Não gostaria de voltar a defender o princípio (óbvio, por sinal) de que todas as representações estéticas são — salvo melhor juízo científico — a pura expressão da arte, independentemente se si referem às expressões fruídas de imagens erotizantes (ou não) e se o seu julgamento é suscetível ao olhar paradigmático de quem o vê pela lente opaca das falsas culturas ou mesmo pelas ideologias com fulcros moralistas.
Mas, observando o conteúdo do pequeno livro “Ode a um poeta morto”, de Raul de Leoni (1895-1926), escrito em 1919, dedicado “à memória de Olavo Bilac”, pudemos especular algumas razões que levaram o poeta, considerado pelos seus biógrafos como neoparnasiano — ou simbolista (?) — a se mostrar, assim sem pejo, à saciedade intelectual da época, considerando as mensagens sensíveis de amor nas entrelinhas.
Bilac (1865-1918), um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e eleito, por seus pares, em 1907, “Príncipe da Poetas Brasileiros”, parnasiano juramentado, quando morreu, aos 53 anos, causando real consternação no seio intelectual do Rio de Janeiro, Raul tinha apenas 21 anos de idade e estava em dúvida se seria diplomata, estimulado pelo nosso Nilo Peçanha, ou assumiria ser poeta por opção.
Nas biografias conhecidas dos dois vultos da intelligentsia nacional, não consta que tenham se encontrado em alguma tertúlia literária pelo restrito mundo da capital federal. Apenas o historiador Alfredo Bosi (1936) assinala que Leoni “embora tivesse sido um poeta à antiga, era ousadamente moderno”. O que se lhe afigura a idéia do simbólico, para que possa ser compreendido no sentido lato da semiologia.
O livrinho, muito bem escrito, por sinal, foi reeditado, em 2002, pela Editora da Universidade do Sagrado Coração, de Bauru-São Paulo, com apresentação do imortal José Mindlin (1914-2010). Ele aclara que “a poesia de Raul não existiria sem os versos de Bilac”, identificando uma relação meramente cultural, até porque o simbolista (?), além do “Ode…)”, só escreveu “Luz Mediterrânea”, lançado em 1922.
Na ilustração de João Luiz Roth (1961) o expressionista lança 11 quadros, nos quais, acompanhando o poema, revelam uma estranha relação transgenérica, andrógina, com imagens travestidas pelo (fe-menino). Eis os versos: “Freme em tua arte o sangue de Dionísio / Diluído nas virtudes apolíneas / E do seu seio voluptuoso chovem / Alvas formas pagãs, ardentes frisos… / Baixos relevos, camafeus, sanguíneas / Numa palpitação de carne jovem (…)”.
Existe uma explicação plausível? Leoni era leitor do poeta Paul Valéry (1871-1945), um ser tão envolvido pelo existencial que, contrariado pelo amor à Madame Rovira, resolveu abandonar, por anos, a lira poética. Terá sido uma influência do vate francês? Mas, vejamos outros versos: “(…). Dirá aos homens que o melhor destino / Que o sentido da vida e o seu arcano/ É a imensa inspiração de ser divino / No supremo prazer de ser humano (…)”. Há no poema uma dimensão sagrada do prazer.
André Bretton (1896-1966) quando define o surrealismo diz, não ipsis litteris: “Psiquismo puro que explica o funcionamento real do pensamento na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral”. Será que tem a ver? Uma dedicatória simples de uma ternura extrema camuflada pela loucura explicita no além-real, com a certeza do/e ser não-revelado. Ou nada existe no cerne da dedicatória, a não ser a vaga imagem (i) refletida da razão.
Morto aos 31 anos, vítima da “peste branca”, Leoni realmente pousou seu olhar carinhoso em Bilac, jornalista, poeta, frequentador das rodas boêmias do Rio Antigo… Com sutileza, dedicou-lhe seus primeiros e sentidos versos, por algum motivo platônico. Simples assim. Neste caso esta reflexão terá sido apenas mais um exercício ingênuo e atemporal deste escriba ao atuar no cenário da experimentação ficcional…