George Gomes Coutinho — Diniz, Gramsci e o Interregno

 

Como nos 100 primeiros dias do governo Rafael Diniz (PPS), ao ser pedida mais recentemente uma análise dos seis meses da nova administração municipal, o sociólogo e professor da Univesidade Federal Fluminense (UFF) George Gomes Coutinho excedeu em muito à referência de 10 linhas de word, dada a todos os depoentes, produzindo um texto de fôlego mais longo.

Como o blog publicou antes (aqui) a íntegra a análise do George sobre os 100 dias, confira abaixo tudo que o sociólogo pensa sobre os seis meses do novo governo de Campos:

 

Página 6 da edição de ontem (02) da Folha

 

 

Diniz, Gramsci e o Interregno

 

O governo Rafael Diniz atingiu a marca de seis meses na Prefeitura de Campos. Nos encontramos em situação diversa daquela quando fomos convidados a analisar o governo em seus primeiros 100 dias. Acredito que hoje temos uma rotina mais consolidada que não precisará ser aquela que irá moldar toda a gestão Diniz. Porém, olhando pelo retrovisor, é possível detectar traços marcantes que ao menos dizem algo sobre a conjuntura que já foi vivida.

Antes de prosseguir, registro aqui uma sensação um tanto incômoda de minha parte. Antonio Gramsci (1891-1937), o comunista sardo preso no período fascista e um dos alvos prediletos de parte da direita brasileira contemporânea, apresentou uma síntese de pensamento sobre os períodos de crise em um dos seus “Cadernos do Cárcere”: o velho se recusa a morrer e o novo simplesmente não nasceu. Gramsci chamava estes períodos da História de “tempos de interregno”, momentos particularmente difíceis de crise de hegemonia onde perspectivas ideológicas mórbidas, falseadoras ou simplesmente danosas são apresentadas aos borbotões. Em tempos de interregno as auto-interpretações políticas, sociais e culturais de uma dada sociedade tornam-se perigosamente gelatinosas. Portanto, é natural a sensação de relativa desorientação dos tempos que correm. E é neste espírito do tempo, ou o bom e velho zeitgeist como diriam os alemães, que insiro estes seis meses do governo Diniz. Não podemos afirmar, até agora, que tudo está a transcorrer de vento em popa.

Cabe dizer que Campos dos Goytacazes não está descolada do seu entorno. Aqui há reverberações das práticas e da conjuntura política nacional em âmbito local. Contudo, Campos, enquanto realidade particular, não reproduz meramente as tendências que lhe chegam. A esfera política e o espaço público daqui terão suas versões singulares e em “miniatura” do que transcorre em escala nacional. Irei destacar quatro tendências encontradas nacionalmente e “traduzidas” localmente nestes 6 meses de governo Diniz: a) a polarização; b) facebookização da política; c) judicialização; d) a solução elitista para conflitos redistributivos.

I  – Polarização

Venho argumentando em diversas ocasiões que a polarização política, seguida do discurso irracional que é inerente ao ódio, produz patologias no espaço público. O maniqueísmo vulgar em dualidades como “coxinha X mortadela”, “petistas X tucanos”, e etc. tem redundado na inviabilidade do diálogo. O problema é que a asfixia do diálogo envenena a democracia em uma sociedade que é em si mesma complexa e plural. Na verdade, abdicarmos do diálogo implica darmos asas para projetos totalitários ainda mais danosos que o vilipendiado modelo democrático de convivência coletiva. Afinal, quando falamos em democracia, estamos pressupondo algo mais do que um mero método de seleção de governantes.

Nestes termos, a polarização “Garotinho X Diniz”, o que redunda na formação de grupos onde a diferenciação se dá pela adesão quase irrestrita a um personagem ou outro, não produz igualmente bons resultados.

Noto de forma assistemática que alguns atores dotados de capacidade de formulação política, seja entre o empresariado, profissionais liberais e outros grupos políticos e sociais, sentem-se alijados por considerarem que há fraca interlocução do governo para além de seus muros. Seria um governo ensimesmado. Voltando aos efeitos deletérios da polarização, dado que esta interlocução necessita da crítica para ser bem sucedida dado que os atores notam erros de condução do executivo local, o risco da serem simplesmente carimbados de “pró-Garotinho” por inércia é inevitável. Por outro lado, apontar acertos por caminhos tortos na gestão Rosinha não indica igualmente a adesão acéfala e subserviente à família que governou a cidade até 2016.

Serei relativamente ingênuo. A única solução que vejo neste momento é a maturidade política como via para superação da polarização e da miséria discursiva e propositiva decorrentes. Abdicar da polarização nos dias atuais indica a necessidade de abrir mão de determinados dividendos eleitorais em futuras eleições. Porém, os malefícios da polarização têm se mostrado infinitamente maiores para a sociedade do que os benefícios obtidos por qualquer grupo político específico.

