Fernando Leite — Minha casa

 

“Cozinha caipira”, óleo sobre tela de Almeida Junior

 

 

Minha casa

 

Salto dentro da tarde,

como quem cai na correnteza do rio temporal.

Vou sem volta.

Pássaros batem em retirada de mim.

 

É incomum que levantem vôo

quando a noite se alonga.

A noite é casa de andarilhos,

poleiro de avoantes.

 

Quintal sem cercas é o claro dia.

 

Aves de arribação vêem o movimento das estações,

os sinais de velhice no dorso de minhas mãos.

Eu inverno.

 

Minha linhagem é assim: começa a entardecer pelas mãos.

Esse assalto do tempo é lenta agonia,

mas assombra.

faz levantar andorinhas, papa-capins e os cantadores.

 

Se pudesse escolheria não morrer comum.

queria a nona sinfonia abrindo as portas do mistério.

Mas agora o que quero é minha casa

tal e qual era:

as janelas maciças, feridas de sol

naquela tarde suburbana

tão longe.

 

Quero minha casa de volta.

A noite miúda dentro do quarto,

o cortinado armado,

meus irmãos nos beliches

e a madrugada lá na bica d’água vazando,

vazando,

vazando.

 

Quero minha casa onde era:

na descida do morrinho,

bem em frente a vivenda de dona Tinola.

Antiga, com a moenda triturando o milho e a tarde,

a galinha de pinto no terreiro

e o lençol transparente do dia desfraldado

no varal.

Atrás da figueira,

o canto do canário belga

— uma flecha de porcelana atirada.

 

Quero minha casa e minha mãe,

mãe medieval, tronco e braços,

músculos na bacia, avental, fogão de lenha

e flor quando havia tempo.

 

Minha mãe na igreja, nave mística,

ancorada entre a praça e a linha do trem.

os santos barrocos de sorriso que não combinava

com a manhã nos vitrais.

O pecado grudado no meu pescoço

e eu com pavor da fúria de Deus.

 

Quero minha mãe, viuva sublimada, senhora soberana.

 

Quero minha casa

as mangueiras, laranjeiras, goiabeiras,

esteios do reino de minha memória.

O céu bem acima das copas

e as pipas revoltas, suicidas, desgarradas

vento afora.

 

Não quero nada além das fronteiras

do campo de meu afeto —

mares, montanhas brancas, falésias,

geografia do meu desconhecimento

terras que só ouvia falar,

territórios do sonho.

 

Quero só minha casa na avenida governador Roberto Silveira de volta,

minha infância, seus domínios e seus cheiros,

a broa de milho, os eucaliptos do seu Nico Figueira

vergados nos temporais,

Maria Tabajara e sua alegria atávica,

o olhar crepuscular daquela menina

que perdeu-se nas esquinas do futuro.

 

Preciso de minha casa e sua geografia mítica,

porto onde o mundo começa e termina.

 

fb-share-icon0
Tweet 20
Pin Share20

Deixe um comentário