Manuela Cordeiro — Entre rios e entre sensos de Justiça

 

 

Coube a mim a difícil tarefa de escrever sobre Justiça depois dos espinhosos acontecimentos envolvendo a presidência desse país. Se o tema já era difícil de ser encarado, por sua abrangência e responsabilidade ética, tornou-se mais complicado visto as inúmeras análises sobre os rumos políticos, dos mais variados tons.

Realizei trabalho de campo no último fim de semana. Mesmo com as chuvas torrenciais que vêm assolando o estado de Roraima nesse inverno e diante da impossibilidade de cumprir o cronograma inicial, visto que não tinha transporte na sexta-feira, desloquei-me quase 400 quilômetros para uma pequena vila denominada Entre Rios. Essa vila de quase dois mil habitantes, fazendo divisa com os estados do Pará, Amazonas e a República Cooperativa da Guiana. A motivação para a realização do trabalho de campo, com o perdão do academicês, era verificar a interação entre movimentos indígenas e movimentos do campo na região do município de Caroebe. A área indígena Wai-Wai está localizada junto a esse município. No final de cada mês, é comum que os indígenas se desloquem de sua área e passem na vila para fazer compras. Uma espécie de ponto de apoio que ajuda a circulação de informações, bens que não produzem e também passagem para a capital Boa Vista.

Tendo chegado alguns dias antes desse intenso movimento dos indígenas em relação ao município de Caroebe, sempre vem à tona nas conversas (informais e de pesquisa) a demarcação das terras indígenas no estado. Na área de Boa Vista e outros municípios localizados ainda mais ao norte, é comum a referência a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol como um evento marcante, principalmente porque o senso comum de Justiça é motivado a elaborar frases como ‘muita terra para pouco índio’, ‘perdi uma herança de família para esses índios que não trabalharam para ter a terra’. Qual não foi a minha surpresa quando a referência aos Wai-Wai no sul do estado era sempre positiva, mesmo entre os produtores rurais da região. Ouvi inúmeras vezes que nunca tiveram nenhum embate entre os indígenas e os assentados de Caroebe e mais, um produtor rural me afirmou que eles eram “muito trabalhadores”. Ainda que o volume de trabalho seja diferente e os produtos também (ligados principalmente ao extrativismo da castanha e subprodutos da macaxeira), eles não “eram preguiçosos como todo mundo diz”.

Esse senso de Justiça, gostaria de aplicar o termo, e mais Justiça em relação ao direito de uso da terra e também à alteridade no entendimento que trabalhos diferentes produzem frutos (e efeitos) distintos, em um cenário político extremamente acirrado como o de Roraima, fez até recobrar um pouco do otimismo em relação aos rumos desse país. Sem cair na armadilha de fazer uma análise política, porque acredito que minha contribuição pode ser mais válida se distinta, a cena político-partidária do Brasil também estava presente nos relatos. Depois que comentavam sobre os políticos do estado, perguntavam-me jocosamente se estava gravando, para depois dizerem que desmentiriam toda a gravação. E ainda sobre os indígenas, destaco a fala de um dos produtores rurais, “eles estão ótimos lá na reserva, porque vivem a vida deles, não dependem de ‘política’”.

Em uma das noites no campo, com a tevê ligada, terminando de revisar as anotações do dia, ouvi a chamada inconfundível do plantão de uma rede brasileira que, em um instante, remete aos eventos políticos importantes desses país em uma fração de segundos. Como um (ou vários) eventos traumáticos podem marcar um caminho sináptico de memória e um barulho ativa todas essas lembranças. Soube, “em primeira mão” que a Ordem de Advogados do Brasil (OAB), nossos representantes da Justiça, entrariam com um pedido de impeachment na Câmara de Deputados contra o presidente Temer.

Retomo algumas palavras da antropóloga e professora titular da USP Manuela Carneiro da Cunha, publicadas no Jornal Folha de São Paulo, do último dia dezoito de maio. Ela faz referência ao futuro da Constituição de 1988 e o retrocesso em relação a todas medidas democráticas e progressistas – como a política nacional do meio ambiente, a proteção de pequenos agricultores, liberdade de expressão dos profissionais, incluindo os antropologos. Aplicando sua fala para Justiça: “Um debate baseado em dados e valores não está tendo o peso que deveria”. Nem dados quantitativos e nem valores éticos.  Fico com o imperativo final da professora: “Basta!”

 

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