 

II – Facebookização da política

Eu estou utilizando o nome do “facebook” para utilizar o neologismo “facebookização” por uma razão muito simples: trata-se da rede social de maior alcance no Brasil neste momento. Porém, eu poderia utilizar outras redes sociais para o neologismo. Basta lembrarmos do uso obsessivo de Donald Trump com o “twitter” por exemplo.

Antes, cabe um alerta histórico bastante simples: a comunicação entre lideranças políticas e sociedade sempre ocorreu de forma ou de outra. Na modernidade temos os manifestos partidários e no século XX vivenciamos a utilização dos meios de comunicação de massa (rádio, jornal e televisão). Há incontáveis exemplos factuais que não pretendo apresentar aqui para não ser enfadonho.

O que surge de novo, e os estudiosos das redes sociais apontam isso, é a mudança das interações sociais, a agilidade da informação e, por outro lado, certo déficit de reflexividade. Não por acaso o momento da alta utilização das redes sociais convive com a era da “Pós-Verdade” e as “fake news” produzidas em escala industrial. Resumo da seguinte maneira o quadro: muita informação e pouco conhecimento.

O sistema político certamente iria reagir a este novo tipo de interação que se intensificou nos agentes políticos formais após as eleições municipais no Brasil ano passado. João Doria Jr. em São Paulo é um dos exemplos para o bem ou para o mal. Afinal, como avaliou FHC, Doria tem se mostrado muito mais hábil em utilizar seu smartphone do que em propriamente enfrentar os desafios da maior metrópole da América do Sul.

Em nosso caso local, parte do êxito da campanha de Rafael Diniz se explica pela capilaridade alcançada justamente pelas redes sociais. Esta forma de se comunicar com o eleitorado prosseguiu. O problema é quando a ferramenta não é bem utilizada.

Se as redes sociais produzem a sensação de diminuição da distância entre governantes e governados, algo salientado pelos próprios usuários das redes sociais, a utilização da linguagem das redes pode esvaziar o conteúdo político propositivo e se tornar um reflexo explosivo das patologias do espaço público contemporâneo. Não por acaso o vídeo inflamado de Diniz em resposta à transcrição de um suposto áudio que teria falas comprometedoras do staff de seu governo não escapou das armadilhas do Fla X Flu político. Tampouco indicou qualquer encaminhamento construtivo ao reforçar o maniqueísmo. O prefeito, imagino, sentiu-se aviltado.  Não o condeno. Somos todos humanos afinal.  Contudo, episódios deste quilate deveriam soar como alerta amarelo. A comunicação política não deve ser refém das redes sociais, de seus símbolos, caprichos e etc.. A fatura pode ser exorbitante e o retorno exíguo.

III – Judicialização

A relação entre os sistemas jurídico e político no Brasil adquiriu feições que só compreenderemos em sua totalidade após essa conjuntura de interregno se assentar. Só não sabemos quando acontecerá.

Neste momento podemos assinalar que há problemas severos em termos um Judiciário hipertrofiado e radicalmente politizado, onde as normativas do Estado Democrático de Direito são atropeladas em diversas ocasiões. Não são raras as ocasiões onde a sensação de arbítrio puro e simples se apresenta.

Por outro lado, o Judiciário, também em não poucos momentos, tem feito correções que não podem ser desconsideradas nas relações entre poder econômico, democracia representativa e eleições. Se estas correções irão produzir efeitos em termos de práticas sociais paira o desconforto do mistério.  A única lição histórica que arrisco neste momento é a de que boa lei não produz por encanto boa sociedade.

Voltemos para a realidade campista. O que a judicialização tem produzido entre nós nestes seis meses do governo Diniz de efeito mais evidente é a inviabilidade de consolidação das feições políticas, programáticas e ideológicas do legislativo. A chamada “dança de cadeiras” inviabilizou a consolidação da díade “situação/oposição” e o perfil do próprio legislativo nos últimos seis meses. Os mais pragmáticos apontam para prejuízos no orçamento do legislativo em virtude destas recomposições. Em termos políticos, dada a tradicional maior proximidade da relação da população com seus vereadores, o eleitor simplesmente não obtém clareza necessária para realizar as cobranças necessárias.

Ressalto apenas que não estou advogando em defesa dos que se utilizaram das “más práticas”. O que estou ressaltando são os efeitos negativos que um legislativo enevoado tem produzido no curto prazo. No médio prazo a instabilidade pode trazer repercussões óbvias na produção legislativa em si mesma e aqui não discutirei sobre a qualidade da mesma em versões anteriores do legislativo menos afeitas aos efeitos da judicialização.

