Tentar resumir toda a complexidade política, religiosa e histórica por trás da guerra civil na Síria, bem como seus reflexos diretos tanto na morte por afogamento do menino refugiado Aylan Kurdi, em 2 de setembro, quanto no massacre de 130 pessoas, a tiros de fuzil e explosões, na última sexta-feira 13, em Paris, é pretensão demais para este prólogo em prosa à poesia. Mas a escolha sobre a vida e a obra do poeta sírio nascido Ali Ahmad Said, que se tornou conhecido no mundo literário como Adonis, é uma tentativa modesta nessa direção.
Só recentemente conheci o autor, considerado o maior nome da poesia árabe moderna, e parte da sua obra. Quando ele esteve presente na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2012, uma amiga muito querida, que também estava por lá, me trouxe de presente o livro “Adonis — [poemas]”, coletânea editada pela Companhia das Letras, elaborada e traduzida pelo também poeta Michel Sleiman, professor de língua e literatura árabe na Universidade de São Paulo (USP), com impecável apresentação de Milton Hatoum, outro escritor, tradutor e professor.
E, como o assunto é poesia, talvez não seja irrelevante lembrar que a Flip de 2012 começou no final de junho, exatamente o mesmo mês e ano em que o oceano Atlântico levou o bar de Neivaldo Paes Soares (1957/2015), instalado na antiga casa de barco da família Aquino, no Pontal de Atafona. Na, literalmente, última noite do bar ainda de pé, já açoitado por Iemanjá em sua face norte, foi com essa amiga que eu e Neivaldo bebemos e proseamos até madrugada alta, iluminados pela luz bruxuleante das lamparinas e lampiões.
Um ano antes, em junho de 2011, quando da morte de Suad Moussallem, esposa do médico e amigo Makhoul Moussallem, testemunhei aqui a ressalva satírica aos ocidentais feita pelos indivíduos do Oriente Médio esclarecidos em relação à Grécia Antiga, à qual por sua vez se deve a invenção da filosofia, do teatro, da democracia, da individualidade humana e da tal Civilização Ocidental: “Eles pensam que os gregos são deles”. De fato, assim como a filosofia e, no seu rastro, todas as ciências modernas, tiveram início histórico com Tales de Mileto (624/558 a.C.), colônia grega na Ásia Menor, onde hoje fica a Turquia, perto de Bodrum, praia na qual, 26 séculos depois, deu o corpo inerte e pálido do menino Aylan.
Se de Tales se dizia, desde a Antiguidade, ser filho de uma fenícia (libanesa), igualmente fenícia em sua origem, antes de ser agregada à mitologia pagã dos antigos gregos, é a fábula de Adonis, nascido de uma árvore para se tornar um símbolo de mistério da natureza. Na definição de Hatoum: “um deus da vegetação e da fertilidade, ligado ao ciclo de nascimentos, mortes e renascimentos”. A escolha do pseudônimo do poeta sírio, longe do acaso, tem a intenção de reintroduzir essa dimensão mítica e pagã pré-islâmica no mundo muçulmano, parido nas revelações do profeta Mohammad (Maomé), no séc VII d.C., que fundamentariam o árabe como língua literária na poesia do Corão, livro sagrado do Islã.
Educado no liceu francês de Tartus, cidade portuária síria, foi a partir de sua audácia, desde adolescente, que Adonis conquistou sua bolsa de estudo. Aos 13 anos, ele declamou sem convite seus poemas ao presidente da Síria, um dos três que o país teria só naquele ano de 1943, em plena II Guerra Mundial (1939/45). Formaria-se depois em filosofia na Universidade de Damasco, capital da Síria, em 1954, onde tomou contato com poetas ocidentais, como os franceses Charles Baudelaire (1821/67), Arthur Rimbaud (1854/91), Stéphane Mallarmé (1842/98) e René Char (1907/88), além do belga Henri Michaux (1899/1984) e do tcheco de língua alemã Rainer Maria Rilke (1875/1926).
