Carlos Alexandre de Azevedo Campos — Vargas, Roosevelt e a independência judicial

 

Roosevel e Vargas na foto histórica em Natal, em 29 de janeiro de 1943, na celebração da Conferência do Potengi, pela qual foi montada uma base aérea dos EUA na capital do Rio Grande do Norte para se atacar a África do Norte na II Guerra Mundial, em troca da instalação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em Volta Redonda, fundamental ao processo de industrialização do Brasil (Foto: Reprodução)

 

 

Publicada ontem no blog, leia a primeira parte do texto aqui

 

– III –

Na mesma época, mais ao norte das Américas, o Presidente Franklin Delano Roosevelt travava uma briga sensacional com a Suprema Corte dos Estados Unidos, que marcaria a história política e constitucional daquele país. Durante a “Grande Depressão”, grave crise econômica iniciada em 1929, Roosevelt lançou um amplo programa de intervenção econômica e social, conhecido como New Deal, com o propósito de recuperar a economia norte-americana e proteger as classes sociais mais pobres e prejudicadas pela crise. Apesar da ampla mobilização política e do largo apoio popular em torno do programa, a Suprema Corte, em maio de 1935, negou validade a três dessas importantes medidas.[1] Para a maioria conservadora,[2] o Congresso havia delegado, inconstitucionalmente, poderes ao Presidente para intervir na economia. Segundo esses juízes, nem mesmo circunstâncias extraordinárias, como as presentes na ocasião, justificariam tamanha interferência nos negócios particulares.

No ano seguinte, a Suprema Corte anulou outras leis do New Deal,[3] colocando-se, definitivamente, em situação de impopularidade e em espessa zona de conflito institucional, contrapondo-se ao Executivo e ao Legislativo sob a liderança de Roosevelt. A maioria da Corte fundamentava essas decisões em princípios que haviam sido consolidados no conhecido caso Lochner, julgado em 1905. Em Lochner, a Suprema Corte declarou inconstitucional lei estadual por meio da qual se assegurou jornada máxima de trabalho em favor de padeiros. A Corte entendeu que o legislador não poderia interferir nas relações contratuais de trabalho por violação à cláusula do devido processo legal.[4] Este era o perfil de Corte que perdurava há décadas (Lochner Era) até o embate em torno do New Deal: ativista na defesa do direito natural de propriedade e da liberdade de contrato e hostil à intervenção estatal na economia.

Importante destacar, no entanto, que a Lochner Era e a sua filosofia adjudicatória de liberalismo econômico e de hostilidade à intervenção estatal na economia não surgiram em um vácuo político. Em 1870, a Suprema Corte decidiu Hepburn v. Griswold,[5] caso que envolveu lei federal (Legal Tender Act, de 1862) autorizativa da emissão de moeda-papel (greenback) com eficácia retroativa de moeda corrente do país, hábil para pagamento de dívidas contraídas mesmo antes da publicação da lei. O governo federal emitiu em torno de um milhão e meio de dólares dessas notas com o propósito de custear os gastos com a Guerra Civil. Contudo, a Suprema Corte julgou inconstitucional a utilização retroativa da nova moeda. As dívidas contratadas antes da lei, segundo a Corte, deveriam ser pagas exatamente como pactuadas: em moedas de prata ou ouro, dotadas de valor intrínseco.

A decisão deixou não apenas o governo federal descontente, mas também o setor econômico mais importante da época: o ferroviário. Havia a necessidade para ambos de superação deHepburn. No mês seguinte à decisão, o presidente Grant teve a oportunidade de nomear dois novos juízes para a Corte e ele indicou dois advogados de companhias ferroviárias. Em um ano e com os votos decisivos dos dois novos juízes, a Suprema Corte superouHepburn.[6] Desde então, a posição em favor das poderosas corporações econômicas tornou-seuma tendência, vindo a consolidar-se na medida em que Presidentes Republicanoscontinuaram a nomear advogados de ferrovias e de outros poderosos setores econômicos para a Corte, todos fervorosos defensores do laissez faire, que se tornou não só a filosofia, mas a prática constitucional dominante.

Os Estados Unidos viviam, então, a “Era Dourada” (Gilded Age), caracterizada pelo crescimento econômico extraordinário. Como disse MacGrecor Burns, foi uma época marcada pela “devoção Republicana pós-guerra civil ao laissez faire” e pela “ubiquidade do poder das ferrovias”.[7] Nesse cenário, foinatural a influência das principais corporações econômicas sobre o governo federal na formação da Suprema Corte. Essa estratégia resultou na formação de uma Corte que, aos poucos, se mostrou hostil a toda e a qualquer intervenção estatal sobre a liberdade das empresas. Foi durante esse período que a Suprema Corte assentou a cláusula do devido processo legal como “ferramenta importante para a proteção da propriedade privada e de direitos adquiridos” contra as intervenções do Estado na economia, e o seupróprio papel de censor da legislação econômica e regulatória norte-americana.[8] Foi a consolidação da base ideológica e doutrinária de Lochner, a mesma utilizada contra o New Deal.

