala. Foi nos subúrbios que a eleição foi definida. Representando a maioria de 51% dos eleitores efetivos, 51% deles votaram em Trump e 47% em Kamala.
Voto do homem negro — Os motivos são vários e complexos. Vão do “é a economia, estúpido!”, na sentença de Jim Carville que favoreceu aos democratas nos anos 1990 com Bill Clinton, à ressaca daquele tempo de globalização com a desindustrialização e perda de postos de trabalho nos EUA. Que fez os estados-pêndulo da Pensilvânia, Michigan e Wisconsin votarem Trump em 2024, por não verem a reversão do quadro após terem votado Biden em 2020. O aumento do voto do homem negro dos EUA nos republicanos, por conta da inflação, é um retrato disso.
Voto dos homens e mulheres brancos — Há ainda a questão imigração ilegal, comum à Europa, que jogou também os estados-pêndulo do Arizona e Nevada, na fronteira noroeste do México e da América Latina, no colo de Trump. O voto da maioria dos homens e também das mulheres brancas dos EUA nos republicanos é um retrato disso.
Voto religioso e latino — Inegável ainda o soçobrar da esquerda identitária. Sobre a qual o cientista político estadunidense Mark Lilla já havia alertado em artigo no New York Times, “The End of Identity Liberalism”, desde a primeira vitória presidencial de Trump, em 2016. Para, em 2024, ainda esbarrarmos na constatação óbvia do cientista político brasileiro Luis Felipe Miguel sobre a nova vitória de Trump, muito maior que a anterior: “O apelo identitário se mostra cada vez mais contraproducente, afasta mais eleitores do que congrega”. O voto religioso e dos latinos contra a retomada do direito ao aborto proposto por Kamala é um retrato disso.
Identitarismo x revolução — Nos EUA, no Brasil e no mundo, o narcisismo identitário oxida — “apodrecendo o cante/de dentro, pela espinha” como versejou João Cabral — o campo político progressista. Trocar a utopia da revolução pelos dogmas de fé do identitarismo, paradoxalmente, tirou a própria identidade da esquerda. Que cedeu à direita a perspectiva da ruptura violenta com o status quo. Como se tentou no Capitólio com os trumpistas de 2021, ou na Praça dos Três Poderes com os bolsonaristas de 2023. No início de 2024, o filósofo marxista Wladimir Safatle reconheceu: “A extrema-direita é hoje a única força política real do país, porque é a força que tem capacidade de ruptura, tem estrutura e coesão ideológica”.
O mundo numa sala de estar — Nesse sentido, foi emblemática a derrota até certo ponto humilhante de Kamala. Ao encarnar e colidir de face com a definição da ensaísta e crítica social estadunidense Camille Paglia: “Mulheres burguesas de classe média que pensam poder transformar o mundo na sua sala de estar”. À virilidade do campo progressista, a passagem do tempo pode ser melhor observada no que há de comum, com todas suas particularidades e diferenças, na velhice de Lula e Biden.
A bolha de Kamala — Outra observação aparentemente contraditória entre direita e esquerda, mas precisa, foi da jornalista Sandra Coutinho, da Globo News: “O bilionário (Trump) está falando para os mais pobres. E a mulher que se vendeu o tempo todo como alguém que veio da classe média, que viveu o ‘sonho americano’, que é filha de imigrantes e conseguiu chegar a uma universidade de prestígio, se formar em Direito e chegar onde ela chegou, ela fala para a elite (…) Kamala Harris só teve bom desempenho (eleitoral) nas elites. Ela falou para uma bolha muito restrita, uma bolha liberal, uma bolha de poder aquisitivo muito alto”.
A bolha de Boulos e Jefferson — Quem acompanhou, nas pesquisas e urnas, o desempenho da esquerda com Guilherme Boulos (Psol) e Professor Jefferson (PT), candidatos a prefeito, respectivamente, de São Paulo e Campos, pôde constatar o mesmo elitismo na fatia majoritária dos seus eleitores. E a contrapartida nos vencedores, identificados como de direita e maciçamente votados pelos mais pobres: Ricardo Nunes (MDB) e Wladimir Garotinho (PP).
Valor retórico — Se Trump mente demais, não há verdade em ignorar que outras coisas podem importar mais à decisão da urna. A eleição que ele perdeu em 2020 não foi fraude e a derrota de Kamala em 2024 não foi misoginia. Foi a vontade soberana do voto. Chamar quem vota na direita de “fascista” e quem vota na esquerda de “comunista” tem o valor retórico da criança de creche que chama de “bobo” e “feio” o colega de quem discorda. Com o detalhe: na discussão política nivelada a isso, o placar favorável à direita sugere os 7 a 1 da Alemanha.
Orbanização dos EUA? — O que esperar do novo governo Trump? Se cumprir o que ameaçou em campanha e subordinar politicamente o Judiciário e o Pentágono, seria a orbanização — em relação ao que Viktor Órban fez na Hungria — da democracia mais longeva e poderosa da Terra. Trump agiria legitimado desta vez não só pela vitória no colégio eleitoral dos EUA, mas também pelo voto popular. Com maioria no Senado, Câmara e Suprema Corte, teria como freio e contrapeso os militares, dos quais voltará a ser comandante em chefe, e a Constituição.
Anistia a Bolsonaro? — Que influência isso terá ao Brasil? Para o jornalista Jamil Chade, do UOL: “No Palácio do Planalto, a ordem é manter relação de ‘pragmatismo’ (…) Mas uma ofensiva protecionista de Trump que afete produtos nacionais, sua guerra comercial com a China, a elevação da taxa de juros ou envolvimento no debate de anistia a Jair Bolsonaro podem forçar o Brasil à mudança de rumo (…) Com Elon Musk como cabo eleitoral, Trump poderia incrementar essa pressão. Ainda no mês de novembro, uma missão de deputados bolsonaristas deve também viajar para Washington, na esperança de elevar a pressão”.
O que é simples — Ademais, talvez não seja coincidência que, em 2025, teremos a volta de Trump à Casa Branca e só 12% dos brasileiros governados por um(a) prefeito(a) de esquerda. O que, por fim, leva a uma explicação relativamente simples. Contra Trump, Kamala foi a vice do governo popularmente mal avaliado de Biden. Em tese e antítese, isso explica todas as eleições que cobri jornalisticamente este ano. Das municipais do Brasil, em que pude antecipar 11 prefeitos; às federais dos EUA, cujo tamanho do resultado ninguém pôde prever.
Em nenhuma eleição de 2024, o ano que não acabará à esquerda do mundo, houve vitória maior que a de Trump.