O contato com a poesia pré-modernista e modernista do Ocidente fez com que Adonis fosse um dos principais introdutores, na Civilização Islâmica, desse movimento referencial nas artes e no pensamento humano, ao qual o nazifascismo do italiano Benito Mussolini (1843/1945) e do austríaco-alemão Adolf Hitler (1889/1945) não deixou de ser uma tentativa antropológica de reação. Ao rigor marcial proposto pelos dois ditadores europeus, traduzido em sua Síria e todo mundo islâmico pelo misto de nacionalismo e socialismo do Baath, o poeta se insurgiu assim que prestou serviço militar, dois anos dos quais passou 11 meses preso por “subversão”.
Por seu verso e sua vida libertárias, as contestações do socialismo nacionalista e do fundamentalismo religioso se tornaram insuportáveis na Síria, forçando o poeta a se mudar em 1956 para Beirute, capital do Líbano e considerada a mais ocidental das grandes cidades de cultura árabe, e depois para Paris. Adonis passou a morar definitivamente na capital francesa a partir de 1985 e, ironicamente, só não foi uma vítima dos terroristas do Estado Islâmico (EI), na sexta-feira 13 de 2015, simplesmente porque deu a sorte de não estar em nenhum dos locais atacados. Muito antes disso, quando ainda morava no Líbano, fundou as revista “Chiir” (1957/64) e depois a “Mawáqif” (“Posições”).
Em “Chiir”, Adonis se preocupou em estreitar o contato da cultura árabe com a ocidental, traduzindo grandes poetas do Modernismo, como os estadunidenses Robert Frost (1874/1963) e T.S. Elliot (1888/1965), à língua na qual o arcanjo Gabriel sussurrou as revelações de Alá ao ouvido do profeta. A partir dessa semeadura, tratou da colheita na segunda revista, com o objetivo de revelar e/ou consolidar os novos poetas em língua árabe, a partir do conturbado ano de 1968, onde a contestação aberta ao status quo ditou as revoluções estudantis que tomaram as ruas da França, dos EUA, da antiga Tchecoslováquia e do Brasil, contra governos de direita e esquerda.
Nas palavras da crítica literária libanesa Khalida Said, a revolução promovida por Adonis no final dos anos 1960, em sua revista:
— “Mawáqif” extrapolou questões literárias e abordou temas que até então eram tabus, sobretudo ligados ao nacionalismo e à identidade, à inspiração divina, ao texto religioso, à situação da mulher, da universidade, da educação, às relações entre o Ocidente e o Oriente, à violência, à criação artística e à nova escrita. Assim, operava uma revisão da questão da modernidade e de seus conceitos na poesia e na arte, ou ainda na crítica e no pensamento histórico, filosófico, religioso, social e político.
Ao fugir do engajamento proposto pelos nacionalistas, desagradou o socialismo laico do Baath, ao mesmo tempo em que promovia uma ruptura formal e temática com a rica literatura clássica do Islã, para o desagrado dos conservadores religiosos. Guardadas as proporções devidas, Adonis conseguiu contrariar o mesmo dogmatismo de pensamento hoje representado no Brasil pelo PT e demais viúvas do Muro de Berlim (1961/89), de um lado, e do fundamentalismo evangélico e das viúvas da Ditadura Militar (1964/85), no outro. Contra ambos, valeu e continua valendo a resposta do poeta em seu corajoso e ainda não datado “Manifesto para o 5 de junho de 1967”, publicado neste mesmo ano em revistas árabes e, em 1968, na francesa “Esprit”:
— Para englobar uma dimensão mais profunda e mais vasta: a do homem em sua verdadeira essência. Não é poeta aquele que não situa no coração de sua intuição poética a transformação do mundo.