Portanto, o ativismo judicial conservador da Era Lochner, que culminou com o ataque da Suprema Corte ao New Deal, encontrou origemna estratégia do governo em estabelecer a composição da Suprema Corte,durante as últimas décadas do século XIX,majoritariamente favorável aos interesses dasforças econômicas então dominantes. Política democrática e poder econômico interagiram para institucionalizar, na Suprema Corte, a interpretação constitucional que consideravam a mais adequada: proteção da propriedade e da liberdade econômica das grandes empresas.A Suprema Corte agia com pouca ou nenhuma deferência às importantes decisões dos outros poderes para favorecer a manutenção do status quo. Para mudar esse persistente quadro de ativismo judicial que ameaçava a implementação do New Deal, seria necessária a mesma estratégia que deu origem a essa filosofia adjudicatória: a ação política sobre a formação da Suprema Corte. Essa foi a estratégia de Roosevelt.

Fortalecido pela reeleição para seu segundo mandato (eleições de 1936), o presidente investiu contra a estrutura conservadora da Suprema Corte, formulando o que ficou conhecido como Court-Packing Plan: ele propôs ao Congresso, em 5 de fevereiro de 1937, lei aumentando a composição da Corte para quinze juízes e estabelecendo a nomeação de um juiz adicional, até o máximo de seis, para cada outro que superasse a idade de 70 anos. Como era,na época, a mais velha Corte da história (a Old Court), Roosevelt poderia então nomear o limite de seis juízes de uma só vez e, assim,abarrotar a Suprema Cortecom homens que apoiassem o New Deal e colocar ponto final no ativismo judicial conservador até então vigente.O plano não foi realizado exatamente como formulado, pois a proposta de “empacotar” a Corte, mesmo sendoa favor do New Deal, não teve apoio da população, do Congresso nem do seu próprio partido. Não obstante, Roosevelt, assim mesmo, alcançou a vitória…

Pouco mais de um mês depois de formulado oCourt-Packing Plan, em uma série de decisões iniciada com West Coast Hotel Co. v. Parrish,[9] a Suprema Corte “capitulou em meio à ameaça de uma autêntica crise constitucional”[10] e superou as decisões anteriores contra o New Deal. Em função da mudança de orientação do juiz moderado Owen Roberts, que ficou conhecida como “the switch in time that saved nine”,formou-se nova maioria, desta feita a favor do New Deal,sendo abandonada a doutrina de laissez faire,negado o caráter absoluto da liberdade de contrato e reconhecidaa possibilidade de regulação razoável pelo Estado. A Corte deixou de lado o ativismo conservador de Lochner e passou a ser deferente às medidas de reforma política e social do New Deal, sendo asseguradas, em definitivo, as transformações constitucionais pretendidas pela coalizão política dominante liderada por Roosevelt.[11]

Posteriormente, dentro da normalidade institucional de nomeação de Justices, Roosevelt assegurou que a Suprema Corte, como defendeu Robert Dahl, se tornasse “parte essencial da aliança política de governo”:[12] nos anos seguintes à aludida mudança de orientação, houve várias aposentadorias e mortes dos membros da Old Court e Roosevelt nomeou, entre 1937 e 1943, nada menos que oito novos juízes, todos defensores do New Deal e ligados ao Partido Democrata ou à sua administração. Ele ainda indicou um novo Chief Justice em 1941, Harlan Fisk Stone, um republicano liberal que já compunha a Corte desde 1925 e que sempre proferiu votos favoráveis ao New Deal. Com essas nomeações, Roosevelt tinha formado uma Suprema Corte orientada pelos princípios do New Deal (a New Deal Court) e o ativismo judicial conservador do tipo Lochner havia sido completamente extirpado.

Dizer que os nomeados por Roosevelt eramdefensores dos princípios do New Dealnão significa, contudo,que eram apenas deferentes às ações regulatórias do governo no campo econômico e social. Significa mais: que eram comprometidos com a promoção de direitos e liberdades básicas do homem. Em função desse compromisso, a Suprema Corte passou a dirigirsuas preocupações à cláusula da equal protection of the laws, assumindo novo papel: em vez de defesa dos direitos de propriedade e liberdade de contrato, o “novo negócio” era a proteção dos direitos civis e da igualdade. Em suma, a estratégia de Roosevelt formou a base daquela que viria a ser a lendária Corte Warrendos anos 50 e 60, paradigma daliving constitution e campeã da proteção das liberdades civis e da igualdade racial.[13] As ações de Roosevelt, portanto, moldaram, para além de seu próprio tempo, o lugar da Suprema Corte no constitucionalismo norte-americano.

