Morreu na tarde de ontem, vítima de um AVC hemorrágico, o advogado José Eugênio Koch Torres. Ele estava na sua casa, na rua Aquidaban, após ter voltado de Atafona. Tinha 47 anos e atuava na assessoria jurídica do vereador Neném (PTB). O velório está acontecendo no Campo da Paz, onde se dará o enterro às 15h30 de hoje.
Zé Eugênio, como era mais conhecido, deixa a esposa Bethânia Castro Torres, e a mãe, Estelmar Tinoco Dias Torres. À toda família e aos muitos amigos, meu mais sincero pesar.
Enquanto que, para alguns, a noite do dia vinte e cinco de dezembro possa somente comportar um descanso modorrento junto da família, apenas passível de ser interrompido pelos ataques vorazes às sobras da ceia compartilhada na véspera, para outros, o Natal é meramente mais um dia de trabalho. Na maior metrópole da América Latina, nem mesmo o mais importante dos feriados cristãos é capaz de fazer a cidade parar. Na estação de metrô Pedro II, localizada no centro da cidade de São Paulo, os sons emitidos pelos trilhos e vagões abafavam o barulho dos passos apressados das pessoas que ali chegavam e partiam em direção a outros destinos.
Naquela noite, um homem corpulento de cinquenta e quatro anos vendia biscoitos, balas e refrigerantes em frente à entrada da estação de metrô, tal como fizera diariamente, incluindo os finais de semana e feriados, nas últimas duas décadas. Luiz Carlos Ruas, o “Índio”, como era conhecido entre seus pares devido à cor parda e aos cabelos lisos, havia combinado com a esposa, Maria de Oliveira, que encerraria as vendas daquele dia por volta da meia noite. Decidiu trabalhar no Natal porque o dinheiro estava escasso e o casal precisava quitar a dívida do IPVA.
A hora de embalar seu material de trabalho e retornar a casa já se aproximava, quando percebeu um pequeno tumulto a alguns metros de distância. Como o entorno da estação serve de abrigo para alguns moradores de rua, fenômeno corriqueiro na cidade de São Paulo, um dos “residentes” daquele espaço protestava contra dois rapazes que urinavam justamente no pedaço de chão que frequentemente lhe servia de cama. Homossexual, apelidado de “Brasil”, o morador de rua não poderia supor que a reação aos seus protestos seria tão desproporcionalmente violenta. Começou a ser surrado, junto de outra moradora de rua, a travesti Raíssa, pelos dois jovens rapazes, que portavam, cada um, um “soco inglês”. Ao notar a covardia que se desenrolava diante de seus olhos, Luiz Carlos se lançou na direção do conflito, tentando acalmar os ânimos dos agressores.
Através das imagens registradas pelas câmeras de segurança da estação, podemos ver a travesti Raíssa correndo em disparada em direção ao metrô, perseguida por Alípio Rogério dos Santos, que sustentava uma expressão facial desfigurada por um ódio implacável e, num primeiro momento, inexplicável. Em seguida, vemos Luiz Carlos tentar, ele também, escapar do ímpeto assassino da dupla de agressores. Com mais idade nas costas e maior peso corporal, Luiz Carlos não foi bem sucedido como os outros dois moradores de rua que conseguiram fugir. Quando caiu no chão, Ruas não conseguiu oferecer qualquer resistência aos golpes que se seguiram.
Dezoito segundos.
Este foi o tempo durante o qual Luiz Carlos foi golpeado ininterruptamente. Durante este curto espaço de tempo, transeuntes orbitavam em torno da cena. Algumas pessoas corriam assustadas, temendo por suas próprias vidas; outras permaneciam paralisadas, fitando estuporadas o brutal assassinato. Os agressores então se afastam, deixando o corpo inerte no chão. Após cinquenta e um segundos, a dupla retorna para um novo “round” de socos e pontapés. Miram sempre o rosto. Precisam se certificar de que ali já não existe vida. Espancam o imóvel corpo do ambulante, por mais vinte e três segundos.
