

Um amigo no Supremo? A indicação de Jorge Messias
Por Edmundo Siqueira
O gesto presidencial de escolher um nome para o Supremo Tribunal Federal (STF) é sempre, por definição, uma operação de poder, mesmo que tenha verniz de solenidade. Quando Lula anunciou Jorge Messias — o atual Advogado-Geral da União — para a vaga deixada por Luís Roberto Barroso, a avaliação primeira não foge à questão técnica, mas é carregada de simbolismo, cálculo e, claro, controvérsia. O problema é que não se indica um ministro do Supremo como quem escolhe um secretário de gabinete — pelo menos não se deveria fazê-lo.
A indicação de alguém para o STF deve levar em conta que essa pessoa atuará na guarda da Constituição, sendo alguém com poder suficiente, e pela força do cargo, para transformar política em Direito, e vice-versa. Em um Supremo que teima em legislar — por motivos justos e por vezes também conveniência política —, e que acumulou poder real e simbólico na última década no Brasil, passa a ser um questionamento válido: por que Messias? E por que agora?
Messias tem currículo que o sustenta na indicação. Tem formação em Direito pela UFPE, e doutorado pela UnB. E algo que poucos possuem no órgão máximo do Judiciário brasileiro, que é conhecimento amplo da máquina pública. Ocupou diversos cargos, em governos distintos, com aparente bom trânsito institucional. Todavia, isso não afasta as sombras de desconfiança de sua indicação.
Messias é figura conhecida do núcleo petista — “Bessias”, na anedota que o popularizou nos tempos turbulentos da Lava Jato — e hoje ocupa o cargo de AGU, braço jurídico direto do Executivo. A nomeação de alguém tão próximo do presidente ao Supremo suscita a mesma suspeita que teria um escritor quando nomeasse o próprio editor para julgar sua obra: possibilidade de conflito, risco de confundir defesa do governo com guardião da Constituição.
Há outro aspecto, esse de cunho político-religioso: o aceno evangélico. Messias é declaradamente fiel da religião protestante e transita bem entre setores evangélicos do Congresso — um sinal que Lula obviamente lê como ponte política num país em que a população evangélica tem força eleitoral crescente. Porém, mesmo justificando-se politicamente em alguma medida, não é, em nenhuma democracia liberal que se preze, motivo de indicação à Suprema Corte. E o Brasil é uma democracia liberal, até que se prove o contrário, e um país laico.
Transformar a cadeira do Supremo numa bandeira de conciliação religiosa pode até ser estratégia; só que o Supremo, quando tudo funciona como deveria, é o espaço em que crenças pessoais devem perder o tom diante da função pública laica. Indicar um ministro com apelo confessional para “agradar” bancadas é um atalho perigoso. Confere representatividade — talvez —, mas também abre caminho para leituras de instrumentalização.
Se não bastasse, há ainda o atrito com o Senado. Tudo aponta para um choque, se não institucional diretamente, de bastidor. O presidente da Casa, Davi Alcolumbre, tinha outro indicado, o ex-presidente da Casa, Rodrigo Pacheco. A indicação de Messias passa pelo Senado, como manda a Constituição, que deverá calibrar se avaliza uma escolha de governo ou se reafirma seu papel de freio e contrapeso. Caso opte pela segunda opção, será a sexta vez em 131 anos.
Não se pode, contudo, reduzir a crítica à suspeita de amizade ou à intolerância religiosa. A indicação exige análise técnica. Messias tem produção acadêmica reconhecida: sua tese sobre centro de governo e atuação da AGU está disponível em repositórios da UnB. E revela um operador do Direito que pensa o Estado como máquina complexa. Não é um marinheiro de primeira viagem.
Em tese, isso o habilita. A dúvida é outra: a experiência de um advogado-geral pautado pela defesa dos interesses do Executivo confere independência suficiente para julgar, sem ressentimentos ou deferências, processos que atinjam a administração federal? A resposta não é meramente retórica; ela vive na tensão entre a formação do magistrado e a sua lealdade instituída.
Há também um problema institucional mais profundo, que exige comparação: em países consolidados, o sistema de escolha dos juízes de cúpula segue modelos diversos, cada qual com suas vantagens e fragilidades. No Brasil, a regra é constitucionalmente simples: o presidente escolhe; o Senado sabatina e aprova por maioria. Em muitas democracias, porém, há filtros e comissões independentes que reduzem o arbítrio político. De comissões de seleção técnicas, como na Noruega e Dinamarca, a modelos de nomeação colegiada em outra parte da Europa.
Lula podia indicar um técnico de maior produção como jurista, um negro, uma mulher ou outro perfil que atendesse ao seu campo político mais à esquerda. Ou mesmo um jurista sem arestas políticas e com perfil de independência clara. Mas, preferiu Messias. É legítimo e legal? Sim. Prudente? Isso já é outra conversa.
Não se trata de patrulha sem razão. Se Messias for aprovado, caberá a ele demonstrar que a lealdade à Constituição se sobrepõe a quaisquer laços, que a fé pessoal não se transforma em doutrina pública e que a amizade com o chefe do Executivo não se materialize em suas sentenças. A ver.
Publicado hoje na Folha da Manhã.