Vanessa Henriques — Procura-se profissionais flexíveis

 

 

 

Vivemos em um mundo cada vez mais competitivo. Nas últimas décadas, no Brasil, democratizou-se o acesso ao ensino superior e à pós-graduação, ou seja, aumentou o contingente de mão de obra qualificada no Brasil sem que, como consequência, aumentassem também as vagas existentes no mercado de trabalho. Desta forma, podemos facilmente observar muitas pessoas pertencentes à geração Y – classificação utilizada na Sociologia para enquadrar os indivíduos que nasceram entre 1980 e meados da década de 90 – com dificuldade de se estabelecer no mercado mesmo a despeito do acúmulo de títulos escolares. São muitos os que optam por abandonar as carreiras pelas quais são apaixonados para procurar empregos em áreas com vagas mais abundantes e geralmente mal remuneradas.

Lendo as reportagens dos jornais, topo com a triste (mas razoável) afirmação de uma consultora profissional: “Não adianta estudar para o que o mercado não pede.” Sustentar o desejo de estudar e trabalhar com aquilo que a gente realmente gosta, quando se trata de profissões pouco valorizadas pela lógica do mercado, não é tarefa das mais fáceis. Frequentemente, o sonho vai por água abaixo quando não se tem a ajuda financeira da família por um período de tempo considerável após a graduação. Portanto, para a maioria, a regra é aceitar as oportunidades que aparecem pela frente; realização subjetiva no trabalho é um privilégio para poucos.

Esta insegurança que muitos de nós sentimos em relação ao futuro provoca uma grande ansiedade que muitas vezes é capaz de paralisar o sujeito e impedir que este se movimente em direção às suas ambições. Somado à sensação de instabilidade também se encontra o peso das exigências do mercado: procura-se profissionais flexíveis, “antenados”, desapegados, prontos a se “reinventarem” a qualquer momento para tornar o trabalho mais “dinâmico”.

No final da última década, o sociólogo estadunidense Richard Sennett, em seu livro “A Corrosão do Caráter — Consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo”, aponta esta tendência à flexibilização do trabalho e suas consequências observáveis nas relações dos trabalhadores com o tempo, agora marcado pela premência do “curto prazo”. Logo no prefácio do livro, o autor nos oferta uma informação etimológica curiosa: a palavra “career” (carreira), na língua inglesa, significava originalmente “estrada para carruagens” e depois, quando foi aplicada à vida profissional, remetia-se ao “caminho” de atividades laborais “percorrido” por uma pessoa durante toda uma vida. Mais tarde, com o advento do que ele chama de “capitalismo flexível”, no qual as pessoas se deslocam de um trabalho a outro com maior frequência, a palavra “job” (serviço, emprego), que originalmente significava “bloco” ou parte de alguma coisa que se podia transportar de um lado pro outro, começou a dar sentido a esta nova forma de trabalhar, na qual as pessoas realizam o trabalho em partes, “blocos”, no curso de uma mesma biografia.

As incertezas que se originam quanto ao futuro profissional ou mesmo quanto à permanência no emprego atual, transformam os ambientes de trabalho em locais hipercompetitivos, permeados por uma tensão constante, pois o outro é sempre um concorrente em potencial. Além disso, a necessidade de ser “pau pra toda obra”, “saber fazer um pouco de tudo”, dirigir uber, saber vender cosméticos, trabalhar com telemarketing, ter a disciplina necessária para estudar para concursos de cargos administrativos, etc, é responsável por criar uma massa de pessoas com fraca identificação com o trabalho que exercem, conscientes que estão do caráter temporário dessas ocupações.

As pessoas que possuem esta frágil relação com um papel profissional estarão mais propensas a se desequilibrarem psicologicamente diante das flutuações da vida laboral. Mesmo sem poder me alongar muito sobre o assunto, cabe a provocação: seria coincidência que o Brasil possua a maior taxa de transtorno de ansiedade do mundo e a quinta maior de depressão? Dito isto, outra pergunta, esta formulada por Sennett, complementa a questão: Haverá limites para até onde as pessoas são obrigadas a dobrar-se? Pode o governo dar às pessoas alguma coisa semelhante à força tênsil de uma árvore, para que os indivíduos não se partam sob a força da mudança?”

Não bastassem as dificuldades já impostas pela dinâmica mercadológica contemporânea, continuamos sofrendo uma série de golpes aos direitos trabalhistas nos últimos meses: aprovação da terceirização irrestrita e uma injusta proposta de reforma da previdência, capitaneadas por um presidente com baixíssima popularidade e sem a legitimidade necessária para realizar reformas tão profundas e de tamanho impacto na vida dos brasileiros. Além disto, para deixar a situação ainda mais tenebrosa, durante períodos de crise econômica é possível observar o advento de reações políticas conservadoras. Nestes casos, o conservadorismo político surge como um mecanismo psíquico de defesa frente à excessiva instabilidade do mundo. Diante de um cenário turbulento, os discursos que exortam o passado e veem com desconfiança as novas soluções para problemas antigos, ganham um maior número de adeptos.

É nesse contexto em que se encontram os espezinhados brasileiros. Como consequência do processo de flexibilização do trabalho — que se intensificará com a iminente “onda” de terceirizações — acentuam-se as desigualdades já existentes na sociedade: sem mecanismos de proteção aos mais vulneráveis, que atenuem as disparidades entre as forças dos concorrentes dessa eterna disputa pelas posições mais favoráveis desse jogo, os costumeiros vencedores é que irão açambarcar todas as fichas.

 

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