Guiomar Valdez — “É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil”

 

 

 

No domingo que iniciou esta semana, 13 de maio, completaram 130 anos da Abolição do Trabalho Escravo no Brasil. A cada ano que passa, venho observando que se tornaram ‘anêmicos’ os debates, as manifestações e os eventos sobre o conteúdo dessa data dentro do processo histórico brasileiro. Parece que se esgotaram a importância e também as críticas de suas limitações. Parece que já está tudo compreendido para todos. Como lembra a historiadora Lilia Schwarcz (USP), já um ano meio depois desta lei, a República chegou e no seu hino, de forte poder simbólico, há uma estrofe muito conhecida: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”. Mas, também possui uma, que afirma: “Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”! Ou seja, já, naquele momento, os republicanos afirmavam não acreditar mais que tivesse havido trabalho escravo. Segundo ela, isto representava um processo de ‘amnésia nacional’.

Pois bem, esta minha observação, sobre a ‘anemia’ ou a ‘secundarização’ desse fato histórico, talvez seja fruto da cultura da ‘modernidade líquida’ em que vivemos. Até porque, nestes tempos, até a História já foi condenada à morte. Para os desavisados (mal-intencionados ou não) só existe o ‘presente contínuo’, versão just-time. É óbvio que nenhum fato histórico deve ser recuperado de forma despolitizada, de maneira messiânica/personalista e desarticulada do espaço, do tempo, da estrutura material e da cultura, ou seja, de forma fragmentada/isolada. Entretanto, tenho a hipótese de que é isso que vem acontecendo sobre os eventos, debates, manifestações, que tratam das mazelas, dos desdobramentos, das permanências, sobre o histórico do trabalho escravo em nosso país.

A ‘amnésia nacional’, passa também por não mais compreendermos a História como processo no espaço-tempo. No que resulta numa atomização temática, presente em muitos movimentos sociais, como, por exemplo, os que tratam do racismo estrutural, perpetuado em nossa sociedade, que, absurdamente, se apresenta em movimentos e lutas, distanciado da realidade das categorias interpretativas, classe e trabalho. E, sendo assim, completamente distanciado da ideia de racismo também como ideologia, tão bem constituída/formulada já no final do século XIX, como uma importantíssima estratégia de expansão e dominação do sistema capital. Sempre atualizada/revisada, seja para atender a mundialização sistêmica, seja para reproduzir/dominar diante da diversidade histórica local/regional/nacional.

As ‘diásporas ou migrações contemporâneas’, com seus racismos e fundamentalismos, estão aí como versão atualizada do contexto das ‘diásporas dos séculos XVI a XIX’ no Ocidente. A partir do século XX até hoje, são agudizadas, tendo a guerra como meio e fim da acumulação sistêmica em busca do domínio das mercadorias estratégicas.

Se nos tornarmos ‘míopes’ na interpretação das lutas contra o nosso racismo, no mínimo, culparemos apenas o passado, nos embaçará a perspectiva da História enquanto processo, dessa barbárie que é o racismo. Neste sentido, é pertinente a compreensão de que, de acordo com o historiador Amilcar Araújo Pereira (UFRJ): “As estratégias racistas para a perpetuação dos privilégios para a população branca no Brasil não são uma herança permanente da escravidão. O que há são diversas formas de atualização desses processos discriminatórios e que vão resultar nas desigualdades raciais com as quais convivemos hoje”. Ou seja, ao longo dos 130 anos da lei que põe fim ao trabalho escravo, demos continuidade e foi se radicalizando o racismo estrutural.

O ‘bom combate’ ao nosso racismo estrutural, potencializando-o para a superação de qualquer forma político-cultural que hierarquize os seres humanos, passa por compreendê-lo como processo histórico, como decorrente de lutas e muitas lutas dos que sofrem o preconceito e a discriminação da ideologia racista, bem como dos que se tornam apoiadores ou se ‘convertem’ a esta causa mesmo não tendo o perfil traçado do racismo em questão. Nessas batalhas marcadas por derrotas, mas, também, por vitórias, é preciso estarmos atentos às construções personalistas e de heroísmos às avessas, já que não estamos tratando de história pessoal, mas, de História coletiva, de um grupo, de uma comunidade, de uma sociedade.

Derrotas e vitórias não devem ser superestimadas, nem subestimadas, como também, os espaços onde elas acontecem, quando analisamos a História enquanto processo, dado ao seu dinamismo e a dialética enquanto seu tipo de movimento. Nesse sentido, não se deve hierarquizar os fatos históricos que concorreram e que concorrem até hoje para as vitórias na luta contra a ideologia do racismo em nosso país. Isso é muito perigoso, pode se voltar contra os movimentos sociais, no sentido da sua absorção aos ditames culturais hegemônicos. Logo, não combatendo o racismo estrutural.

