Fabio Bottrel — O Anfitrião Goytacá

Ilustração surrealista do polonês Jarek Kubicki (reprodução)
Ilustração surrealista do polonês Jarek Kubicki (reprodução)

 

 

– Campos é uma cidade em busca da juventude perdida como uma criança que não teve infância, meu jovem, se tem projetos de vida, veio ao lugar certo. – Disse o homem de pele marcada, virando uma dose de cachaça assim que eu me ajeitei no balcão.

– Não se escuta isso de quem viveu 50 anos tomando o mesmo café, usando o mesmo açúcar, espreitando da janela a cana velha que nessa terra não nasce mais.

Por arrancarem meus olhos com foice enferrujada não enxerguei o futuro, me afundei no passado. Hoje o que me resta é o reflexo no fundo desse copo de cachaça com tabaco, em cada dose as palavras que me faltaram, os sorrisos que desconheci.

Escute bem, meu rapaz, afofei essa terra com cuspe e sangue quente, aqui plantarás sua semente e dela colherás frutos somente se enraizar na sua mente. Sou descendente dos Goytacazes, não me dizimará mãos de capatazes, honre a minha memória e faça dela a glória. Quantos oceanos há de atravessar para encontrar o seu lugar?

– Meu senhor, nasci de um aborto, meu dente é rente, é tilintar pro teu sangue quente, se Campos me deu lugar, aqui, vou ficar. Não se engane, quando a guerra acaba sou o soldado no campo de batalha, defendo a minha pátria nem que seja com navalha. Afaste de mim essa enxada, cheguei até aqui com as palavras colhidas das flores, nelas vou pra onde a minha vista não alcança e levo junto o teu nome pra longe dessa manada.

– Rapaz, tire do seu peito esse ranço, veja na minha pele que a vida não me fez manso, não deixe que ela faça o mesmo com você. O dia já está se deitando pra noite aconchegar, deveria procurar um lugar ou alguém que faça o teu sorriso se abrir.

– Senhor, vejo tuas marcas, bem sabes que a ferida maior está onde não se pode ver. A verdade é que poucos desamados sabem ser altruístas, tempos mortos para o meu coração não se transformam em virtudes, aguçam a pobreza da minha essência. Meu senhor, devolverei teus olhos, facão nenhum cortará a tua gana, nessas palavras está o meu sangue e dele você há de beber. – Terminei a dose de um só gole e bati o copo no balcão, limpei a boca com o dorso da mão.

– Não tenha pressa garoto, seria melhor se não deixássemos esse bar, já sabemos o que nos espera lá fora. Pegue uma cadeira, sente-se, agora temos todas as semanas, nesse mesmo dia, para te contar o que vivi…

 

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Este post tem 3 comentários

  1. Savio

    Dá gosto ler um texto quando ele é semelhante à boa brisa, quando as palavras vão surgindo como aragem no final de um dia quente.

    Compartilhamos do arauto que nos traz o Fábio, já previamente referendado pelo jornalista-poeta Aluysio.

    Como diria o meu pai em seu tom mais solene:

    “___Meus respeitos!”

  2. Sérgio Provisano

    Simplesmente muito bom, simplesmente muito ótimo…

  3. Sol Almeida

    Perfeito, adorei!!!

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