Minha casa
Salto dentro da tarde,
como quem cai na correnteza do rio temporal.
Vou sem volta.
Pássaros batem em retirada de mim.
É incomum que levantem vôo
quando a noite se alonga.
A noite é casa de andarilhos,
poleiro de avoantes.
Quintal sem cercas é o claro dia.
Aves de arribação vêem o movimento das estações,
os sinais de velhice no dorso de minhas mãos.
Eu inverno.
Minha linhagem é assim: começa a entardecer pelas mãos.
Esse assalto do tempo é lenta agonia,
mas assombra.
faz levantar andorinhas, papa-capins e os cantadores.
Se pudesse escolheria não morrer comum.
queria a nona sinfonia abrindo as portas do mistério.
Mas agora o que quero é minha casa
tal e qual era:
as janelas maciças, feridas de sol
naquela tarde suburbana
tão longe.
Quero minha casa de volta.
A noite miúda dentro do quarto,
o cortinado armado,
meus irmãos nos beliches
e a madrugada lá na bica d’água vazando,
vazando,
vazando.
Quero minha casa onde era:
na descida do morrinho,
bem em frente a vivenda de dona Tinola.
Antiga, com a moenda triturando o milho e a tarde,
a galinha de pinto no terreiro
e o lençol transparente do dia desfraldado
no varal.
Atrás da figueira,
o canto do canário belga
— uma flecha de porcelana atirada.
Quero minha casa e minha mãe,
mãe medieval, tronco e braços,
músculos na bacia, avental, fogão de lenha
e flor quando havia tempo.
Minha mãe na igreja, nave mística,
ancorada entre a praça e a linha do trem.
os santos barrocos de sorriso que não combinava
com a manhã nos vitrais.
O pecado grudado no meu pescoço
e eu com pavor da fúria de Deus.
Quero minha mãe, viuva sublimada, senhora soberana.
Quero minha casa
as mangueiras, laranjeiras, goiabeiras,
esteios do reino de minha memória.
O céu bem acima das copas
e as pipas revoltas, suicidas, desgarradas
vento afora.
Não quero nada além das fronteiras
do campo de meu afeto —
mares, montanhas brancas, falésias,
geografia do meu desconhecimento
terras que só ouvia falar,
territórios do sonho.
Quero só minha casa na avenida governador Roberto Silveira de volta,
minha infância, seus domínios e seus cheiros,
a broa de milho, os eucaliptos do seu Nico Figueira
vergados nos temporais,
Maria Tabajara e sua alegria atávica,
o olhar crepuscular daquela menina
que perdeu-se nas esquinas do futuro.
Preciso de minha casa e sua geografia mítica,
porto onde o mundo começa e termina.