Por Aluysio Abreu Barbosa
O pescador se chamava Nadinho. Alto, ombros largos, alourado, pele clara curtida de sol, era um muxuango descrito por Alberto Lamego em “O homem e a restinga”. Levava os genes de corsários holandeses e ingleses que, em passado remoto, teriam encalhado próximos à foz do rio Paraíba do Sul.
No vingar desse sangue europeu setentrional pelas gerações, mesmo misturado ao de portugueses, negros e índios, a Ilha da Convivência passaria a ser também conhecida como “Ilha dos Olhos Azuis”. Foi nela que Nadinho nasceu e aos 10 anos aprendeu a pescar com o pai, Arnaldo — que lhe deu nome, repetido depois no neto, e ofício.
Às 4 da manhã, na escuridão do inverno antes do sábado nascer, o pescador levava passageiro ao navegar mais uma vez pela foz do Paraíba rumo ao Atlântico, na lida à qual se acostumou com menos companhia:
— Só eu e Deus! E quem está com Deus, não está sozinho!
Nadinho conduzia com segurança a roda do leme do “Paleta de Ouro”, dentro da cabine do barco de madeira de 11,2 metros, homônimo a um barco antigo do pai — como o filho era deste. O passageiro, atrás da cabine, olhava sobre esta e a proa para o oceano enegrecido de noite. Sentia na face o vento frio e úmido, enquanto aferia a linha do horizonte pelas luzes dos barcos saídos antes.
Com mar muito mexido a partir da pororoca — gerúndio em tupi do verbo estrondar — na boca da foz, as ondas grandes eram literalmente surfadas, uma a uma, com habilidade, pelo condutor do barco. Com um passado de intimidade com Iemanjá, o passageiro foi salgado no presente pela onda que lhe molhou a face e a máquina fotográfica pendurada ao pescoço.
Sentou-se na entrada da cabine e abriu o casaco impermeável para expor a malha de algodão da blusa. Enquanto limpava com ela a câmera, seus olhos agora voltados à popa fotografavam as aparições do dorso negro das grandes ondas deixadas para trás. Eram desveladas por instantes no contraste com as luzes do continente, que se distanciavam lentamente no mesmo sentido.
Após uma hora e 10 minutos surfando ondas, chegaram num ponto para pesca de peroá (Balistes capriscus) conhecido de Nadinho, como se fosse qualquer outro lugar de terra em Atafona. Jogou a âncora de 20 kg, cuja corda revelou a profundidade de 10 metros.
Antes do dia nascer, lançadas da popa, já estavam nas águas ainda escuras três linhas de nylon 0,100 mm, cada uma com doze anzóis, seis de cada lado. Espetados neles eram intercalados metades de siris, como engodo para atrair os peroás, e camarões, aos quais os peixes morderiam para iniciar uma luta de vida e morte contra a fisga trespassada à própria boca.
Nos dois cantos extremos da popa, iam linhas cujas boias de garrafa pet, pela forma e função, lembravam os barris arpoados ao aterrorizante grande peixe do filme “Tubarão” (1975), de Steven Spielberg. Do lado direito do “Paleta de Ouro”, na altura da porta traseira da sua cabine, ia mais uma linha de fundo.
Quando o sol nasceu, parido pelo mesmo horizonte em que pescador e seu passageiro balançavam como crianças impotentes no berço, se deram a ver, algumas centenas de metros adiante, dois grandes cargueiros dos mares do mundo. Ancorados, esperavam a vez para se abastecerem de minério de ferro no Porto do Açu.
Com o dia, vieram os primeiros peroás negros, embora apresentem cor cinza. O pescador explica que, embora ele próprio goste mais do sabor da carne destes, não são tão valorizados quanto os azuis e geralmente mais graúdos peroás do leste.
A maioria dos peixes era puxada do mar pela linha com boia da esquerda:
— Nunca que vou entender isso. Como pode com a linha do lado da outra, uma pegar tanto peixe e a outra não? — questionou Nadinho.
— Vai ver os peroás gostam mais de guaraná Tobi do que de Coca-Cola! — brincou o passageiro, em referência ao rótulo que ainda sobrevivia na garrafa pet verde da sortuda linha canhota, em contraste com a similar de plástico transparente e tampa vermelha, sinalizando como boia o azar da direita.
Enquanto os peroás eram fisgados, às vezes cinco na mesma linha, o passageiro não pôde deixar de notar o constrangedor contraste entre sua própria movimentação dentro do barco e a do pescador. Enquanto o primeiro só conseguia caminhar, ao balanço das ondas, se apoiando com as mãos, Nadinho o fazia com tanta naturalidade dos passos, equilíbrio do tronco e liberdade dos punhos, que lembrava um pugilista de maturidade técnica dentro do ringue.
Embora os peróas compusessem a grande maioria do pescado que foi enchendo as caixas de frigorífico, dois baiacus arara (Lagocephalus laevigatus) também foram capturados. Um deles após cortar a tal linha esquerda e arrancar com suas poderosas mandíbulas o lombo de um xarelete (Caranx hippos) fisgado ao anzol.
