Leitor assíduo há anos do Elio Gaspari, a quem considero o maior jornalista brasileiro vivo, me surpreendi com a apaixonada resenha do filme polonês “Ida” em sua coluna do último domingo (15/02). Primeiro porque não me lembro de nenhuma indicação de cinema anterior feita por Gaspari. Ademais, a economia nos elogios é a marca registrada do jornalista, seja qual for o assunto.
Bem, o fato é que depois do carnaval de rua no Flamengo, busquei ontem (16/02) um cinema no vizinho Botafogo para conferir “Ida”. E se trata realmente de um grande, grande filme! Menos pela história recente da Polônia eviscerada em cruz pela suástica nazista de Hitler e a foice comunista de Stálin, com franca colaboração polaca aos dois genocidas estrangeiros e suas ideologias totalitárias. Mas se fosse apenas por isso, outros filmes poloneses recentes, como os necessários “Poklosie” (2012), de Wladyslaw Pasikowski, ou “Katyn” (2007), do mestre Andrzej Wajda, seriam mais contundentes.
Bem verdade que as duas protagonistas de “Ida”, Agata Trzebuchowska (a noviça Anna, que se descobre a judia Ida Lebenstein, às vésperas de fazer os votos de freira) e Agata Kulesza (sua tia materna Wanda Gruz, juíza de direito, tabagista inveterada, alcoólatra, de vida sexualmente repleta e vazia de sentido) têm atuações pra lá de convincentes, no roteiro ambientado nos anos 1960, assinado por Rebecca Lenkiewicz e pelo diretor Pawel Pawlikowski. Mas menos do que a comovente história do resgate (e ajuste de contas) comum de duas mulheres tão diferentes, é a maneira como ela é contada que salta da tela à retina como maior virtude do filme.
Assinada por outra dupla, Ryszard Lenczewski e Lukasz Zal, a fotografia em preto e branco de “Ida” é a mais deslumbrante feita há algum tempo no cinema do mundo. Buscado seu paralelo imagético cronologicamente mais próximo, talvez o encontrássemos num filme brasileiro: “Heleno” (2012), dirigido por José Henrique Fonseca e estrelado com brilho por Rodrigo Santoro, em outra estupenda fotografia em branco e preto, da lavra do gênio Walter Carvalho.
Regado pela música de Mozart e John Coltrane, “Ida” não é filme para todos os gostos, sobretudo ao da maioria domesticada pelos efeitos especiais e a velocidade vertiginosa de Hollywood. Mas é na festa maior da indústria cinematográfica dos EUA, na entrega do Oscar da noite de hoje, que concorrerá às estatuetas de filme estrangeiro e (óbvio) fotografia. Quer ganhe ou perca, não está em cartaz, nem deverá ser exibido em Campos, onde o padrão da programação dos seus dois cinemas é ditado pelo nível do público.
No caso, quem fica mal na fotografia não é essa nova joia de uma cinematografia que já rendeu ao mundo diretores do calibre de Roman Polanski (“O Pianista”, de 2002) e Krzysztof Kieslowski (“Não Amarás”, de 1988), além do já citado Wajda. E para quem não tem a menor ideia de quem eles sejam, meus parabéns! A exibição de filmes estrangeiros dublados que predomina há algum tempo na planície goitacá, baseada na premissa de que espectador de cinema é analfabeto, foi feita exatamente para você.
“Ida”, com certeza, não!
Publicado hoje, na edição impressa da Folha Dois
Confira o trailer do filme:
Perfeita a crítica ao som dublado nos cinemas e nos canais de tv . Em alguns, hoje, não se tem mais a possibilidade de legenda, inclusive! Tipo tudo ou nada! Sinceramente, a sensação por tudo q vem acontecendo no país é de que nada mais tem jeito. O Brasil anda para trás em tudo…
…faltou dizer que a qualidade dos filmes escolhidos para serem exibidos aqui na planície, visa tão somente o lado comercial dos proprietários das salas. Numa cidade carente de cultura isso é realmente desanimador… Quem quer e gosta de pensar mais profundamente as questões, tem que ir para a capital assistir teatro ou bons filmes..ou esperar para usar a smart tv e encontrar o que passa longe daqui, comprar livro pela internet. O restante quer praia, muita birita e exibir-se na ” night”. Coisas da terrinha….
Achei a crítica muito relevante, não só ao filme mas também aos cinemas da cidade. Só acho um pouco perigoso julgar os gostos das pessoas e generalizar dessa forma. Tenho muito cuidado com essas coisas pois pode parecer que só o que é “cult” ou europeu (de preferência independente) é válido, acho que tem muito a ser analisado tanto no conteúdo mais popular quanto naqueles que o demandam, filmes para pensar são muito bons e importantes, mas quem dita o que é bom e o que é ruim? Quem ensinou os padrões para nós? De qualquer forma acho que o texto sobre o filme é muito bom e abre espaço para boas reflexões.
Cara Laila,
Antes tarde do que nunca, agradeço sua generosidade para com a crítica. Qt à indagação do seu segundo comentário, devemos partir do princípio de que os cinemas em Campos são empresas, que buscam lucro. Se a maioria dos filmes estrangeiros que passam nas telas da planície são dublados, a opção não é aleatória, mas baseada em pesquisas de mercado que apontam essa preferência explícita do público campista. Daí, a lógica aponta para duas conclusões possíveis: ou o espectador de cinema médio campista é analfabeto, ou então sabe ler, mas não gosta, o que faria dele um semianalfabeto funcional.
Abç, grato pela chance do debate e bom início de semana!
Aluysio
Cara Vivi,
Assim como a Laila, desculpe vc tb pela demora no retorno. Creio ainda que a resposta a Laila tb atende parte dos seus questionamentos. Concordo que as generalizações são perigosas, embora às vezes necessárias, sobretudo qd a partir delas são impostos padrões sobre toda uma coletividade heterogênea, como é o caso da exibição dos filmes estrangeiros em versão majoritariamente dubladas nos cinemas de Campos. Não acho que “só o que é ‘cult’ ou europeu (de preferência independente) é válido”. Para ficarmos só nos três mestres poloneses que citei na crítica, há filmes do Polanski dos quais não gosto, acho a famosa trilogia das cores do Kieslowski um saco, e o último filme mais recente do Wajda que assisti, “Walesa” (2012), considerei nada mais que mediano. Por fim, discordo veementemente desse relativismo sobre o que é bom ou não. Lógico que algumas coisas variam de sensibilidade à sensibilidade, outras não: são mesmo falta de referência, nessa acefalia niilista pós-moderna de quem acha que o mundo só passou a existir depois do próprio nascimento, nesse messianismo do eu, sem sermão da montanha nem milagres, que leva do nada a lugar nenhum. Como bem definiu o trompetista Wynton Marsalis: “Shakespeare não desce a você, Beethoven não desce a você. É você que tem que se esforçar para chegar mais alto na tentativa de entendê-los. E qd chega lá, recebe como prêmio essa visão de cima, que nunca teria se não se esforçasse para compreender e atingir algo superior”.
Abç, bom começo de semana e obrigado pela chance do debate!
Aluysio