Luiz Carlos Ruas era casado há 30 anos com sua esposa, com quem não teve filhos. Paranaense, torcedor do Palmeiras, Ruas era originário de família de vendedores ambulantes, e trabalhou dos nove aos cinquenta e quatro anos. Com o dinheiro que conseguiu juntar com o trabalho, comprou um pequeno apartamento no centro de São Paulo. Grande parte de sua vida laboral foi marcada pela informalidade, sem direito a descanso, férias ou aposentadoria. Ruas era um brasileiro “batalhador”, termo que pego emprestado do sociólogo Jessé Souza, que o cunhou para classificar uma grande massa de trabalhadores brasileiros que possuem parcos direitos trabalhistas, tendo, como suporte, quase que somente a própria força de vontade, a tenacidade do corpo e um pouco de fé e sorte. Quem poderá saber quantos anos mais Ruas teria se dirigido cotidianamente à estação para vender seus quitutes, não tivesse esbarrado com o ódio bestial naquela noite de vinte e cinco de dezembro?
O crime chocou o país pela covardia e pela torpeza, suas principais características. Para mim, é custosa a tentativa de interpretar corretamente os sentidos da ação dos assassinos. A princípio, cogitou-se a possibilidade de os homens pertencerem a alguma “gangue” de caráter “neonazista”, daquelas nas quais seus membros saem pelas ruas com o objetivo de atacar cidadãos pertencentes a minorias. Pessoas próximas aos assassinos relataram que estes eram conhecidos por serem donos de um temperamento explosivo. Indo nesta direção, especulou-se que o ódio dos dois rapazes fora inflamado pela homofobia. Uma vez que não conseguiram fazer jorrar o sangue dos homossexuais envolvidos na história, o ódio voltou-se à terceira vítima, a que fora mais incapaz de correr ou se esconder.
O ódio que movia os autores do crime não deve ser entendido como uma mera característica particular dos indivíduos. Este sentimento, que é capaz de fazer um homem surrar um semelhante indefeso até a morte, é gestado, fomentado e ancorado por algumas instituições da sociedade. Quando determinadas ideias imbuídas de ódio são propagadas, mobilizando nossos medos e paixões mais primitivas, e atingem personalidades demasiadamente desequilibradas, tendem então a produzir resultados como este. Tal como sucedeu no caso do homem que promoveu uma chacina em Campinas, no último dia 31, e que justificou seu ato amparando-se em discursos de ódio que vem ganhando cada vez mais potência nos últimos anos, nos remetendo a tempos sombrios que a humanidade jurou nunca mais reprisar.
Luiz Carlos Ruas foi mais uma vítima deste ódio ao outro. E morreu por ousar defender outros mais indefesos que ele. Por não se calar diante da covardia, perdeu a vida. Quando soube do caso, a primeira coisa que me veio à cabeça foi a seguinte pergunta: “Quem, hoje em dia, arrisca a vida por alguém?”. Quantas vezes, por medo de sermos atingidos, não ficamos paralisados diante de injustiças que são cometidas perto de nós?
Luiz Carlos Ruas já era um herói por sobreviver às condições adversas que marcaram sua vida desde o início. Morreu também num ato de heroísmo, pelo ímpeto de defender outras pessoas que, como ele, enfrentam penosos obstáculos sociais. Que a perda dessa vida nos inspire forças para enfrentar as injustiças e a crescente onda de cólera e intolerância que nos atinge a todos, enquanto sociedade.
Registro aqui o meu lamento e a minha homenagem a Luiz Carlos Ruas.
“A literatura só terá sentido se mudar alguma coisa, nem que seja a minha própria vida”
(Ferreira Gullar)
Em férias para colocar corpo e leitura em dia, terminei o primeiro livro de 2017: “Ferreira Gullar — Autobiografia poética”. Presente do amigo e também poeta Adriano Moura, que recebeu em troca, numa dessas coincidências que não há, o “Toda Poesia” do mesmo Ferreira Gullar.
