Às três da manhã de uma madrugada insone (como foram tantas no ano de 2016), recebi por telefone uma instigante pergunta de um amigo jornalista. Ele estava finalizando uma matéria para uma revista e me questionava sobre uma possível depressão pós-golpe. Sinto que lhe devo uma resposta. Naquela madrugada usei os argumentos conhecidos. Sobre a crise vivida pelo funcionalismo no Rio de Janeiro, sobre a crise da esquerda, sobre as pequenas depressões cotidianas. Ele não parecia satisfeito, relatando outras repostas já recebidas. Eu estava contra a parede. Para respondê-lo, recuperei as memórias de luta do Muspe (Movimento Unificado dos Servidores Públicos Estaduais ) nas escadarias da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, recuperei a angústia diária vivida nos meses anteriores ao impeachment de Dilma Rousseff, eleita com mais de 54 milhões de votos em 2014. Mas estranhamente, de forma não intencional, a resposta tardia só me pareceu satisfatória depois de viver três experiências indiretamente conectadas. E disto trato neste texto-resposta.
Nos mês de janeiro, ainda em Porto Alegre (e exatamente por conta da suspensão da rotina cotidiana) assisti aos filmes Tatuagem (2013, Hilton Lacerda), Neruda (2016, Pablo Larrain) e finalmente, Elis (2016, Hugo Prata). Não houve nenhum tipo de racionalidade anterior na escolha. A relação entre os filmes só foi estabelecida, na verdade, ao final do terceiro, quando senti a resposta como um soco no estômago. Os três filmes tratam da relação entre arte e política em tempos de ditadura. Tratam do teatro, da poesia e, no caso de Elis, da música. Algo que devo mencionar como vivi o ano de 2016: uma paralisia da escrita causada pela sensação de total inutilidade da crítica diante dos golpes orquestrados pela estrutura política e pelo aumento da repressão à população. E sobretudo, pelo clima de ódio cotidiano manifestado em atos de violência (virtuais e físicos) contra mulheres, gays, negros, indígenas e presos (entre outros grupos, visados como alvo de ataques dentro de uma compreensão míope sobre o significado dos direitos humanos no Brasil).
Assisti a estas três narrativas sobre a relação entre o artista como figura política fundamental no agenciamento das emoções de um povo e a censura. Censura aos espetáculos, censura à poesia, censura às letras de música brasileira. Perseguição, cassação, prisão, tortura e morte. Ao relembrar o primeiro enterro de Elis por Henfil no Pasquim, durante a ditadura militar e a gravação de “O bêbado e o equilibrista”, entendi o que havia me acontecido: minha tristeza (esta sobre a qual ele me questionara) se manifestara na incapacidade da escrita. Da escrita livre, que por ventura sempre guarda alguma espécie de aposta utópica. A censura, em sua forma mais fantasmagórica havia me abraçado. Os primeiros versos de “Canto General”, jogaram-me nas centenas de celas espalhadas pela América Latina naqueles anos. Tenho me perguntado sobre dar resposta ao momento político, às contas acertadas com a história. E tenho aprendido a administrar o horror. Das chacinas e estupros coletivos. Percebi que a perturbação profunda causada pelas três narrativas era a resposta ao (des)ânimo vivido. Durante o ano, amigos em diferentes momentos se afastaram do convívio público, cansados, abatidos, incrédulos. A eles dedico este texto como nos versos de “Sinal Fechado”, vivíamos encontros cheios de sustos, adiando a vida para um próximo encontro. Que nunca viria, ou viria como um simulacro, um estar pela metade, um estar censurado. Era isto. Parados em um sinal de uma avenida em Goiânia. Assustados com a nomeação dos novos ministros, com o cinismo dispensado a cada noticiário oficial. Mas não há censura. Não temos “Canto General”, nem a volta do irmão do Henfil. São dias de um limbo de novo tipo. Sem movimento operário, sem utopia latinoamericana… quem poderia descrever esta censura que não produz resistência?
Esta é minha resposta. Como arrancar do cotidiano a utopia da qual nos fala Galeano? Como ultrapassar este sinal fechado sem perder a voz, a vida, sem cair sob as botinas que massacram professores nas ruas do Paraná? Como não tombar frente ao exército da farsa, empossado, ativo e cheio de vontade de morte?