-IV-

A abordagem descritiva, até aqui desenvolvida, tem importantes implicações normativas. Os conflitos relatados possuem aspectos distintos relevantes. O regime ditatorial de Vargas e o governo democrático de Roosevelt resultaram em constrições e reações muito diversas. As ações arbitrárias de Vargas subjugaram o Supremo; Roosevelt pleiteou ao Congresso transformar a composição da Suprema Corte de modo a torná-la mais responsiva às necessidades políticas e sociais contemporâneas, mas sem retirar a independência institucional da Corte. Por outro lado, ambas as disputas oferecem um ponto comum do qual relevante conclusão pode ser extraída: cortes constitucionais ou supremas, assim como seus comportamentos decisórios não podem ser explicados ou avaliados em isolamento, com distanciamentodos contextos políticos, históricos, ideológicos e institucionais condicionantes. O pensamento juriscêntrico apenas favorece a supremacia judicial.

As constrições irresistíveis de Vargas sobre o Supremo deixam clara a incapacidade não só das cortes, mas do próprio Direito em oferecer resistência a regimes autoritários. Nossa históriade instabilidades políticas e de conflitos institucionais revela ter o Supremo até esboçado reações iniciais aos governos hostis, mas ou as decisões não eram obedecidas, ou o Tribunal era vilipendiado, ameaçado, atacado em sua estrutura e organização e, com isso, acabava recuando. Foi assim não só com Vargas, também com Floriano Peixoto na República Velha e com a Ditadura Militar. Nesses ambientes problematicamente autoritários, a Corte acabou,no final, submetendo-se a Chefes de Executivo que concentravam todo o poder decisório e absorviam todos os ônus políticos das decisões.[14] Daí a importância singular, para a independência e liberdade decisória dos Tribunais, de manter-se sempre viva a possibilidade de alternância de poder em democracias.

O exemplo negativo da Suprema Corte norte-americana em seu ataque ao New Deal ensina o quanto cortes podem ser nocivas a si mesmas e à estabilidade institucional em regimes democráticos quando, defendendo largas teorias políticas ou econômicas sem base clara e precisa nos textos constitucionais,[15] decidem contra programas políticos que gozam de amplo respaldo parlamentar e popular. Independência judicial não pode ser exercida sem responsabilidade institucional. Insulamento político não pode implicar indiferença decisória. Do ponto de vista normativo, não se trata apenas de preservar o capital de legitimidade das cortes, mas também de recusar a supremacia judicial. Constituições democráticas são projetos em contínua construção, de modo que o desenvolvimento dos significados constitucionais estruturantes e fundantes, para ser legítimo, deve ser realizado, em concerto, pelos poderes constituídos, incluídas as cortes, os movimentos políticos e sociais.[16]

Ambos os exemplos, por fim, revelam como ações políticas sobre a composição de cortes influenciam, para o bem ou para o mal, o padrão de comportamento judicial. Vargas, sem sujeitar-se a qualquer controle parlamentar, utilizou o poder de indicação de ministros para formar um Supremo que, embora intelectualmente brilhante, limitou-se a atuar como “correia de transmissão”, meramente legitimando muitas das arbitrariedades de seu governo. Roosevelt, por sua vez, utilizou o mecanismo para nomear juízes que, apesar de divididos quanto à prática adjudicatória mais ou menos ativista, compartilhavam a filosofia política de proteção e promoção de direitos fundamentais. Como afirma McMahon, Brown e todo o ativismo liberal da Corte Warren encontraram raízes nas decisões tomadas por Roosevelt ao enfrentar a Suprema Corte pela sobrevivência do New Deal.[17] Roosevelt, nos anos 30 e 40, pavimentou a estrada para os movimentos dos direitos civis dos anos 50 e 60.

A história explica muita coisa ao presente, e fornece uma base fática a apontar prognósticos minimamente seguros. As inferências que podem ser extraídas das relações estruturais do passado servem de premissas para apostas sobre os acontecimentos futuros. O que quero dizer com isso? Que com a baixa popularidade que desde sempre ostentou e com a progressiva perda de apoio político que vem experimentando nas últimas semanas, o Presidente Michel Temer tem muito o que se preocupar com os Tribunais Superiores: TSE e STF. As Cortes se sentem livres de constrições externas para tomarem suas decisões, temendo apenas as consequências quanto à governabilidade. Para assim decidirem, basta recorrerem a um bom, velho e sempre indispensável argumento: um tal Estado de Direito.

