Quatro meses após a partida do doutor Coutinho para uma expedição socioantropológica no reino de Anamédia, recebi sua primeira missiva detalhando suas descobertas. Falava com bastante encanto de suas maravilhas, de sua arquitetura, de sua culinária, de seu equipamento militar e, principalmente, de seu sistema jurídico e legal.
Segundo seus relatos, toda a Anamédia se fundava em um forte princípio dialético. Concebiam que para todo argumento existe um contra-argumento, e então todas as discussões jamais se encerravam. Uma opinião sempre era aceita, porém interposta com algo que a invalidasse. Isso tornava cada um dos cidadãos exímio debatedor e a nação extremamente fértil em ideias.
O sistema jurídico de Anamédia se desenvolveu a partir dessa característica peculiar. Os tribunais se enchiam de debatedores, os advogados, defensores e acusadores utilizavam de exímia capacidade de argumentar a ponto de transformar o mais simples debate em um colóquio científico da mais alta grandeza. Isso gerava vastas quantidades de papéis e os processos se enchiam com a sofisticação de enormes tomos com conhecimentos diversos.
O autor da carta narrou o julgamento de um homem acusado de roubo. O promotor expôs uma digital colhida na cena do crime que batia com a do réu. A defesa então questionou se havia alguma probabilidade de que um clone perfeito do réu deixasse ali suas digitais, se no exame constavam as estatísticas de erros inerentes à papiloscopia, o quanto uma digital de fato pode ser algo relevante por si e não somente mera potencialidade a se juntar a outras provas adiante, ou seja, algo que pode ser, sem ainda sê-lo. A acusação pediu um recesso para elaborar suas respostas e na sessão seguinte as apresentou, e, para cada novo detalhe da resposta, a defesa lançava mais e mais questionamentos. Ou seja, o processo caía em um inquérito filosófico sem fim.
Esse caso foi uma amostra de todo o sistema judiciário do país, composto por debates intermináveis. Aos poucos todo processo se ramificava em um amplo ir e vir de perguntas irrespondíveis e o processo estacava. O resultado disso era um país onde não havia presos, já que ninguém jamais seria considerado culpado por um tribunal.
À primeira vista me pareceu inconcebível o funcionamento de uma sociedade dessas. Não consegui imaginar como qualquer valor moral, como qualquer tipo de sociabilidade ou cidadania poderia ser exercido, como alguém respeitaria contratos ou leis em mundo em que processos judiciais nunca se concluíam.
Para meu espanto, doutor Coutinho me contou mais adiante na carta que jamais viu um povo tão funcional quanto o de Anamédia. Tudo isso em decorrência dessa longa jornada judicial, que se convertia em punição por si só. Afinal de contas, cientes todos os cidadãos de que o processo judicial resultaria em um dispêndio interminável de tempo e dinheiro, a maioria deles evitava cometer qualquer falha. Quem requisitasse a justiça terminaria falido de tantos gastos, exausto de tantos compromissos, humilhado diante de tantas e tantas acusações, e assim a liberdade e todos os direitos indubitavelmente se perdiam. Portanto, pouquíssimos cometiam crimes e as pessoas se casavam apenas com total certeza de que desejavam o compromisso pelo resto da vida. Quando um casal começava a divergir, bastava a mera lembrança dos trâmites burocráticos para desistirem do divórcio e logo se contentavam novamente com a vida conjunta. Por consequência, fomentavam-se o respeito à leis, a cordialidade, a benevolência. Ninguém atravessava o sinal vermelho, ninguém tentava passar a perna, todos resolviam suas diferenças antes de iniciar qualquer discussão. E os advogados constituem uma exclusiva e diminuta casta de milionários, já que passam o resto da vida recebendo dinheiro de seus clientes.
Sentei fascinado diante da descrição desse local. Pareceu-me bastante usual, apesar de um tanto quanto assustador, um sistema jurídico que impusesse o respeito à lei não pelo medo da punição, mas do próprio processo judiciário. Ao mesmo tempo, imaginei o quanto de injustiças não advêm de um tal sistema, de quantas pessoas sofreriam em silêncio vítimas de algum dano com receio de lutarem pelos seus direitos.
Fui tomado pela curiosidade de visitar Anamédia e até preparava minhas malas para partir de navio. Apenas seis meses depois da chegada da carta de Coutinho que de fato pude me livrar de minhas obrigações profissionais e me dedicar a uma viagem. Entretanto, dois dias antes de embarcar, recebi uma nova carta do doutor.
Dessa o vez o tom de suas letras estava carregado de dor, narrando a odisseia de desespero que atravessa nessa terra anteriormente aprazível. Já não repetia os termos elogiosos e nem declamava como o mundo seria mais feliz caso copiasse os princípios dessa sociedade.
Quando planejava retornar ao Brasil, o doutor deu por falta de seu passaporte. Deu entrada na embaixada para solicitar um nova, porém transferiram seu pedido e este recaiu em uma das cortes do país. Precisou contratar um advogado e iniciar o processo.
Assim, conheceu na prática o suplício e se enrolou na armadilha do judiciário de Anamédia. Embarcou nessa longuíssima narrativa dentro de tribunais, sendo refutado cada vez que respirava. Constatou da pior forma possível que jamais retornaria para casa, condenado pelo restante de seus dias a responder ao mais longo dos inquéritos filosóficos.