Mais do que narrar os fatos de uma vida física de 86 anos, da sua São Luís do Maranhão natal, ao Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1950 e viveu até morrer, há pouco mais de um mês, o livro conta Gullar através da evolução da sua poesia.
Do início de inspiração parnasiana, ao abandono da rima e da métrica, o poeta tomou a vanguarda do Modernismo brasileiro. Mergulhou de cabeça no experimentalismo, entre as décadas de 50 e 70 do século passado,“para chegar ao essencial: violentar a sintaxe, destruir o discurso e, com isso, revelar o que ele oculta…”
No namoro rompido ruidosamente com o Concretismo dos irmãos paulistas Haroldo (1929/2003) e Augusto de Campos, além de Decio Pignatari (1927/2012), para fundar o Neoconcretismo na reunião entre escritores e artistas plásticos cariocas ou, como Gullar, radicados no Rio, ficou a advertência aos poetas medíocres de ontem, hoje e sempre:
— E tentaram convencer as pessoas de que a má qualidade de seus poemas e suas obras não era defeito, mas uma qualidade ainda desconhecida. Ou seja, tentaram transformar sua mediocridade em virtude e reduzir a poesia.
Para quem acha possível ser poeta sem domínio técnico, nem que seja para se libertar (por opção, não limitação) dessa mesma técnica, na confusão rasa que muita gente faz da poesia com confessionário de padre ou divã de psiquiatra, vale outro conselho de Gullar:
— Assim me dei conta de que fazer má poesia não servia para nada. Ao escrever um poema, a preocupação principal tem que ser com a qualidade literária, poética.
Além da autobiografia, o livro é composto por duas entrevistas do poeta: uma de 1965, outra de 2014. A primeira revela a origem no filósofo grego Platão (427/387 a.C.) e no escritor francês André Gide (1869/1951), respectivamente, de duas das referências bem conhecidas de Gullar: o “espanto” que dizia movê-lo a escrever, além da sua sentença mais célebre: “A arte existe porque a vida não basta”.
P – O que acha da inspiração e por que escreve poesia?
R – Considero respondidas essas perguntas. O que se chamou de inspiração é o “espanto”, a que se refere Platão como fonte do conhecimento: a ruptura do mundo conceituado pela experiência nova. Por que escrevo poesia? Cito Gide: “a arte começa quando viver já não é suficiente para exprimir a vida”.
Na segunda e mais recente entrevista, ao falar dos seus tempos de militância comunista e exílio durante a Ditadura Militar (1964/85), Gullar revelou a pitoresca e “darcyniana” origem do ensaio que, particularmente, sempre considerei sua mais brilhante obra como teórico da literatura: sobre o poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884/1914), a quem Gullar considerou precursor do Modernismo na poesia brasileira.
P – Quanto tempo ficou em Moscou?