IV  – A solução elitista para conflitos redistributivos

O Brasil após a pujança da “Era das Commodities” vivencia um momento melancólico de alto endividamento de pessoas físicas e jurídicas. Os recursos existentes, pacificamente drenados pelo setor financeiro, tornam-se escassos em um cenário francamente recessivo onde tanto o setor produtivo quanto o de serviços encontram-se combalidos. Nesta seara surge fulminante o problema do financiamento das políticas públicas. Não ocorrendo a entrada do capital das commodities e sem incomodar os lucros e dividendos do setor financeiro, a opção foi se atirar de maneira selvagem sobre os setores subalternos da população e em parte também sobre a classe média que vive do seu trabalho. Não há mágica. Trata-se de uma opção política.

O mantra repetido exaustivamente de que o problema do Estado é meramente “gerencial” gerou o discurso ideológico dos administradores e técnicos que salvariam a pátria. No mesmo tom, a simplória analogia das contas do Estado com a da dona de casa dotada de um orçamento apertado segue nesta narrativa em uma simbiose. Na verdade o discurso oculta a preferência por manter uma das sociedades mais desiguais do continente americano em termos de redistribuição de riquezas. Esta foi a opção do Governo Federal e de parte dos Estados ao enveredarem pelas práticas de “austericídio”: cortes de gastos que derivam na destruição lenta de serviços imprescindíveis para a população. Os frequentadores dos serviços públicos de saúde em vários estados ou, aqui perto de nós, os colegas da Uenf e de outras instituições podem fornecer relatos dramáticos do que esta opção política tem produzido.

Fica o paradoxo de Giuseppe di Lampedusa (1896-1957): tudo deve mudar para que tudo permaneça como está.

No discurso de que não há um plano B se esconde uma sociedade injusta em termos tributários, que não regulariza a propriedade da habitação dos moradores das periferias, que oferta volumes de recursos e isenções fiscais para o empresariado sem que existam contra-partidas efetivas para a sociedade, onde o setor financeiro se banqueteia com as taxas de juros das mais altas do planeta, etc..

Entre nós campistas ocorreu o impacto da queda, que creio ser conjuntural, do preço do barril petróleo no sistema internacional. É nacionalmente conhecida a dependência do orçamento municipal do recurso dos royalties. Porém, mesmo sendo fato notoriamente conhecido, todas as outras gestões municipais que se utilizaram destes vultuosos recursos pouco ou nada fizeram para superar a dependência dos mesmos. Em termos produtivos, Campos dos Goytacazes é uma cidade anêmica.

Voltando para o governo Diniz,  as decisões que envolveram o Restaurante Popular e o aumento do preço das passagens urbanas parecem caminhar na mesma direção das opções adotadas por parte dos Estados e do Governo Federal na atual conjuntura. Há nuances de austericídio, tecnificação do discurso político e ideologia gerencial. Da mesma maneira, por outro lado, a revisão da tarifação do IPTU até o presente momento não foi colocada em prática, algo que poderia financiar políticas públicas e sociais que poderiam tornar a sociedade menos desigual em termos de acesso a serviços.

Finalizando nesta conjuntura

Não obstante todos os desafios acima listados, que indicam a máxima gramsciana de que o “velho ainda não morreu”, mesmo tenha adquirido embalagens novas e atualizações, há também “o novo que ainda não nasceu”.

Cabe citar a iniciativa da consulta popular em formulário eletrônico que circulou entre os munícipes onde estes deveriam apontar as necessidades de seus bairros. Eis uma tentativa que considero absolutamente louvável da diminuição da distância entre governantes e governados sem dúvida. O problema é o alcance: cabe a própria prefeitura disponibilizar aos cidadãos quantos afinal foram atingidos pelo formulário, quantos responderam e, no médio prazo, apontar as medidas que foram efetivadas. Não é panacéia evidentemente. Mas, é um avanço.

Da mesma maneira é notória a tentativa de oxigenar os setores culturais do município abrindo frentes de interlocução com a classe artística local e apoiando, seja com o Teatro de Bolso ou em eventos que se utilizam de parcerias entre setor público e privado, eventos com entrada franca nos espaços públicos de Campos.

Ainda, é inegável também a tentativa de diálogo com os setores propriamente acadêmicos e intelectuais profissionais promovida pelo Governo Diniz. Podem surgir boas formulações, desde que sistemáticas e robustas, amparadas por uma perspectiva de gestão da coisa pública que fuja da miséria do mero gerenciamento.

Em suma: as boas novidades se apresentam ainda tímidas. O que não quer dizer que não existam, embora ainda sejam inegavelmente diminutas diante dos desafios de Campos. Aguardemos de forma propositiva os próximos seis meses.

 

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Este post tem um comentário

  1. cesar peixoto

    Esqueceram de convidar um consultor politico para para compor esse grupo magnifico

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