Hoje, por volta do meio-dia, a Câmara de Deputados da Argentina começou a discutir a descriminalização do aborto. Estima-se que os debates se estenderão até a manhã de quinta feira. Será muito interessante de assistir, em função da veemência e do habitual pitorequismo dos nossos legisladores latino americanos, sempre propensos ao histrionismo e, no caso argentino, à dramaticidade. Até hoje, o placar se encontrava com uma leve diferença a favor da rejeição do projeto de Lei. No entanto, se espera que a parcela de deputados indecisos acabe aprovando a descriminalização por uma margem estreita, e com os votos dos últimos deputados a falar. Afinal, se não é com emoção, não é argentino.
Como não podia ser diferente, o assunto partiu a sociedade argentina em dois, gerando acalorados debates nas redes sociais, nos programas de televisão e nos almoços familiares. O curioso é que no campo político a divisão não se deu entre partidos políticos a favor e contra. O corte, aqui, foi transversal: cada partido tem dentro de seus blocos parlamentares que apoiam e rejeitam o projeto.
Hoje, o código penal argentino pune com pena de até quatro anos a mulher que causar o seu próprio aborto, ou que permita outra pessoa fazê-lo. A punição para quem praticar o aborto em outra pessoa pode chegar até 15 anos, caso a mulher venha a falecer. O projeto de lei descriminaliza a pratica do aborto até a 14ª semana de gestação, e garante a gratuidade do procedimento através do sistema público de saúde.
Outro fato interessante é que tenha sido o presidente Mauricio Macri quem possibilitasse a discussão no congresso argentino, dando liberdade de decisão para os deputados de seu partido. Não apenas por ele ser pessoalmente contra a descriminalização, mas também pelo fato de que durante os 12 anos do kirchnerismo nem o presidente Nestor nem sua esposa Cristina sequer tenham tocado no assunto. Esta contradição do ‘progressismo meia-boca’ peronista não é exclusividade argentina: o aborto também permanece penalizado na Venezuela, no Equador e na Bolivia. A única exceção sul-americana é a do Uruguai.
Para sermos honestos, não é a esquerda a única em demonstrar contradição entre os valores que prega e os que pratica. A direita autodenominada liberal também rejeita a legalização do aborto, revelando, junto com sua posição sobre o consumo de drogas, que os termos de liberdade individual que defende limitam-se à questão econômica.
Para aqueles que defendem a proibição, o cerne da questão do aborto passa pela definição do momento em que acontece o inicio da vida humana. Já os que promovem a descriminalização primam pela autodeterminação da mulher em decidir sobre o seu próprio corpo e no fato de que, ainda sob a proibição, milhares delas morrem em clínicas clandestinas. Como se vê, as posições não são conciliáveis, pois as respectivas prioridades são diferentes. Entendo que, desde o estado, na há como impor a uma mulher aquilo que somente ela pode decidir, e que penalizá-la por isso é sobrepor um castigo a um evento que sempre será infeliz. Ressalvando que, aquelas que por convicção religiosa se oponham ao aborto, não estão obrigadas a realizá-lo.
A questão do aborto está na mesma categoria de assuntos ‘sensíveis’ como já foram o divórcio e o matrimonio gay, e como ainda é a legalização das drogas. Mas a experiência indica que a realidade acaba se impondo sobre os dogmas e a ideologia, e mais cedo ou mais tarde o bom senso prevalecerá, na Argentina, no Brasil e no resto de América do Sul. Basta ver o mapa acima, que mostra quais são os países onde se permite o aborto e quais onde é proibido, para ver para onde marcha o mundo civilizado.
A sessão da Câmara argentina está sendo transmitida ao vivo, aqui.