Vanessa Henriques – “Isso é muito ‘The Purge'”: Crise do policiamento e insegurança generalizada

Nos últimos tempos, não foram raras as vezes em que o cenário político brasileiro adquiriu contornos surreais. Houve diversos momentos em que, surpreendida, desabafei com meus próprios botões: “Nunca poderia imaginar que iria testemunhar algo parecido”. Pertencente a uma geração que surfou em ondas de bonança e otimismo, devo confessar que venho amargando uma dolorosa decepção frente a expectativas geradas por um período relativamente estável da política brasileira que, analisado o “conjunto da obra”, revela-se como exceção e não como a regra da história das nossas instituições.

Na última semana, experimentei novamente esta perplexidade quando assisti alguns dos vídeos que registravam crimes ocorridos no Espírito Santo, quando deflagrou-se o movimento de familiares dos policiais militares que reivindicavam melhores condições de trabalho para esta categoria. Meu assombro tornou-se ainda maior quando alastrou-se pelos ares da nossa planície a ameaça de que a cidade viveria momentos semelhantes àqueles vivenciados pelos capixabas. Presenciar alguns conhecidos estocando mantimentos e construindo verdadeiras barricadas dentro de suas casas acabou por forçar um pouco mais as fronteiras do surreal e o óbvio pululante dos últimos tempos tornou-se ainda mais escancarado: meus amigos, as coisas vão mal, muito mal.

Pude observar muitas pessoas, de todos os espectros políticos, divididas a respeito de como deveriam se posicionar diante da mal disfarçada “greve” dos policiais. Afinal, dada a crítica situação financeira de muitos estados, qualquer movimento de trabalhadores que pleiteie o direito de exercer sua profissão de forma digna merece apoio e compreensão. Mas, por outro lado, quando se trata de uma categoria de trabalhadores que detém o monopólio do uso legítimo da força física e que é responsável por conter um estado de “anarquia” generalizada, como apoiar uma paralisação geral que pode colocar muitas vidas em risco?

As cenas exibidas pelos vídeos gravados nas cidades do ES criaram uma espécie de pânico coletivo que se espalhou através do Facebook e do WhatsApp. Mais de cem corpos foram contabilizados nesses últimos dias. Corpos que pertenciam, em sua grande maioria, a moradores das periferias. Grande parte deles, vítimas de acertos de conta entre facções rivais e grupos de extermínio paramilitares, segundo afirmaram os noticiários.

Além do vertiginoso aumento de homicídios, muitos foram os vídeos que registraram crimes contra a propriedade. Pessoas chegavam às lojas munidas de carros e motocicletas que pudessem abarcar o máximo possível de itens saqueados. Uma mulher arrastava pelas ruas um “cabide” repleto de calçados. Um casal se esforçava para carregar cuidadosamente um televisor retirado de uma loja de departamentos. Senhoras, “mães de família”, se acotovelavam em meio à multidão que se embolava disputando eletrodomésticos. Famílias inteiras se organizavam para pegar todos os alimentos que conseguissem transportar. Muitos dos que foram flagrados pelas câmeras cometendo esses delitos, são considerados pelos seus pares, tal como também consideram a si mesmos, cidadãos “comuns” e “de bem”.

O hipotético “estado de natureza” criado pelo teórico político Thomas Hobbes foi evocado como metáfora por/ alguns dos meus colegas de profissão nos agitados debates travados nas redes sociais. No “estado de natureza hobbesiano”, que precederia a criação do Estado tal como o conhecemos hoje, o que impera é a lei do mais forte. Sem a ameaça de um ente superior controlador e punitivo, os indivíduos agiriam livremente de acordo com seus interesses egoístas, tendo como único limite o poder dos outros indivíduos de coibir suas próprias ações. Outra metáfora trazida para o debate faz alusão ao enredo do filme estadunidense “The Purge” (no Brasil, “Uma Noite de Crime”), que conta a história de uma sociedade distópica na qual toda a sorte de crimes é permitida durante um dia do ano, como medida que objetivaria a diminuição dos índices de criminalidade ao longo do resto do ano.

No ES, a ausência da atuação das forças de segurança explicitou conflitos que jazem latentes em todo o Brasil e que se manifestam ora ou outra de maneira mais “explosiva”. É imprudente interpretar o fenômeno dos saques massivos através de uma perspectiva moralizante individual, como uma mera questão de classificar como “maus” aqueles que se lançaram sobre as lojas e como “bons” aqueles que permaneceram “obedientes” mesmo diante da cessão momentânea da ameaça de punição. Mais do que apontar falhas individuais de “caráter”, faz-se necessário perceber como os conflitos entre os interesses das distintas classes teve papel crucial na condução dos acontecimentos no ES.

O ímpeto de adquirir produtos e acumulá-los é uma marca da sociedade moderna. Creio que cabe trazer para a nossa realidade, salvaguardando as diferenças de ambos os contextos, uma frase proferida pelo sociólogo Zygmunt Bauman, em 2011, em uma ocasião na qual proliferavam-se saques a lojas de departamentos em Londres: Tais fenômenos “são uma combinação de desigualdade social e consumismo. Não estamos falando de uma revolta de gente miserável ou faminta ou de minorias étnicas e religiosas reprimidas. Foi um motim de consumidores excluídos e frustrados.

(…) Estamos falando de pessoas humilhadas por aquilo que, na opinião delas, é um desfile de riquezas às quais não têm acesso. Todos nós fomos coagidos e seduzidos para ver o consumo como uma receita para uma boa vida e a principal solução para os problemas. O problema é que a receita está além do alcance de boa parte da população. ”

Cidadãos trancados em casa devido ao medo, cidadãos saqueando lojas para adquirir produtos, cidadãos assaltando e matando impunemente e policiais-cidadãos buscando melhores condições de trabalho, são alguns dos atores desse jogo, unidos por um cenário que tem como pano de fundo a perda de direitos trabalhistas e o sucateamento dos serviços públicos oferecidos pelo Estado, de modo geral, num contexto de crise econômica seletiva, uma vez que a contenção de gastos não afeta todas as camadas da população da mesma maneira. Seria frutífera a percepção, por parte desses grupos, desses mecanismos econômicos e políticos que criam uma conjuntura de escassez que estimula paulatinamente a oposição de “todos contra todos”, acentuando os interesses corporativos e individuais e escamoteando as raízes comuns de um mesmo mal.
http://oglobo.globo.com/mundo/foi-um-motim-de-consumidores-excluidos-diz-sociologo-zygmunt-bauman-2690805#ixzz4Y8gEMOU9

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