A busca pela Justiça, traduzidas em Leis e num Direito mais includente e democrático, por exemplo, são importantes a serem resgatados, enquanto processo, memória coletiva, dos tantos e tantas que deram vida e sangue para o reconhecimento do problema em questão: o racismo, em seu tempo e espaços. Daí porque, minha preocupação, meu estranhamento, quanto à ‘anemia’, à ofuscação da Lei Áurea, nesse processo. Dada as suas limitações, sei que não há motivos para reduzir tudo a celebração despolitizada e personalizada; mas, e os lutadores e as batalhas, os debates na casa legislativa, as tensões, etc., para chegar até o momento da sua assinatura? Não são importantes?

Recordo agora algumas outras leis/conjuntos de princípios e afins, fruto do processo histórico, com seus atores a continuarem dando vida e sangue nessa construção: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em 1948, 60 anos após a Lei Áurea, afirmava que ‘ninguém será mantido em escravatura ou servidão’; a Lei Nº 1.390/1951 – ‘Afonso Arinos’, (63 anos depois), que, por exemplo, inclui entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor;  a Lei Nº 7.437 de dezembro de 1985, que inclui entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil; a Lei Nº 7.716/1989, a ‘Lei Caó’, que no seu artigo 1º, afirma que “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, tornando a discriminação racial, crime; a Lei Nº 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira; toda legislação que diz respeito às políticas afirmativas/cotas; a Lei Nº 12.288/2010, que criou o Estatuto da Igualdade Racial, dentre outras coisas, definindo o significado de desigualdade racial: “toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas públicas ou privadas, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica”.

Eis o objetivo ao trazer este assunto: defender uma interpretação histórica que leve em consideração a totalidade social; que seja uma interpretação que articule todas as dimensões, jamais hierarquizando as dimensões, os fatos, os símbolos e os ‘personagens’! A fragmentação, muitas vezes presente nos movimentos sociais que combatem o nosso racismo estrutural, podem colaborar, mesmo sem perceber, para perpetuar a Cultura Política conservadora, alimentadora do status-quo e das razões conjunturais e estruturais da ideologia racial, protagonista da reprodução sistêmica. Do ponto de vista da economia-política crítica, tudo pode ser transformado em mercadoria, inclusive, e, principalmente, os símbolos, a capacidade criadora, dos movimentos de resistência e emancipadores!

Reflito com a psicanalista Maria Rita Kehl:

“Cabe perguntar que tipo de cisão do eu permite que o brasileiro ria das feridas sociais do país em que vive, como se estivesse sempre do lado de quem segura o cabo do chicote — como se não percebesse as lambadas e a humilhação que também o atingem. Será o nosso bovarismo social efeito de uma identificação com o opressor não em suas características avançadas (em termos de valores republicanos, lutas igualitárias etc.), mas sim como arremedo das aparências da civilização, conciliadas com a manutenção da versão contemporânea do escravismo em uma sociedade que continua criminosamente desigual?”

É isso! E mais! Como nos alerta Makota Valdina: “Não sou descendente de escravos. Eu descendo de seres humanos que foram escravizados”. As vitórias nestas batalhas existem, são reais, mas inconclusas; são reais, mas, não suficientes; são limitadas, mas, avançam, acumulam forças. Isso é processo! Afinal, as razões para esse ‘fardo do tempo histórico’ no combate ao nosso racismo estrutural, são as mesmas, desde a Lei Imperial Nº 3.353 de 13/05/1888 até os dias de hoje: a profunda, injusta e desumana desigualdade sócio-econômica-racial em nosso país!

 

Observação: Lilia Schwarcz (entrevista – www.bbc.com – BBC Brasil – 10/05/2018); Amilcar Araújo Pereira (entrevista – interceptbrasil.com.br – 11/05/2018); Maria Rita Kehl (livro autoral – “Bovarismo brasileiro” – Boitempo, 2018); Makota Valdina (entrevista – www.palmares.gov.br – 17/04/2013); site JUSBRASIL – jusbrasil.com.br).

 

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Este post tem um comentário

  1. Ronald

    Tenho minhas diferenças ideológicas com a Guiomar desde sempre (e sempre terei), porém é inegável que quando ela age como historiadora e não como militante gasmcisniana, fazendo textos como este, com análises profundas e bem embasadas que fazem refletir e pensar, vemos que historiadora Guiomar dá de 10 a 0 na Guiomar militante comunista.

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