Fabio Bottrel — Os Perigos da Literatura

 

Bottrel 29-10-16

 

 

Desde que a sociedade burguesa francesa sentiu a força do ataque da literatura, e seus representantes trataram de punir o escritor Gustave Flaubert sob a acusação de imoralidade feita pela censura da época, que percebemos a literatura como instrumento de uma guerra abstrata nos idos modernos. Para muito além dissoGilgamesh, primeira fábula a que se tem notícia oriunda da primeira cidade já construída há 6.000 anos atrás,Uruk, onde hoje é o sul do Iraque, fora usado pelo rei da Assíria Ashurbanipal em 645 a.c. hoje norte do Iraque. Ashurbanipal usou as qualidades heroicas de Gilgamesh para se promover na mente de seus súditos contando a história através de figuras com ele próprio e não Gilgamesh atuando no papel principal, atingindo não só o seleto grupo que podia ler os ideogramas cuneiformes, mas todos que podiam vê-lo, criando assim, a primeira história visual do mundo.

Em 1857, Flaubert vai a julgamento por parir o símbolo depreciador dos valores burgueses de sua época, Emma Bovary na obra Madame Bovary, sendo absolvido pela Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena em Paris com a emblemática frase “Madame Bovary c’est moi” (Eu sou Madame Bovary). Essa aproximação entre autor e personagem de uma narrativa fictícia sempre foi algo a me causar pausas para reflexão, como o autor de O Pacto Autobiográfico, Philippe Lejeune, ao lançar o desafio se um personagem de um romance poderia ter o mesmo nome do autor e ainda continuar a ser uma ficção, recebendo como resposta o livro Fils de Serge Doubrovsky, que com esse romance criou um termo que definiu o novo gênero literário em ascensão, Autoficção, concebida por ele como uma “variante pós-moderna da autobiografia na medida em que ela não acredita mais numa verdade literal, numa referência indubitável, num discurso histórico coerente e se sabe reconstrução arbitrária e literária de fragmentos esparsos de memória” como afirma Philippe Vilain.

Com a prática da autoficção Serge Doubrovsky foi acusado de ter matado sua esposa por amor à literatura, e afirma ter usado a literatura para se vingar em Le Livre Brisé, aproveitando da vantagem de ser escritor. “O francês conta sobre a publicação e o sucesso de Livre Brisé (Doubrovsky, 1989). O sucesso, nesse caso, teve um preço alto. Ele foi acusado de ter matado a sua mulher por amor à literatura. Depois de ler o capítulo sobre seu alcoolismo, a esposa do autor bebeu vodca até morrer. Doubrovsky escreve uma longa autodefesa para o caso, mas mesmo assim afirma que não se sente perdoado pelo sucesso obtido, e que vive em profunda depressão desde que sua mulher morreu. A conclusão de Doubrovsky é que somente o escritor e o juiz podem, “em sua alma e consciência”, decidir os limites do que pode ou não ser dito/publicado, ou de como será dito. De um lado, temos o escritor e seu direito de liberdade de expressão, do outro temos a “vítima” com seu direito de privacidade. Sobre a publicação de Livre Brisé, o escritor francês diz que legalmente não é culpado de nada e que a mulher estando morta não poderia processá-lo. Outra informação relevante para pensarmos a delicada questão é o fato de ele dizer que se trata de uma “autobiografia (ou autoficção) autorizada”, já que ele ia mostrando os capítulos para ela e recebendo o aval para publicação. Nos soa problemático pensar 1) no uso das palavras autobiografia e autoficção como sinônimos pelo próprio Doubrovsky, depois de todo esforço que ele, “o pai da autoficção”, teve em estabelecer as devidas diferenças; 2) pensar numa “autoficção autorizada”, uma vez que o emprego da palavra ficção, em sua definição original, funcionaria justamente para aliviar o seu autor das censuras.” (Anna Faedrich).

No Brasil, o romance Divórcio publicado em 2013 pela Alfaguara o narrador e também autor fala do término traumático de seu casamento com uma famosa jornalista de cultura em São Paulo ao encontrar o diário que ela escrevia enquanto ele dormia, contando suas aventuras sexuais fora do relacionamento: “Lembrei-me de uma conta que precisava pagar naquele dia. Abri a gaveta da minha ex-mulher e vi o boleto no meio de um caderno. Li uma frase e minhas pernas perderam a força. Sentei no lado dela da cama e por um instante lutei contra mim mesmo para tomar a decisão mais difícil da minha vida. Resolvi por fim ler o diário da primeira à última linha de uma só vez.” (Ricardo Lísias)

Lísias afirma que a sua obra foi escrita “sem uma palavra de ficção” e em outro momento argumenta que “Divórcio é um livro de ficção em todos os seus trechos”, deixando o leitor confuso quanto a definição do que é, afinal, Divórcio. O autor explica que é um romance sobre o trauma, onde usou a literatura para expurgar as dores: “Sem saber, fui apresentado ainda para quatro ex-amantes dela e descobri há um mês que vivi a constrangedora situação de ter tomado café em Paris com um fotógrafo francês com quem ela tinha transado anos antes. (…) Não sei se algum dia vou entender o que faz uma mulher de trinta e sete anos escrever um diário como esse e, ainda mais, deixa-lo para o marido com quem acabara de se casar.”

Certo de que a autoficção pode trazer prejuízos para a vida de ambos os agentes, autor e personagens, em vista que escrever de si é, inevitavelmente, escrever sobre outros, diante das questões éticas e morais envolvidas na exposição de maneira tão sórdida da vida da jornalista, Lísias foi ameaçado de processo judicial pela ex-mulher, mas tornou o julgamento num fato ridículo quando respondeu: “Não estou tratando de uma pessoa particular. Minha ex-mulher não existe: é personagem de um romance. (…) O que faz então com que Divórcio seja um romance? Em primeiro lugar, Excelência, é normal hoje em dia que os autores misturem à trama ficcional elementos da realidade. Depois há um narrador visivelmente criado e diferente do autor. O livro foi escrito, Excelência, para justamente causar uma separação. Eu queria me ver livre de muita coisa. Sim, Excelência, a palavra adequada é “separar-me”. (…) Enfim, Excelência, o senhor sabe que a literatura recria outra realidade para que a gente reflita sobre a nossa. Minha intenção era justamente reparar um trauma: como achei que estava dentro de um romance ou de um conto que tinha escrito, precisei criá-los de fato para ter certeza de que estou aqui do lado de fora, Excelência.

Tal como Ricardo Lísias, outros autores brasileiros trabalham Autoficção e enfrentam situações peculiares, como CristovãoTezza em O Filho Eterno. Caso você, leitor, tenha interesse nesse tema, em novembro transformaremos a sala do Sesc Campos num tribunal literário para discutir os limites da literatura entre defesas e ataques contundentes, as inscrições já estão abertas.

 

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Este post tem um comentário

  1. Gildo Henrique

    Ótimo tema.
    Quero.

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