R – Fiquei lá cerca de dois anos. Depois, queriam que eu fosse para Paris, mas falei que queria ir para a América Latina, para perto de casa. Fui para o Chile, era o governo do Salvador Allende (1908/73). Mas logo Allende foi derrubado, e quase fui preso. Consegui me safar e fui para Lima, Peru, onde estava o Darcy Ribeiro (1922/97). Ficamos amigos, eu frequentava a casa dele e conversávamos de tudo, inclusive de poesia. Ele gostava de declamar poemas que sabia de cor. Observei que nunca declamava Augusto dos Anjos e quis saber a razão. Ele falou que tinha horror, isso de “escarra nessa boca que te beija”. Eu falei que era preconceito, porque o poema era mais complexo que isso. E comecei a dizer um soneto do Augusto dos Anjos que era diferente. Quando Darcy ouviu aquilo, ficou perplexo. “É um grande poeta”, concordou. Daí a um mês, chegou o Fernando Gasparian (1930/2006), dono da editora Paz e Terra, e nos convidou para almoçar. Durante o almoço, Darcy falou que eu estava escrevendo um livro sobre Augusto dos Anjos e que era para o Gasparian editar. E mais: “Vai logo adiantando quinhentos dólares para ele…”. Falei depois com o Darcy: “Você é louco? Como vou fazer? Não tenho nenhum livro do Augusto dos Anjos aqui comigo”. E ele: “Você se vira aí, se não escrever, também está tudo bem”. Mas eu não iria receber e não fazer o livro. Eu sabia muitos dos poemas de cor, conhecia a história dele, então fui para a Biblioteca de Lima e comecei a tomar notas. Lá não tinha livro do Augusto dos Anjos, mas tinha alguns filósofos que ele citava, como Schopenhauer (1788/1860). Fui lendo essas coisas, e, depois, quando já estava em Buenos Aires, a Thereza me levou outros livros que pedi e acabei de escrever o ensaio, que a Paz e Terra publicou, e a José Olympio reeditou recentemente [Toda poesia de Augusto dos Anjos].
Ainda que sem alcançar o mesmo brilho daquele estudo sobre Augusto dos Anjos, a “Autobiografia poética” de Gullar traz mais três ensaios do poeta, dedicados a uma trinca dos seus camaradas em armas: o francês Arthur Rimbaud (1854/91), o português Fernando Pessoa (1888/1935) e o peruano César Vallejo (1892/1938).
Gullar não acrescentou muito sobre o que eu já sabia sobre Rimbaud e Pessoa. Mas, no ensaio derradeiro, que fecha o livro, me apresentou a um poeta que ele considera precursor do Modernismo na América Latina e do qual, confesso, sequer ouvira falar. Lacuna que pretendo preencher com os versos de el cholo Vallejo ainda nestas férias.
Morando em Roraima há três anos, ainda há muito o que conhecer do norte do país. Tive a oportunidade de viajar a Santarém no último setembro. Ao chegar lá, na primeira oportunidade, fui presenteada com um muiraquitã. Trata-se de um artefato indígena, em formato de sapo, talhado em madeira ou pedra que pode simbolizar desde proteção a poder. Depois iniciaram algumas viagens. Algumas duravam dez, outras apenas duas horas. De barco, voadeira, lancha rápida, rabeta, passando por alguns rios como o Amazonas, o Tapajós, o Trombetas. Algumas das descobertas desses dias seguem em forma de poema. E, esses versos, assim como o rio, permanecem em sutil movimento.
Entre Rios
O olhar treinado permite ver os bancos de areia à noite ao norte
no Amazonas que não tem ondas próprias
somente quando encobre o ser ou circula na máquina do homem.
Mesmo o olhar treinado não permite
medir o comprimento do Tapajós na sua majestade de rio,
ainda que quase todos, ao fim, componham as águas salgadas.
A proteção do muiraquitã garante que o rio te abrace em segurança.
E o que é um mergulho no tempo das águas que suavemente sobem e descem
Se não o que chamamos de vida?
Os espaços compartilhados para aqueles que
atravessam, admiram, conversam sobre o Trombetas
são largos se comuns, estreitos se privados.
Mas sob a lua iluminada, toda prosa é quase cheia.
Sutilmente, ao fim da viagem nesses mares calmos
Descobre se és turbina ou reflexo do movimento das águas ao lado.
Apesar de sugerir o contrário, a foto mostra uma das poucas transmissões de governo de forma civilizada no Brasil. FHC e Lula na passagem da faixa presidencial em 2003 (Foto: Joedson Alves/ AE)
No próximo dia 20 de janeiro o mundo vai assistir a confirmação de uma tradição: o presidente dos Estados Unidos transmitindo o cargo ao sucessor. Em seguida, mister Trump vai acompanhar a família Obama até o jardim da Casa Branca, onde o helicóptero presidencial aguarda para levar o ex-homem mais poderoso do Planeta. Assim funciona a democracia com civilidade.