 

[1] Schechter Poultry Corp. v. United States, 295 U. S. 495 (1935); Louisville Joint Stock Land Bank v. Radford 295 U.S. 555 (1935); Humphrey’s Executor v. United States 295 U.S. 602 (1935).

[2] Em 1935, a Suprema Corte possuía uma sólida base conservadora, composta por quatro juízes conhecidos como os “Four Horsemen”: Willis Van Devanter, James McReynolds, George Sutherland e Pierce Butler. No extremo oposto, havia uma minoria liberal composta por três dos mais notáveis juízes da história da Suprema Corte: Louis Brandeis, Harlan Fisk Stone e Benjamin Cardozo. O Chief Justice Charles Evans Hugues, outro notável juiz, e Owen Roberts eram considerados moderados, mas, na maior parte das vezes, o primeiro se juntava à ala liberal e o segundo formava a maioria conservadora.

[3] 297 U.S. 1 (1936); 298 U.S. 238 (1936); 298 U.S. 513 (1936); 298 U.S. 587 (1936).

[4] 198 U.S. 45 (1905).

[5] 75 U.S. 603 (1870).

[6]Knox v. Lee, 79 U.S. 457 (1871).

[7] BURNS, James MacGrecor. Packing The Court. The Rise of Judicial Power and the Coming Crisis of the Supreme Court. New York: Penguin Press, 2009, p. 97.

[8] SHAPIRO, Martin; TRESOLINI, Rocco J. American Constitutional Law. 4ª ed. New York: Macmillian Publishing, 1975, p. 309-311.

[9]West Coast Hotel Co. v. Parrish, 300 U.S. 379 (1937); cf. também 300 U.S. 440 (1937), 300 U.S. 515 (1937), 301 U.S. 1 (1937), 301 U.S. 49 (1937), 301 U.S. 58 (1937), 301 U.S. 103 (1937), 301 U.S. 142 (1937), 301 U.S. 548 (1937), 301 U.S. 619 (1937).

[10] SUNSTEIN, Cass. The Second Bill of Rights. FDR’s Unfinished Revolution and Why We Need It More Than Ever. New York: Basic Books, 2004, p. 54.

[11] Sobre a afirmação/revolução do New Deal como um “momento constitucional”, cf. ACKERMAN, Bruce. We the People. Foundations. Cambridge: Harvard University Press, 1991, p. 47 et seq.

[12]DAHL, Robert. Decision-Making in a Democracy: The Supreme Court as a National Policy-Maker. Journal of Public Law Vol. 6 (2), 1957, p. 279-295.

[13] No fim dos anos sessenta, teve início, com Nixon e, depois, consolidada por Reagan, a reação do Partido Republicano ao chamado “ativismo judicial liberal” da Corte Warren, a qual foi conhecida como “Contrarrevolução Republicana”. Esses presidentes, assim como os Bushs, nomearam juízes conservadores para superar as decisões da Corte Warren. Não tiveram sucesso com a Corte Burger, mas alcançaram grandes vitórias com a Corte Rehnquist e, atualmente, com a Corte Roberts. Sobre esses embates históricos na Suprema Corte, cf. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do Ativismo Judicial do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 60-97.

[14] Em contrapartida, o momento atual de ampla liberdade decisória do Supremo responde ao cenário contemporâneo de estabilidade institucional e de fragmentação do poder político e partidário. O avanço do ativismo judicial responde também ao empowerment formal e informal do Tribunal pelos poderes políticos que tanto formulam emendas constitucionais e leis voltadas a ampliar a jurisdição e os instrumentos de decisão da Corte, como “delegam” decisões sobre questões muito controvertidas, envolvidas em desacordos razoáveis e de alto custo político.

[15] Esta foi a acusação feita por Oliver Holmes em seu lendário voto vencido em Lochner. Segundo o grande jurista, a maioria decidiu baseada em “uma teoria econômica que não é acolhida por uma grande parte do país”, afirmando que “uma Constituição não é pretendida a incorporar uma teoria econômica particular, (…) [mas] é feita por pessoas de pontos de vista fundamentalmente divergentes”, o que deslegitima a Corte e legitima as maiorias políticas de cada tempo para decidir qual teoria econômica deve prevalecer em cada momento histórico. (198 U.S. 45, 75 [1905]).

[16] BALKIN, Jack M. Living Originalism. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 231-232.

[17] McMAHON, K. J. Reconsidering Roosevelt on Race: How the Presidents Paved the Road to Brown. Chicago: Chicago University Press, 2004, p. 179.

 

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