Você conheceu alguém próximo, um parente ou amigo, que morreu assassinado no Brasil nos últimos anos? Cinquenta milhões de brasileiros disseram sim, segundo o Instituto Datafolha, em pesquisa encomendada para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Dados dessa pesquisa foram revelados no último dia 5 de maio, mas até agora não repercutiu na grande mídia. A impressão que me dá é a seguinte: para muita gente, a morte banalizou e nos habituamos à violência, apesar das queixas.
Nenhum instituto de pesquisa me perguntou sobre relatos pessoais acerca de mortes violentas, mas puxando pela memória, em alguns segundos, fiz uma lista considerável de gente que conheci e que morreu assassinada. Em 1985, meu pai morreu baleado. Suspeita: assalto (caso nunca esclarecido pela polícia que sequer investigou). Em 1990, um amigo taxista morreu torturado e baleado. Suspeita: assalto ou vingança. Em 1997, um outro amigo vereador morreu golpeado na cabeça e depois teve o corpo carbonizado dentro do carro. Motivo: crime político cometido pelo suplente. O assassino foi julgado, condenado, cumpriu pena e está solto.
Já em 1998, um primo caminhoneiro foi assassinado na região metropolitana do Rio durante assalto. No início dos anos 2000, um policial militar e vizinho morreu numa troca de tiros com traficantes em uma favela carioca próximo à Avenida Brasil. Em 2016, um adolescente filho de uma amiga morreu com vários tiros por conta de tráfico de drogas. Em 2017, um amigo de infância foi brutalmente assassinado. Suspeitas: latrocínio e homofobia.
Perdi a conta de quantas reportagens fiz desde que comecei a trabalhar como jornalista em 1990. Em um dos últimos cálculos, eram quase doze mil textos com outras milhares de entrevistas. Destas atividades, também não consigo precisar quantos crimes de homicídios reportei para os noticiários de televisão. Não foram poucos. Um dos mais violentos que verifiquei foi em um canavial na região de Tocos, Baixada Campista, em 2009. A polícia encontrou dois corpos de homens decapitados. As cabeças nunca foram encontradas. E eu ali olhando aqueles buracos imensos entre os ombros das vítimas, anotando tudo rapidamente para correr para a emissora, dar a notícia, bater o cartão de ponto, encerrar expediente, para finalmente almoçar e descansar de um dia árduo de trabalho. Fiquei frio e indiferente por pura sobrevivência?
Esta suposta indiferença pode ser um mecanismo de defesa meu e de muitos brasileiros. Em 1988, se não me engano, eu e um grupo de amigos participávamos de uma vigília de oração pela madrugada em uma igreja batista de Guarus. Percebemos um carro suspeito rondando o templo e nos fechamos no prédio. O veículo estacionou na esquina. Eu e um amigo nos posicionamos em uma janela do terceiro andar do edifício, e nos pusemos, escondidos, a olhar pelas frestas o que acontecia do lado de fora. Um homem morreria vítima de um brutal assassinato logo depois.
No carro havia dois homens. Um deles desceu e se encontrou com um outro homem cabisbaixo (a vítima) que parecia dar explicações não convincentes. Era cobrança de alguma dívida, provavelmente. Depois de uma certa insistência, não havia mais nada a ser dito. O algoz saca da cintura um revólver e atira várias vezes contra o peito, a barriga, as pernas, os braços e a cabeça da vítima. O homem já caído e vencido, sangra e agoniza. O assassino não se contenta, tira o cinto da calça que vestia e surra com violentos golpes de couro e fivela o corpo do pobre diabo que não reage mais. O bandido entra no carro com o comparsa e desaparecem para nunca mais. No dia seguinte, a imprensa deu a notícia do crime Supostamente um envolvimento com traficantes de drogas. Caso arquivado e sem testemunhas. Eu já havia aprendido como funcionava a lei do silêncio ainda adolescente. Aliás, eu nem sei se era realmente eu que viu tudo aquilo. Parecia um delírio…
No último fim de semana, um site de notícias de Campos divulgou o suposto suicídio de uma professora da cidade. O fato repercutiu em redes sociais. Fiquei incomodado com a falta de sensibilidade dos divulgadores e do veículo irresponsável. Sou de um tempo em que falar de suicídio na imprensa era a última coisa a ser feita. A não ser quando se tratasse de uma autoridade ou pessoa pública, e mesmo assim, de um modo discreto, sem sensacionalismo. A quem, de fato, pode interessar a informação de que alguém se matou? No entanto, a quem interessa saber se alguém matou outro alguém? O que aprendemos com a morte de uma pessoa? Valorizamos mais a vida?
Há décadas, os filmes de ação e de western abordam mortes como algo divertido, bem antes dos videogames de guerras e matanças generalizadas chegarem às salas de nossas casas, aos computadores e telefones celulares pessoais. Muitos telejornais incorporaram parte dessas linguagens e noticiam crimes e assassinatos com narrações e trilhas sonoras dramáticas, antes ou depois das novelas, antes ou depois de um anúncio de margarinas, perfumes, alimentos, cervejas e presentes para o dia das mães. É a espetacularização da barbárie e da desumanidade.
Se um quarto da população brasileira ao longo de sua existência conheceu alguém que morreu violentamente, a grosso modo, isso equivaleria a 50 milhões de pessoas mortas nas últimas décadas? Não sei responder com exatidão. Porém, uma coisa é fato: sobrevivemos por sorte em um país que é violento não só por conta de homicídios, tráfico de drogas ou acidentes de trânsito. A violência faz parte de uma cultura generalizada que passa também pelos governos e parlamentos, além de diversas instituições como família, escola, universidade e igreja que não conseguem inibir a sanha de matar ou de eliminar pessoas que nos incomodam e que não se ajustariam ao convívio social, político ou religioso. Se você chegou vivo ao final da leitura deste texto, parabéns, saiba que é uma pessoa de sorte. Qualquer um pode ser a próxima vítima e morrer, para logo em seguida, ser esquecido.