Aqui pelos trópicos a tradição é outra, a começar pela quartelada que inaugurou a República, eleições de “bico de pena”, suicídio, renúncia e golpes. E mesmo em período democrático, a troca de comando no poder nunca foi lá muito civilizada. Em 1961, por exemplo, o presidente mais popular da história do país, Juscelino Kubitschek, era quase unanimidade quando passou a faixa presidencial ao sucessor, Jânio Quadros, numa solenidade na recém-inaugurada capital federal, construída em tempo recorde de três anos. Posse civilizada e republicana. Menos de uma hora mais tarde, JK estava voando para o Rio quando, do rádio do avião, pode ouvir os impropérios que lhe dirigia, em entrevista, o novo presidente, conhecido por seu temperamento imprevisível.
Das transmissões de cargo, a mais dramática foi a que não houve e, por isso mesmo, até porque até hoje alimenta conspirações: Março de 1985, o enterro era da ditadura militar iniciada em 1964, mas o caixão que subiu a rampa do Planalto levava o corpo do presidente eleito (ainda pela forma indireta), Tancredo Neves. Na véspera da posse, Tancredo foi internado para uma cirurgia de urgência e, por uma sacanagem do destino, seu vice, José Sarney, assumiu em seu lugar. Mas o último ditador (João Figueiredo), do partido do qual Sarney era presidente e desertara meses antes para saltar da canoa que fazia água para a nau segura, recusou a transmitir-lhe o cargo e saiu, justificadamente, pelos fundos do Palácio e da história.
Devoto do que costuma chamar de “liturgias do cargo”, Sarney passou a faixa presidencial ao sucessor Fernando Collor, em março de 1990, mesmo tendo sido por ele execrado durante toda a campanha eleitoral de “corrupto e incompetente”, como batia, no rádio e TV, diariamente o então “caçador de marajás”. Ascensão tão rápida quanto a queda, Collor sofreu impeachment no final de 1992. Foi despachado do Palácio sem cerimônia. Itamar Franco, o discreto vice-presidente, montou uma equipe de craques, domou a inflação, criou nova moeda e elegeu o sucessor, Fernando Henrique, a quem transmitiu o cargo em janeiro de 1995.
Após oito anos houve a primeira grande transição da história republicana com a posse de Lula. O sociólogo entregando ao ex-operário o poder que juntos ajudaram a redemocratizar. A cena é inesquecível: emocionados no parlatório do Planalto, os dois se atrapalharam na passagem da faixa e uma das mãos tombou os óculos do presidente que saia e ambos se abaixam para buscá-lo. Naquele momento não eram professor, príncipe, operário ou sapo, e sim dois aspirantes a estadistas cumprindo, com um singelo sinal de humildade, a mais civilizada das transmissões de cargo da história da República.
No alto da rampa-símbolo do poder nacional, presidente e ex-presidente se abraçam de novo para despedida e Lula com a voz ainda mais enrouquecida pela emoção deu o tom definitivo da civilizada transição: “Você deixa aqui um amigo”, disse para o não menos sensibilizado Fernando Henrique.
Pela Planície Goitacá, a ausência da ex-prefeita Rosinha Garotinho na transmissão de cargo ao novo prefeito, Rafael Diniz, longe de surpreender, só confirmou o mau humor dos derrotados, dos ressentidos. Mas isso não é novidade. Quase três décadas atrás, o avô do novo prefeito, que não recebeu o cargo da antecessora, fez o mesmo e também não foi à posse do sucessor: um jovem de 28 anos chamado Anthony Matheus, incipiente político que entraria para a história como Garotinho.