Importante também destacar que a modernidade que Adonis introduziu não só na literatura, mas na própria estrutura do pensamento de quem o faz em árabe, revolucionando a tradição que os imbecis do EI querem manter intocada sob a mira de fuzis, se deu com um profundo conhecimento daquilo que se propôs a reformular. Em busca de renovação, o poeta a encontrou na tradição, na necessidade de releitura dos seus pares da Idade Média, mais longa da História do homem e na qual o Islã foi a luz do mundo a partir da Falsafa (“Filosofia” em árabe), do diálogo profícuo com o saber greco-romano da Antiguidade — aquele mesmo iniciado com Tales de Mileto, filho de uma libanesa. No seu livro “Introdução à poesia árabe”, de 1971, o sírio explicou a ponte que fez entre os mestres medievos do Islã com os pré-modernistas e modernistas do Ocidente:
— Foi a leitura de Baudelaire que mudou minha compreensão de Abu-Nuwas e revelou sua particular qualidade poética e modernidade; a obra de Mallarmé me esclareceu os mistérios da linguagem poética de Abu-Tamman e a dimensão moderna dessa linguagem. A leitura de Rimbaud me conduziu à descoberta da poesia dos escritores místicos em todo seu esplendor e singularidade, e a nova crítica francesa me indicou a novidade da visão crítica de al-Jurjani.
O sírio Abu Tammam (788/845), assim como os persas Abu-Nuwas (756/814) e al-Jurjani (1339/1414), são certamente menos conhecidos no Ocidente que seus pares franceses, mas não menos talentosos ou inovadores, na ruptura com a lírica tradicional de seus tempos. E é na certeza disso que Adonis produz sua própria poesia, na qual a tradição literária, como na prosa do modernista estadunidense Ernest Hemingway (1899/1961), traz em si a demanda da experiência individual.
Com base no poeta francês Alain Jouffroy, como sugere Hatoum em sua introdução no livro que me foi presenteado, Adonis é “capaz de questionar frontalmente todos os dogmas e destruir radicalmente um sentido definitivo à vida e à morte, mas sem resignação, sem se limitar à constatação fácil demais do niilismo”.
Calçado na diversidade, sem se submeter a dogmas de ordem divina ou laica, tampouco à vertigem da ausência de sentido da tal pós-modernidade, cessemos de deitar tanta prosa para que se erga, neste domingo carioca antes do show do Pearl Jam no Maraca, o poema do sírio pagão, a rasgar uma nesga de luz entre as sombras do socialismo nacionalista do ditador sírio Bashar al-Assad e seus iguais em oposição no fundamentalismo religioso dos facínoras do EI.
Que os homens consigam alongar o caminho do verso, enquanto aprendem e ensinam a ver o mundo ao redor:
Canções para a morte
1.
A morte quando passa por mim é como se
o silêncio a abafasse
é como se dormisse quando eu dormisse.
2.
Ó mãos da morte, alonguem meu caminho
meu coração é presa do desconhecido,
alonguem meu caminho
quem sabe descubro a essência do impossível
e vejo o mundo ao meu redor.
Está aí, ou como de forma corriqueira se fala, taí, o tema da Morte… Ele me é recorrente em meu viver errático. A ideia da morte me fascina, não que eu a queira tão cedo, pelo contrário, mas se vier, disse eu uma vez num dos meus arremedos de crônicas (não tenho, confesso, a precisão que Aluysinho tem, que é essa coisa primorosa ao cronicar, mas um dia chegarei próximo) andar com a moeda para pagar a Caronte, a travessia até Hades, pois meu julgamento já foi feito pelas Moiras do Destino em vida. Ao ler essa crônica bela, rememorei que o tema da Morte, já faz parte de meu refletir e ganhei o meu domingo de novo.
