Saulo Pessanha — Morte na redação

 

Jornalista José Cunha Filho

Anos 1980.

A noite é trevosa e má. Chove sapos.

José Cunha Filho, editor-chefe da Folha da Manhã, já está com o jornal fechado, mas aguarda, na redação, que a chuva passe, já que o seu veículo de locomoção é a Matilde, uma motocicleta Honda 125.

Eis que o telefone toca. Do outro lado, uma voz dorida informa que acaba de morrer o professor Áureo, do Liceu, e pede que a Folha registre o óbito.

Cunha então pergunta:

— Que professor? O de latim?

A voz confirma. Uma hora da manhã e Cunha, que tinha sido aluno de Áureo Azevedo, redige a nota de falecimento. Antes, tomado de dúvida, tenta encontrar o seu telefone no catálogo. Inútil. Liga para o hospital onde, segundo o informante, um fulminante infarto liquidara o professor.

— O professor que morreu era o Áureo? O do Liceu, um baixinho simpático?

— Era. Só que o corpo já foi removido e não tem mais ninguém da família para dar informação — responde a pessoa.

Cunha inclui a nota na única página ainda não fotolitada e pronta para a impressão. No dia seguinte, de volta ao jornal, já pela manhã, para fazer a pauta, é avisado que um senhor quer lhe falar.

Entre a distribuição de uma matéria e outra e eis que…

— Bom dia… Aliás, lindo dia, não é verdade? Sou o professor Áureo, lembra? Aere perennius, no dizer do nobre Horácio, mais durável que bronze…

Cunha pole o latinório de sacristia e responde no mesmo nível. Diz que não fora movido por anims laedendi, ao, para a sua alegria, ter barrigado a edição do jornal com a nota da morte do mestre.

Sorridente, Áureo o abraça e diz que continua caminhando. O finado é um homônimo, professor de colégio estadual em São Fidélis. Por ser Áureo acreditaram que se tratava do latinista emérito e jubilado.

De qualquer forma, a nota de falecimento serve para que Áureo teste a sua popularidade.

— Valeu pelas demonstrações de carinho. Estou com a casa repleta de coroas e flores que irei doar ao legítimo dono, ad majorem Dei gloriam pois, afinal, a cada um o seu, cuique suum…

 

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Este post tem um comentário

  1. Nino Bellieny

    Muito bom! Começou bem! Parabéns ao Saulo pelo estilo único de contar um saboroso causo. E ao Opiniões por convidar-lhe a fazer parte de uma seleção de talentos.

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