Por experiência própria, o passageiro já sabia que aquela espécie de baiacu era não só comestível, desde que corretamente limpo, como delicioso. Conhecimento que Nadinho acresceu da malandragem de pescador:
— Tem dono de peixaria que compra baiacu e vende em posta, dizendo ser garoupa (Epinephelus marginatus), porque têm a mesma carne branca. A nós, não conseguem enganar. Mas para quem não conhece direito…
Entre um peroá e outro, sobrou espaço para o pescador falar sobre sua experiência com outro tipo de vida marinha. Do peixe mais temido do mar, disse que nunca cruzou com um tubarão branco (Carcharodon carcharias), personagem do filme de Spielberg.
Mas, com malhão (rede de malha larga, para prender peixes maiores), já pescou outras espécies de tubarão bastante agressivas, como o cabeça chata (Carcharhinus leucas), responsável pelo maior número de ataques a seres humanos no litoral brasileiro, e o tigre ou tintureira (Galeocerdo cuvier).
Da última espécie, lembra já ter pescado um tubarão tigre que deu 198 kg depois de limpo:
— Mas foi até difícil de vender, porque o tintureira não tem a carne boa — ressalvou, ao esclarecer que a maior parte do cação vendido em Atafona vem daquele que ele e os demais pescadores chamam de “torce torce” (pelo hábito de rodar sobre seu eixo quando capturado, como todo tubarão), também conhecido como caçonete (Mustelus norrisi).
Uma história violenta com tubarões foi vivida não por Nadinho, mas por um primo que é seu vizinho no Pontal de Atafona, para onde se mudou ao sair da Convivência, há quase 30 anos:
— Uns 10 anos depois, meu primo, o Genilto estava recolhendo uma rede mijuada (ancorada). Um cação marimbondo (Lamna nasus, conhecido como marracho), que eles já tinham recolhido, estava no chão do barco. Quando ele cruzou na frente, o cação deu o bote e arrancou a barriga da perna dele. Quando abriram o bicho, acharam o pedaço da perna dentro do seu bucho. E Genilto ficou com aquela roda pra dentro da perna.
Já com o maior de todos os peixes, o encontro foi pacífico. Apesar de atingir até 20 metros e 13 toneladas, o dócil tubarão baleia (Rhincodon typus) se alimenta só de plâncton (microorganismos) e outros invertebrados, que filtra na água com sua boca imensa, enquanto nada lentamente:
— Estava no “Paleta de Ouro”, mais dois companheiros, pescando de caída (rede para peixes que fica flutuando ao sabor da corrente marinha), no mar de Quissamã. Ele era um pouco maior que o barco (11,2 m). Devia ter uns 12 metros. Nadava devagar, com as costas todas pintadas de branco (característica do dorso do animal). Um amigo encostou nele com o bicheiro (haste com um anzol grande na ponta, usado para ajudar a trazer os peixes ao barcos) e ele afundou.
Foi também no seu próprio barco que Nadinho encontrou os maiores seres do mar, as baleias de verdade, mamíferos, não peixes, que costumam aparecer no litoral de Atafona nos meses invernais de junho e julho. Um desses encontros, poderia ser narrado nas páginas de “Moby Dick” (1851), clássico romance de Herman Melville (1819/91):
— Estava com mais dois companheiros, pescando de malhão. De repente uma baleia se embolou na rede e começou a puxá-la, arrastando o “Paleta de Ouro” com se fosse um barco de papel. Durou cinco minutos, mas foi muita tensão. Acho que elas nem sabem a força que têm. Aí, quando íamos cortar a corda da rede, para nos soltar, a baleia pocou ela.
Entre histórias do mar, seus homens e outros seres, três caixas de frigorífico foram cheias, cada uma com 25 kg de pescado. Vendida por R$ 3 o quilo para os frigoríficos, chegam ao consumidor final, nas peixarias de Atafona, a R$ 9; ou R$ 10, no Mercado de Campos. R$ 225 pelas três caixas de peixe, menos R$ 100 do diesel e das iscas, dão um lucro líquido como o mar — mas bem menor — de R$ 125.
Foi o que deu, até por volta das 14h, quando os peroás pararam de bater, mesmo na linha sortuda da esquerda, da boia verde de guaraná Tobi. Após Nadinho recolher linhas e âncora, com mar bem mais calmo, o retorno durou 40 minutos. Cada segundo deles na proa, a ver nascerem e crescerem lentamente no horizonte os cata-ventos da usina eólica de Gargaú, à direita, e Atafona, à esquerda, com suas ruínas e casuarinas.
Num cenário tão íntimo ao pescador, o passageiro viu pela primeira vez a foz do Paraíba e seu litoral de dentro do Atlântico. Era fisgada para desaguar a vida inteira.
Publicado hoje (14) na Folha da Manhã