Andando pela estrada de ladrilhos coberta pelo acúmulo de areia dos anos sem uso sedimentando um assoalho compactado e liso, o guia explicou:
“Por aqui saíram correndo em fuga. Pegaram os objetos mais simples e hábeis, as roupas, e partiram sem nenhuma plano. Evadiram e seus pertences de ouro, suas máquinas caras e tudo mais permaneceram para os salteadores futuros”.
Continuamos adiante. O ar pesado me causava calafrios. De alguma forma os espíritos do passado sussurravam em meu ouvido, cantando as lástimas de seus momentos de agonia. Por entre o alto matagal ladeando a passagem poderia surgir um não-sei-o-quê assustador e eu vasculhava por cada canto, vigilante.
Diante do pórtico, o guia detalhou:
“Os viajantes de antigamente logo se vislumbravam diante da opulência da cidade. Ali, ao lado, vocês veem as duas pernas que restaram do colosso que espantava os bandoleiros e impunha o respeito e a ordem. Os moradores queriam que quem nessas bandas pusesse um pé baixasse a cabeça diante de sua superioridade. Daí a pompa efusiva logo na entrada”.
Logo adiante das pernas de mármore revestidas por uma camada viscosa de limo predominava a decadência. Sobre o chafariz de azulejos descorados desfilavam filas de ratazanas. As antigas luminárias das ruas jaziam podres de ferrugem. Das casas restavam seus alicerces de madeira e pedras, umas poucas com as colunas, tetos e paredes preservados apesar do total aspecto de ruína. Andar dentro de uma deles consistia em atitude de grave perigo, pois os tremores de passos poderiam afetar os caibros e comprometer definitivamente a estrutura.
Virando à direita, uns bons metros em seguida, havia uma praça com coreto. A armação metálica havia se desprendido e as varas de ferro retorcido formavam um mosaico surreal apavorante. As folhas cobriam todo o piso cimentado da praça e qualquer pessoa com bom senso evitaria pisar ali, tão evidente a presença de animais peçonhentos camuflados no tapete ressecado.
“Aqui deram o anúncio. Diante das palavras apocalípticas do prefeito, a multidão debandou em prantos. Quem conseguiu carregar alguma coisa, carregou. Cuidaram dos detalhes derradeiros e sumiram para nunca mais retornar”.
A caminhada desenrolou um tanto quanto a esmo. Contemplávamos o esfacelamento em uma experiência extática. Contrariando a atmosfera fúnebre, certa alegria nos contagiou, empolgados com o espírito arqueológico da empreitada. Posávamos para fotos e apontávamos com vivacidade para os utensílios antigos como o ferro de passar a carvão.
Quando nos cansamos de rir, pedimos ao guia que nos acompanhasse até o ponto fundamental desse roteiro. Taciturno, ele caminhou batendo com uma vara ao chão, ao estilo de quem marca o ritmo tocando gado. O clima de enlevo dos últimos instantes se converteu em cumplicidade, mutuamente assumindo um risco consciente.
Ali, ao fundo da vila, avistamos o grande armazém sobre o qual tanto se comentava. Ao contrário do restante das construções locais, mantinha-se inteiro e resistente, corroído apenas pela voracidade dos cupins formando alguns buracos. Na lateral, em uma enorme pichação se lia a palavra “vergonha” em letras garrafais, obra de um bando de adolescentes revoltados.
À porta, paramos todos reticentes, amedrontados. A área externa já assustava o suficiente e muitos deram um passo atrás, negando-se a assistir o espetáculo que nos aguardava. Integrei o grupo dos ousados, daqueles que desejavam atravessar o corredor de martírio apesar da promessa de automutilação.
Entramos no armazém. Os pés vacilavam, as mãos tremiam. Fazíamos ideia do que encontrar, mas não imaginávamos o desespero e o arrependimento seguintes. Ali, as ossadas de dezenas de crianças, todas com menos de dez anos, jogadas pelos cantos, os crânios que sustentaram uma expressão de pavor quando a morte veio as ceifando, tão pequenas, tão inocentes e já encararam os infortúnios dignos dos velhos.
“Quando todos fugiram da peste, deixaram para trás as crianças, o principal vetor da doença. Elas foram a primeiras a apresentar os sintomas, e para que não os seguissem, trancafiaram-nas nesse armazém e as abandonaram para morrer”.
O impacto daquela cena abalou a todos os visitantes. As lágrimas saltaram aos olhos e vários perderam a força mediante tal quadro desolador. Apostamos e recebíamos a recompensa, nosso quinhão particular de sofrimento. Apenas o guia não se emocionava, já calejado de tantas e tantas visitas, com as quais se tornou imune.
Eu mesmo caí de joelhos durante meu testemunho da crueldade humana, da omissão, do egoísmo. Chorei com um clamor pelo meu jamais conhecido irmão, um daqueles esqueletos anônimos, e por minha sorte de ter chegado ao mundo muito depois, pois caso nascido antes jazeria naquela necrópole superficial sem uma sepultura cristã.
Eu confesso, Guilherme Carvalhal, publicamente, que tenho vergonha… Vergonha de andar meio ausente, com uma preguiça atávica de comentar as pérolas que tenho lido aqui neste espaço, em especial as coisas que escrevestes nos últimos tempos, é que também andei meio ruim da vista, sabe como é, diabético e acometido de retinopatia, digitar estava, está sendo meio tormentoso, mas li e comento que o que li, para não fugir à regra, me encanta e me dá um prazer incomensurável e cura qualquer doença que possa aparecr. Adorei.