Naquele 1º de janeiro de 1989, Zezé Barbosa escolheu um oficial de Gabinete, Eribaldo Paes, para entregar o poder ao novo prefeito. Pelo menos Zezé recebeu Garotinho, dias após a eleição, no charmoso gabinete da então sede da Prefeitura, o Palacete Finazinha Queiroz, onde funciona hoje a Casa de Cultura Villa Maria. Mulher de Garotinho, Rosinha não retribuiu a gentileza e ignorou o prefeito eleito após a eleição, não o encontrou na transição e nem delegou a nenhum assessor para transmissão de cargo no último domingo.
Esse desencontro entre antecessores e sucessores, aliás, se repetiu nesses últimos anos. Na posse de Garotinho em 1989, jovem repórter da TV Norte Fluminense (então afiliada da Rede Globo), estava eu lá escalado para a cobertura. Quatro anos depois, Garotinho passou o cargo para Sérgio Mendes, eleito com o apoio dele. Estava eu de novo lá, desta vez como secretário do governo que saía e do que entrava. Rompido com o antecessor, Sérgio não transmitiu o cargo ao sucessor, o mesmo Garotinho, em janeiro de 1997. O então vice-prefeito Amaro Gimenes, sem delegação de Mendes nem de ninguém, compareceu para passar um cargo que nunca ocupou.
Como se sabe, Garotinho mal esquentou a cadeira em sua segunda passagem pela Prefeitura de Campos e, em abril de 1998, renunciou para disputar e vencer a eleição para o Governo do Estado no ano seguinte. Seu vice, Arnaldo Vianna, completou o mandato e, eleito na eleição de 2000, recebeu o cargo de si mesmo para passá-lo ao candidato que teve seu apoio, Carlos Alberto Campista, quatro aos mais tarde. O mandato de Campista foi o mais rápido da história dos prefeitos eleitos de Campos: quatro meses e 13 dias após a posse, foi cassado pela Justiça numa decisão de primeira instância que, por razões até hoje desconhecidas, não foi revertida em instâncias superiores. Convocado para mandato-tampão, o presidente da Câmara, Alexandre Mocaiber, foi eleito em 2005 para completar e passou o cargo pessoalmente a Rosinha, em 1º de janeiro de 2009.
Poderia se dizer que Rosinha fechou um círculo revidando com sua ausência, no último domingo, a falta do avô de Rafael na posse do marido, 28 anos atrás. Mas na prática a realidade é outra. Rosinha já tinha encerrado seu mandato desde a derrota de 2 de outubro e principalmente após a prisão do marido e mentor Anthony Garotinho no dia 16 de novembro, acusado de chefiar uma quadrilha formada para comprar de votos a partir de um programa social da Prefeitura. Em solidariedade ao marido, proibido pela justiça de vir a Campos, Rosinha cumpre degredo voluntário num apartamento na praia do Flamengo, mas ambos são aguardados muitas vezes para as muitas audiências judiciais para as quais serão convocados na Comarca.
O título desta crônica é inspirado em uma dessas postagens de redes sociais, sem autoria confirmada, mas que, de qualquer forma, me deixou pensativo desde que li pela primeira vez a frase “o homem faz planos e Deus ri”. Escrevo este texto no fim de tarde do primeiro dia de 2017 com uma ponta de frustração. Planejei terminar 2016 em casa de amigos na praia, onde iria ver queima de fogos e molhar os pés no mar, quem sabe até um mergulho, queria rir, meditar, avaliar o tempo, mas nada saiu como imaginara. Adoeci feio. Só me restou ficar de cama entre vômito, diarreia e dores abdominais. O lado oculto e merdístico da Força tem dessas surpresas. É a vida real.
Prostrado e em jejum, passei o dia 31 de dezembro na cama com vários intervalos de sono e delírios, talvez. Não demorou muito, me espantei, e já era tarde da noite. Pela televisão, acompanhei aquelas tradicionais festas de fim de ano, contagem regressiva, shows musicais, muita energia positiva gerada pela expectativa de uma alteração numérica no calendário. Não me queixo de 2016, mas particularmente, este último dia do ano que passou (mas que ainda não acabou e vai demorar acabar, garantem especialistas políticos e econômicos) me causou estragos físicos. A roupa da virada na praia seria túnica indiana branca, bermuda cáqui e cueca vermelha, mas que acabou sendo substituída pela samba-canção xadrez. Se desejei feliz ano novo? Sim, principalmente para mim, moribundo.
