Este é um daqueles textos que classifico como “colhidos na rua”. George Simmel, um sociólogo alemão de ascendência judia, escreveu um texto delicioso sobre o espírito das grandes cidades[1]. Este ar da cidade que “nos faz livres” reúne, em relações de interação muito próximas, pessoas que de outra forma, em outro momento histórico, dificilmente se encontrariam. Estes trilhos de ferro, casebres no meio do barro, túneis subterrâneos em que habitam pessoas e ratos, mercados de pulgas, frangos, panelas e hortaliças. Ou aqueles encontros memoráveis entre os que foram agraciados pela sorte da fortuna, descritos nos contos de Machado de Assis, e aqueles visitados pela desgraça, dependentes de um bom casamento ou da morte de um parente fazendeiro. Ambos flertam na mesma festa de máscaras, interessados ou apaixonados, calculistas ou idealistas, realizam a Grande Comédia da vida moderna. Ao menos pelas poucas horas de duração do baile.
A cidade é, em minha opinião, o grande invento da modernidade. A mais fascinante experiência e o mais aterrador desafio. Quem tem lido os escritos de David Harvey sobre a Índia e outras favelas ao redor do globo pode ter idéia sobre o tamanho do desafio aos pesquisadores em pensar a possibilidade das cidades globais no século XXI. Principalmente, como prover saneamento, condições dignas de moradia? O direito à cidade, tema bastante complexo na obra de Henry Lefebvre nos conduz neste caminho: pensar um tipo de acesso à vida urbana em cidades como Lagos, Mumbai ou São Paulo.
Quem já permaneceu, mesmo que rapidamente em uma cidade com mais de 5 milhões de habitantes, certamente provou da “intensificação de vida nervosa” descrita no ensaio de Simmel. Quantos cálculos diante da velocidade dos sinais, das interações cruzadas por variáveis monetárias, pelas decisões sobre segurança cotidiana e lazer, vizinhança e trabalho? Diante do excesso de estímulos, segundo o autor, o habitante das grandes cidades teria como uma das principais formas de reação a esses estímulos nervosos o desenvolvimento de um caráter “blasé”. Poderíamos pensar em uma escala que vai do desvio de olhares em metrôs ou supermercados, até a reação violenta em situações de interação no trânsito.
Nisto tudo, a experiência urbana se torna indissociável da experiência monetária. Ou mais precisamente, a regulação de todos os aspectos da vida pelo dinheiro. A vida das classes operárias na Inglaterra descrita por Engels, as operações da bolsa de Nova York em 1929, ou o confisco das poupanças no Brasil no governo de Fernando Collor; em todos estes momentos o homem comum foi nivelado pelo quantum do valor que dispunha neste tablado de operações financeiras.
Particularmente, em 2017, tenho andado pelas ruas do Rio de Janeiro observando este gigantesco movimento presente no centro das grandes cidades: o comércio de rua. Entre Alfândega e Cinelândia com atenção especial às ruas próximas da avenida Rio Branco, tenho flagrado um incremento não apenas da quantidade mas da variedade das mercadorias. Ao mesmo tempo em que as lojas ofertam 60% de desconto em vestuário e eletrodomésticos, os camelôs vendem cavalinhos de brinquedo, moedores de pimenta, “hand spinners” luminosos, queijos curados, pilhas, luminárias, filmes, chicletes, goiabas, programas de computador, roupas, sapatos, canetas, pipocas, amendoins torrados, livros usados, tecidos africanos.
O que mudou em 10 anos de observação? Percebo não só um número maior de mercadorias (inclusive nos trens se vende lasanha congelada, carregadores de celular, coadores de café, chocolates…) como um perfil diferente daqueles que vendem estes itens. Flagro pessoas que recentemente saíram do mercado formal, vestidas com distinção e apuro, idosos em busca de complementação de renda, jovens vendendo azulejos decorados. Uma geração diferente daqueles camelôs que conhecemos, descolados em idas ao Paraguay, conhecedores das regras de divisão das quadras e bancas.
E essa diferença lembrou-me muito aquele homem vendendo maçãs em uma fila interminável de pessoas na Grande Depressão de 29. Rio, 2017, trabalhadores que da noite para o dia se vêem aniquilados pelo desemprego. Em uma cidade que teve seus custos de vida elevados com os megaeventos. A rua como destino de moradia, trabalho, lazer e protesto. A cidade como espaço de contradição e invenção. Esbarramos a cada esquina nestas pessoas que “viraram maçãs”, ou seja, converteram-se no objeto vendido em uma condição de humanidade mutilada. Esbarramos nessa cidade o tempo todo. Mas não há nisso nenhuma fatalidade. A aventura da cidade é coletiva e construída.
A desconfiança como primeira forma da interação e a desigualdade como régua, classificam a cada um de acordo com o pedaço do espaço ocupado. E um dos resultados desta aversão ao estranho, desta desconfiança contínua, é a solidão da grande cidade. Mas, como diz Simmel, os homens resistem. Não só a sua transformação em maçãs, mas a natureza impiedosa do sistema financeiro. Resistem ao nivelamento de todas as qualidades, humores, habilidades e destinos pelo mercado. Inventam novas formas de viver a cidade, recriam espaços e formas de trocas.
Por essa razão devemos saudar com entusiasmo as intervenções urbanas nos muros, o teatro de rua, as serestas, as formas solidárias de troca, a agricultura familiar, os brechós, as formas de habitação alternativas, o artesanato local. E principalmente os espaços de convivência ao ar livre, como a praça São Benedito, a São Salvador ou a simpática “praça do Liceu”. A cidade que queremos é essa. Menos desigual, menos cinza.
(enquanto finalizava este texto, aproveitando o chimarrão em minha cidade, eis que recebo uma ligação impiedosa de um grande banco espanhol, tentando vender um novo produto… ah, os bancos!)
[1] http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132005000200010