Caro Provisano,
Antes tarde do que nunca, repito apenas hoje a resposta dada desde ontem, na democracia irrefreável das redes sociais: “Talvez o envolvimento pessoal com o livro tenha pendido o texto, involuntariamente, à forma de crônica. E, sim, Provisano, pela via de mão dupla da dúvida, melhor deixar reservada a moeda para pagar o barqueiro pela travessia do rio Styx. Até porque, como já escreveu o mestre José Cunha Filho numa inesquecível crítica sobre ‘2001 — Uma Odisseia no espaço’, de Stanley Kubrick: ‘É preciso morrer para renascer’”.
Abç e ótima terça!
Aluysio
Aluysio,
muito interessante e cultural este seu artigo. O mesmo abre a possibilidade (e curiosidade) de conhecer um pouco sobre intelectuais de outras culturas além da ocidental, principalmente àquela “padronizada” dentro de conceitos pré-estabelecidos.
Particularmente, revelo e confesso a minha total ignorância sobre cada particularidade revelada no texto, mas, ficarei atento e na expectativa de procurar ir mais adiante, pois sendo o artigo bem lavrado, abriu o canal da curiosidade e do desejo de conhecer mais. Obrigado!
Caro Savio,
Realmente, após os atentados da sexta-feira 13 em Paris, muita asneira foi escrita sobre o Islã e, particularmente, a Síria, por gente que ignora solenemente a história da religião e do país, antes, durante e depois das revelações do profeta Mohammad. De fato, talvez só quem tenha se prestado à mesquinharia de pretender graduar as mortes na capital francesa com as do município mineiro de Mariana, tenha conseguido produzir ainda mais besteira.
Para compreender a história da Civilização Islâmica, assim como da Síria nela integrada, se me permite, sugiro o livro “Uma história dos povos árabes”, do historiador britânico Albert Hourani (1915/93), descendente de libaneses como tantos campistas e professor durante anos da Oxford University. No caso da poesia, indico a obra do afegão de língua persa, não citado na postagem, mas que julgo o maior poeta medieval, superior mesmo aos italianos Dante Alighieri (1265/1321) e Francesco Petrarca (1304/74): Jalal ad-Din Muhammad Rumi (1207/73), cuja melhor introdução em português considero ser “O canto da unidade: Em torno da poética de Rumi”, compilação crítica assinada na parceria do escritor, tradutor e professor Marco Luchesi, com o Faustino Teixeira, teólogo e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Já sobre a Falsafa, filosofia islâmica que iluminou o mundo na Idade Média, no diálogo franco com o saber grego da Antiguidade, acho que uma didática pedida seria “Falsafa — A filosofia entre os árabes”, de Miguel Attie Filho, professor de filosofia da USP.
Todas as três publicações podem ser encontradas e adquiridas na internet. Torço para que sua curiosidade o aproxime delas.
Abç e grato pela chance de diálogo!
Aluysio
Aluysio, boa tarde.
Como não sei outro meio de te enviar uma mensagem, será por aqui mesmo.
Acredito que o senhor tenha sido um dos organizadores ou no mínimo entusiasta do “Sarau Chico Buarque” que ocorreu recentemente em Campos.
Dito isto e sabendo do seu poder influenciador e da sua paixão por cinema, existe algum meio de solicitar que seja exibido nos cinemas de Campos o documentário: “Chico – Artista Brasileiro” ??
Atenciosamente.
Jarbas.
Caro Jarbas,
Boa tarde! Meu e-mail é aluysioabreu@gmail.com. Não fui organizador do Sarau do Chico, mérito que pertence ao professor e escritor Adriano Moura. Compareci e divulguei o evento na condição, mesmo, de entusiasta. Sim, tb me considero um apaixonado por cinema e, nesta condição, consultei os responsáveis pelos cines Kinoplex e Araújo. Como o documentário “Chico — Artista brasileiro” já estreou nas capitais, mas não em Campos, é provável que sua distribuidora não tenha destinado cópias do filme ao interior. Mas é possível, embora não provável, que ainda seja exibido comercialmente por aqui. Se não vier, será uma pena!
Abç e grato pela participação!
Aluysio