Alguns não entendem quando digo que para mim todo dia é Natal e Ano Novo, pois penso que a solidariedade, o amor e a confraternização devem se manter todo o tempo; e que festejar cada dia de vida merece fogos de artifícios (que não deveriam fazer tanto barulho e afligir os animais) desde a hora que eu acordo até a hora que durmo. Quando alguém sai vivo de uma tragédia ou de uma grave dor de barriga ou virose inexplicável como eu, merce dobrar o número de explosivos coloridos no céu para comemorar. O ano de 2017 fez muita gente vibrar pelas grandes festas privadas ou coletivas, mas nos primeiros minutos do primeiro dia do ano novo dezenas de pessoas foram mortas numa boate em Istambul por um terrorista. Na cidade de Campinas, um homem matou doze pessoas que estavam celebrando o réveillon em casa, e depois suicidou-se. O primeiro ataque seria por motivos de fanatismo religioso e político. Já no segundo caso, o atirador quis se vingar da ex-mulher com quem disputava a guarda do filho adolescente, segundo a imprensa. É a vida real outra vez.
Como percebemos, a vida não é feita só de roteiros prontos, estamos quase sempre fugindo do script. A náusea e a ressaca do ano velho de ontem ainda permanecem em nós, e devem durar um longo período, mesmo que não queiramos pensar nisto (pelo menos na comemoração ilusória que gostamos de participar em festas da virada). Só no Brasil, mais de cinco mil prefeitos passaram a governar cidades desde o dia 1, alguns eleitos pela primeira vez para o cargo. É o caso de Rafael Diniz, prefeito de Campos dos Goytacazes que foi aclamado pelo voto popular derrotando a poderosa família Garotinho composta por dois ex-governadores e uma deputada federal. Muitos eleitores fizeram planos, além de todos os políticos que disputaram. Resta saber quanto tempo dura o riso de quem venceu, e quem vai rir por último nesta era conturbada em que o país se encontra. Acreditar em mudanças é desejo de muitos brasileiros. Mudar para melhor é outra meta. Mas como mudar sem pagar o preço exigido por sacrifícios quase sempre? Quantos estarão dispostos? Brasil em chamas de realidade, ilusão e desilusão.
O preço a pagar é alto nos impostos, nos gastos pessoais, nos investimentos que precisam ser feitos, mas que são ameaçados pelo desemprego e por uma economia cambaleante, por serviços públicos ruins e em colapso, sobretudo nas áreas da saúde, educação e segurança. Precisamos urgentemente de um ano novo, de muito ânimo novo para enfrentar o caos que ameaça a todo instante cidades brasileiras como Campos. Aliás, o caos ameaça também países ricos da Europa, Ásia e os Estados Unidos. Afinal, “miséria é miséria em qualquer canto”, como afirma a letra da canção composta por Arnaldo Antunes, Paulo Miklos e Sergio Britto para a banda de rock Titãs. E esta miséria humana é o grande desafio para todos os povos e governantes de qualquer nacionalidade. A onda de otimismo que percorre o mundo por cerca de treze horas na virada de ano novo também passa, e a vida segue com os mesmos problemas e transtornos de anos anteriores. É a realidade dos fatos.
