Artigo do domingo — Ronaldo x Zidane no Lula x Moro

 

Capa da Folha de 01/07/06, escolhida pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) para a coletânea “As Melhores Primeiras Páginas dos Jornais Brasileiros” (Reprodução)

 

 

Por Aluysio Abreu Barbosa

 

Há quem acompanhe minimamente futebol nos últimos anos que não saiba quem foram Ronaldo Fenômeno e Zinédine Zidane? Maior artilheiro do Brasil em Copas do Mundo e fundamental à conquista do Penta da Seleção em 2002, no Mundial disputado entre Japão e Coréia do Sul, Ronaldo impressionava pela explosão física, habilidade, rapidez de raciocínio, visão de gol e capacidade de concluir muito bem com as duas pernas.

Da mesma maneira, sem medo de errar, nunca vi jogador mais cerebral, elegante e com a visão de jogo do francês de origem argelina, hoje técnico do Real Madri. À exceção do brasileiro Zico e dos argentinos Diego Maradona e Lionel Messi, jamais coloquei os olhos sobre jogador tão habilidoso quanto Zidane.

Ronaldo era um centroavante, jogava em função do gol. Zidane era um meia, que funcionava para armas jogadas. Verdade que o brasileiro, quando armava, o fazia com brilho. Assim como o francês, quando marcava seus gols, o fazia como craque. Mas, para um e outro, eram funções acessórias.

Apesar da clara diferença de estilos e posições, ambos rivalizaram o posto de melhor jogador do mundo por pelo menos uma década, entre meados dos anos 1990 e 2000, mais ou menos como Messi e o português Cristiano Ronaldo passaram a fazer desde que sucederam aos dois ex-craques. Ronaldo (Fenômeno) foi eleito pela Fifa como melhor do mundo três vezes: 1996, 97 e 2002. Zidane também, em 1998, 2000 e 2003.

Guardadas as proporções mais que devidas, após assistir às mais de cinco horas de depoimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao juiz federal Sérgio Moro, em Curitiba, na última quarta (10), para escrever (aqui) o “Ponto Final” de quinta, fiquei com a impressão de estar assistindo a uma disputa de outro tempo, em outros campos. Com seu brilhantismo intuitivo, carisma quase irresistível e lutando como leão pela própria sobrevivência, Lula fez lembrar Ronaldo — que, em final de carreira, defendeu o Corinthians do ex-presidente —, talvez mais próximo à massa por jogar em função do gol.

Por sua vez, como Zidane, Moro foi mais uma vez o enxadrista frio. Impôs-se aos ataques sistemáticos dos advogados e enquadrou Lula ao perguntar se ameaçar prender os agentes públicos que disse quererem prendê-lo era conduta apropriada para quem ocupou a presidência da República. Ademais, extraiu com suas insistentes perguntas contradições do ex-presidente, obrigado a explicar o que sabia das relações do ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto com o ex-diretor da Petrobras Renato Duque.

Indicado à estatal pelo PT, Duque havia feito sua delação premiada na sexta anterior (05), quando afirmou que Lula não só sabia das operações criminosas investigadas na Lava Jato, como liderava o esquema. E, como admitiram parlamentares petistas após o depoimento de quarta, o fato de nele o ex-presidente ter admitido a Moro a intermediação de Vaccari para se encontrar com Duque, já investigado pela Lava Jato, num hangar do aeroporto de Congonhas, para tratar de contas na Suíça, complicou muito a situação jurídica do depoente.

Como armador que segura a bola no meio para lançá-la à melhor opção, Moro interrogou Lula enquanto o jogo se abria pelas duas pontas. Mesmo após ter sua indicação ao Supremo Tribunal Federal questionada por ter pedido voto para Dilma Rousseff (PT) na campanha presidencial de 2010, o ministro Edson Fachin liberou na sexta (12) os vídeos das explosivas delações de marqueteiros João Santana e Mônica Moura. O casal foi responsável pelas exitosas campanhas petistas de Lula em 2006, e de Dilma, em 2010 e 2014.

Não só a situação de Lula, como principalmente a de Dilma, ganharam gravidade considerável com as revelações de que a segunda teria usado informações privilegiadas, obtidas do ministério da Justiça quando era presidente, para avisar aos marqueteiros da iminência das suas prisões. Pior, teria aconselhado seus hoje delatores a transferirem de uma conta na Suíça para Cingapura o dinheiro de Caixa Dois da Odebrecht, pondo em xeque a imagem de “mulher honesta” construída pelo próprio casal. Ainda segundo Mônica, para ela e Santana receberem, “a garantia era Lula”.

Não bastasse o “perigo de gol” anunciado numa ponta, no mesmo dia, o jogo se abria na outra. Figura de proa do PT nacional e ex-ministro dos governos Lula e Dilma, foi anunciado também na sexta que Antonio Palocci trocou de advogado para ser o próximo a contar tudo que sabe. Outro jogador marcado mais pela frieza, que pela passionalidade ideológica, Palocci chegou a fazer o mesmo movimento na semana anterior, mas recuou após a libertação do ex-ministro José Dirceu (PT). Sua nova mudança pela delação anuncia que o ataque que vem por aí é poderoso demais para se poder resistir.

Faladas das diferenças, Lula e Moro têm em comum a dissimulação. O juiz, no tom da sua fala. O ex-presidente, naquilo que fala. E se me foi dado a conhecer algo de gente, o que mais marcou (e causou receio) no que vi nos vídeos do depoimento, foi ler nos olhos dos dois homens de exceção a mesma disposição em ir até o fim.

