Guilherme Carvalhal — Simulacro

Nove da noite. Sávio logou na realidade virtual, mais especificamente em um programa de vidas digitais. Ali ele deixava de ser Sávio e se tornava Soraia.

Soraia chamava a atenção por onde passava. Balançava seus cabelos ruivos e os homens daquele universo prestavam atenção nela. Já Sávio, com sua barriga e sua calvície, jamais conquistava o olhar de nenhuma mulher.

Ela tinha um charme inerente e conseguia sempre ser o centro das atenções. Chegava nas boates ou nos restaurantes e todos a conheciam e lhe dirigiam a palavra. Ela, sempre articulada, mantinha conversas extensas, enquanto Sávio sempre se atrapalhava em tartamudeios e mal ouvia um “bom dia” do balconista do boteco onde pendurava umas.

Soraia trabalhava como engenheira projetando redes de tubulações em grandes estruturas, como em plataformas de petróleo. Comandava uma equipe de técnicos, todos sempre prontos a acatar suas ordens e reportando-se a ela como senhora. Já Sávio entrava no escritório de administração condominial e recebia ordens do chefe, muitas vezes agressivas, e se perdia em filas de bancos e cartórios, reclamando solitariamente de sua rotina tediosa.

Portanto, ingressar no universo de Soraia sempre lhe garantia a satisfação de aspirações pessoais e profissionais. Ser cortejada, sair para dançar com grupo de amigos, apresentar aos conselho diretor o projeto desenvolvido. Cada parte da vida de Soraia lhe preenchia.

Um dia, tentou se conectar e recebeu a mensagem de erro do servidor. Ficou sem entender e pesquisou na internet o que aconteceu. Descobriu que a página do programa foi invadida por hackers e que todo o histórico dos usuários havia sido deletado. O prejuízo para a desenvolvedora foi imenso e pouco depois ela declarou falência.

Sávio chorou durante dias velando o corpo programado de Soraia, suas carnes de código binário e sua feição expressa pela interface das telas. Chegou a comprar rosas e depositá-las em frente ao computador, prestando suas homenagens póstumas.

Uns dias depois, passando por uma grave agonia, chegou à conclusão de que Soraia era importante demais para deixá-la partir. Assim, a reviveria de um jeito ou de outro. Percorreu pelas lojas e comprou vestido, saltos, maquiagem, peruca. Depilou as pernas, pintou as unhas, assistiu tutoriais para usar delineador e outros produtos. Arrumou-se, olhou-se no espelho e finalmente reviu Soraia, abrindo um imenso sorriso de contentamento.

Desceu pelas escadas logo atraindo a atenção dos vizinhos, que nunca o imaginariam nesses trajes. Saiu caminhando pela calçada, tentando imitar o passo e o rebolado sensuais de Soraia pelas ruas de Nova York. Pensava nos assobios recebidos por ela, mas encontrou apenas risos e ofensas, como um grupo de adolescentes gritando “olha a bichona”.

Começou a perceber as diferenças entre aquele seu refúgio secreto no mundo online e se envergonhou profundamente. Correu para tentar se esconder e acabou na beira de um rio. Olhou para seu reflexo nas penumbra, vendo o quão ridículo estava.

E, num passe de mágica, a imagem de Soraia real surgiu nas águas, convidando-o para chegar junto a ela, a migrar para um paraíso idílico, longe daquele mundo repleto de maldade e preconceito. Ele se deixou conduzir e caiu dentro da água, se afogando. Dessa forma, iria para o mesmo plano imaterial onde Soraia agora jazia.

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