O ano de 2017 é o Ano do Galo na tradição chinesa. Por sinal, sou do signo de Galo no horóscopo chinês. É o meu ano, arrisco dizer, tipo: ou tudo ou tudo. Andei lendo por curiosidade as previsões astrológicas do Galo, e apesar de ser um ano de energia empreendedora, será um ano de muita cautela e diplomacia na política, devendo-se evitar envolvimento em polêmicas, garantem (o que acho impossível de se concretizar) os especialistas. No amor, quem estiver livre, será o ano da explosão sexual e das conquistas avassaladoras (já estou me preparando). Quem já está comprometido, será o ano para solidificar as relações afetivas e matrimoniais. Se eu creio nestas coisas? Sim, por que não? Entretanto, ainda fico com a máxima que Deus ri de tudo quando se trata de planos e projetos dos homens e mulheres, mas especulo que também Deus fica triste quando destruímos sonhos e vidas neste planeta. O futuro recomeçou para quem ainda vive. Coragem.
Indagado sobre o que Deus fazia eternidade afora, como se entediado estivesse fadado a viver antes de criar um mundo para cuidar, Santo Agostinho respondeu que antes da criação, nem mesmo o tempo existia. Séculos depois, a Ciência afirmou a mesma coisa com a apresentação da Teoria do Big Bang: a grande explosão que deu origem a tudo que existe no universo, da matéria ao tempo. Já segundo a poética (mas implacável) mitologia grega, o Tempo (Cronos) é o filho mais jovem do Céu Estrelado (Urano) e da Terra (Gaia). Cronos se tornou o Deus do Tempo: o rei dos destinos que a tudo devora, embora tenha sido em seu reinado que a humanidade nasceu e viveu sua Idade de Ouro — até Zeus lhe tomar o trono e começar a mandar na gente, rsrsrs. De lá pra cá, balançando entre desígnios alheios e livre-arbítrio… o que temos feito com nossas vidas e com nosso tempo?
Enquanto é comum que crianças e adolescentes desejem que o tempo passe rápido para poderem desfrutar logo das liberdades do mundo adulto, não é raro que os crescidos sintam saudade daquele tempo em que não carregavam o peso de tantas responsabilidades — um tempo que tão rapidamente ficou pra trás. E que peça o Tempo não nos prega, hein?: enquanto custa a passar lá na infância, acelera e dispara depois de uma certa idade. Para todos, no entanto — em retrospectiva —, fica a certeza tatuada em cada vinco de pele e pensamento: “tempus fugit”. Sim, o tempo nos escapa. Supersonicamente.
A percepção (da passagem) do Tempo é variável, claro: cultural e individualmente — e daqui a alguns séculos, se viajarmos por entre as estrelas, será variável também por causa da Física descrita na Relatividade de Einstein. Por enquanto, com nossos pés bem fincados na Terra, nossa preocupação se concentra em três palavras: passado, presente e futuro. Por causa delas sentimos saudade e fazemos planos; nos arrependemos e orgulhamos; rimos e choramos; lidamos com nossas consciências e encaramos o despertador a cada manhã. Nossas realizações, lembranças e expectativas são filhas do Tempo porque nós o somos. Daí toda a pressão e a esperança com que forramos essa cama inquieta que chamamos de calendário.
Passar mais tempo com a família, emagrecer, arrumar um trabalho melhor, adotar hábitos mais saudáveis, entrar pra academia, investir em educação, curtir mais a vida… são todos imperativos do nosso Tempo — e coisas que levam um tempo pra se conseguir ou se dispor a fazer. Mas precisamos mesmo — e sempre — só projetar isso para o primeiro de cada janeiro? Ano novo: vida nova? Por que não nos renovarmos e reinventarmos a qualquer tempo?
Então, meus votos de vida nova para todos partem da recomendação de que deixemos de ver o tempo como algo exterior a nós. Recorrendo novamente a Santo Agostinho, repito que o Tempo é, sobretudo, psicológico e que lidamos com ele internamente. Assim, para além das “marcas do que se foi, sonhos que vamos ter”, fico com a parte que diz “como todo dia nasce novo em cada amanhecer” — desejando a todos que possam dizer, quando perguntados como medem o Tempo: “Meço com o meu espírito”.