Moralmente, se Moro perder, levará consigo a decantada República do Paraná e o que nasceu das ruas do país a partir de 2013. Se for Lula, arrastará com ele toda a esquerda brasileira que, no lugar da autocrítica, abraçou o messianismo sebastianista do líder — incluindo muita gente proba, inteligente, bem intencionada, pela qual tenho apreço e respeito. Como num dito antigo: “É calça de veludo ou bunda de fora!”

Na dúvida da vestimenta ao final, não deixa de ser irônico constatar que, no depoimento de Lula, este usava gravata verde e amarela, enquanto Moro preferiu uma de cor vermelha.

Companheiros de time como jogadores do Real Madri, Ronaldo e Zidane tiveram seu maior embate, em campos opostos, nas quartas de final da Copa de 2006, na Alemanha. A final de 1998, na França, quando os donos da casa saíram campeões, com dois gols do seu maior craque, não conta, pela crise convulsiva do astro brasileiro antes do jogo. Mas, oito anos depois, o francês não só triunfou novamente, ao bater a falta que gerou único gol da partida, como humilhou tecnicamente os brasileiros, com direito a chapéu no Fenômeno.

Moro só não devia esquecer que ser encarado pelo Brasil e o mundo como jogador, não juiz, é subverter o jogo. E que qualquer cabeçada, como se sabe, pode custar caro.

 

Publicado hoje (14) na Folha da Manhã

 

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Este post tem 11 comentários

  1. geraldo

    E ainda tem o BNDES que está só começando mas vai acelerar muito quando Paolcci começar a falar .

  2. Nana Gomes

    O princípio da relatividade ideológica. Do diretor José Padilha

    “É evidente que Lula, Dilma e o PT desviaram grande volume de recursos públicos em conluio com lideranças do PMDB. Nenhuma pessoa razoável consegue negar isto face as evidências disponíveis. Aplicada a lei, deveriam ser presos.

    No entanto, exige do princípio da reciprocidade ideológica que líderes do PSDB sejam presos também. E como ainda não está claro que isto acontecerá no âmbito da Lava-Jato, os pensadores de esquerda se veem premidos a postular mirabolantes teorias conspiratórias para negar que Lula e o PT sejam corruptos, acusando a mídia, os procuradores e os juízes da Lava- Jato de tortura e de perseguição.

    Alguns chegam até a relativizar a corrupção, argumentando que, se todos são corruptos, melhor ficar com os que têm consciência social, como se uma coisa não excluísse a outra.”

    http://noblat.oglobo.globo.com/geral/noticia/2017/05/o-principio-da-reciprocidade-ideologica.html

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Cara Nana,

      Já havia lido o artigo. Pelo que conheço do caso, não me julgo embasado para opinar sobre as possibilidades de prisão de Lula e Dilma. Acho que o cineasta, nesse particular, foi açodado. Isto posto em exceção, concordo com a linha de pensamento da íntegra do texto. Essa relativização ideológica realmente existe. E parece exemplificar a teoria freudiana da negação, como o próprio Padilha já havia alertado em artigo anterior sobre o mesmo tema: https://oglobo.globo.com/brasil/artigo-lula-freud-o-futuro-da-esquerda-18816013

      Abç e grato pela chance do debate!

      Aluysio

  3. fernando

    bola no angulo como o gol de zidane na final da champions de 2002

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Caro Fernando,

      Aquele gol definiu a vitória de por 2 a 1 do Real Madri contra o Bayer Leverkusen, na final do Europeu de clubes de 2002. Além da importância, como obra de arte do futebol, é mt difícil de ser igualado em qualquer outra área de expressão humana. Para quem ainda não viu ou quiser rever:

      https://www.youtube.com/watch?v=ULeFIcwewu8

      Abç e grato pela generosa analogia!

      Aluysio

  4. Mário Toledo

    Seu texto tem 15 parágrafos. Ficou cansativo. Não podia ter resumido mais?

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Caro Mário,

      Foram mtos fatos jurídicos e políticos para falar, sem contar as analogias com o futebol. Mas, mestre da crônica esportiva, João Saldanha dizia que escrever em mais de uma lauda é enganar o leitor. Pelo juízo dele, que é de mt valor, vc está certo.

      Abç e grato pela contribuição!

      Aluysio

  5. Luciana Gomes

    Porque acha Sergio Moro e Lula da Silva “homens de exceção”??

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Cara Luciana,

      A história de Lula, pau de arara que veio do sertão nordestino à Grande São Paulo, filho de mãe analfabeta, torneiro mecânico que chegou onde chegou, de tão conhecida, dispensa maiores explicações. A de Moro, juiz de primeira instância que fez o que está fazendo, creio que ainda precisa terminar para ser devidamente contada.

      Mas se o magistrado e professor paranaense confessamente se inspirou na operação italiana “Mãos Limpas”, nos anos 1990, para conceber a Lava Jato, talvez seu gd mérito, até aqui, seja fazer o que já fez no Brasil e continuar vivo. Na Itália, tiveram que assassinar o juiz Giovanne Falcone para que a “Mãos Limpas” chegasse até o fim.

      Bom tb não perder de vista que, na Itália, depois da “Mãos Limpas”, veio o Silvio Berlusconi…

      Abç e grato pela chance do debate!

      Aluysio

  6. ana silvia marques

    Qual a prova que Sergio Moro mostrou até agora contra Lula?

  7. Sandra Maria Teixeira dos Santos

    Detalhes são detalhes:A caneta esferográfica e a marmita do Juiz Moro em contra partida do luxo do opositor:Caneta de grife do advogado ao lado do Ex presidente e a sua chegada triunfal num super jato,me chamaram a atenção.

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