O cenário da feira municipal já era familiar. Por isso, estar sozinha não era um problema entre as cores das pupunhas de vez e os sons comuns dos descarregamentos de peixes e das risadas de canto de boca na quina do box de legumes. Flutuava pelo trajeto como uma dançarina de balé — da senhora da goma de tapioca, passando pelo saquinho de um real de pimenta murupi até a banca do cará roxo. Coroando com um caldo de cana no senhor simpático em frente aos tambaquis.
Munida de duas sacolas de pano cheia de frutas, legumes, folhas e farinhas, uma em cada ombro, ela caminhou decidida para o espaço fora da feira. Pensou no caminho quanta diversidade cabia naquele espaço — desde a senhora estrangeira que carrega o cesto de alho na cabeça para vender, mantendo o extremo cuidado com seu bebê nos braços e as motos ziguezagueando entre aqueles que caminham junto com os carros. Isso até acontecer um pequeno acidente entre uma menina que carregava um isopor de rúculas em sua bicicleta que bate na parede, assustada com as motos. Minutos de gritaria e posterior entendimento da situação, a feira segue seu caminho.
Já fora do mercado municipal, ela ajeita as sacolas em cada ombro e caminha em uma rua menos movimentada para aceitar o convite da amiga de almoçarem juntas em sua casa. Havia chovido naquele dia, então, redobra o seu cuidado ao andar a pé na calçada mal conservada. Mesmo sendo dez horas da manhã de sábado, o sol não está radiante, o que, no fim das contas, é bom para ela que estava sem sua bicicleta ou sem carona.
Aquela rua que caminhava não era familiar como o balé da feira. Pensou consigo mesma que não haveria problema algum, estava de manhã cedo e com o movimento das compras do sábado. Olhava distraída um terreno que poderia vir a se interessar para morar e quem sabe comprar em um futuro próximo, com o seu recém conquistado salário de funcionária pública, quando um corola branco passou ao seu lado quase parando e deu a volta. Como o carro tinha proteção nos vidros para a radiação solar absurda do norte do país, não conseguiu ver quem estava dentro do carro. Poderia ser um amigo, alguém que trabalhava na mesma repartição e ela olhou curiosa. Mas o motorista não insistiu. Ela seguiu o seu caminho.
Na próxima quadra, novamente o corola branco, passando muito devagar ao seu lado e retornando logo à frente. Havia de ser alguém que conhecia, “o Francisco lá do tribunal tem um carro desses? Acho que deve estar bem contente, ele queria comprar um carrão”. Ao ter esse pensamento, em uma fração de segundos, houve o desenrolar do mistério. Um senhor que não conhecia apareceu do outro lado do vidro, depois do descortinar da janela. Ela olhou para aquele homem de meia idade, branco, com barba, roupas de marca ao acenar com a cabeça para que ela viesse em direção ao carro. Incrédula com aquela cena, quase bateu o pé na poça de lama à frente e continuou o seu caminho procurando a rua movimentada com seus olhos e querendo que o peso das compras fosse menor para que simplesmente corresse dali. Não estava mais se sentindo segura.
Qual não foi a sua surpresa quando o homem no carro branco insistiu em dar a terceira volta. Ao desembainhar o vidro eletronicamente, ela não quis nem mais olhar para o corola e começa a ouvir ‘gostosa’, ‘vem aqui que eu dou um trato em você’. Baixou os olhos para si mesma e se perguntou, mesmo diante de sua formação de ensino superior, a criação emancipadora de sua mãe e sua própria trajetória de entendimento das questões de gênero, se a bermuda não poderia ser uma calça ou se estava ‘marcando demais’. Não tinha decote, as roupas eram bem simples, daquelas que passaria o sábado em sua casa.
Na insistência daquele infeliz andar dentro do carro quase na velocidade de seus passos, ela começou a rezar baixinho, mantendo um ponto fixo para seu olhar no horizonte. “Pai nosso, será que eu estou parecendo uma mulher desamparada? Não, não é possível, eu tenho que ter o direito de ir à feira e depois para onde quiser”; “Ave Maria, mas se Fred tivesse vindo comigo aqui à feira, nada disso teria acontecido. Não, não faz o menor sentido”; “Ele só falta me perguntar quanto é. Todos os santos rogai por mim”.
Depois de suar frio diante do assédio do homem do carro branco e com a escolha feliz de seguir o caminho, segurando suas compras, ela alcança a rua movimentada da casa da amiga. Aquele homem não insiste em uma quarta volta. Ela segue decidida, assustada e inconformada.
Sentimentos compartilhados pela maioria das mulheres nesses dias.