Guiomar Valdez — Quando os personagens são mais relevantes que os sujeitos políticos

 

 

Depois das convenções partidárias que terminaram no dia 05/08, publiquei em minha página do facebook os meus candidatos para as eleições 2018 — majoritárias e proporcionais. Recebi respeitosamente uma ‘velha’ crítica porque não votarei no PT no 1º turno, mais ou menos assim: ‘é por isso que a esquerda não consegue a unidade’; ‘votar assim vai acabar tendo dois candidatos de direita no segundo turno’. Discordo. Primeiro porque a unidade ou as alianças em qualquer espectro político é competência e responsabilidade das lideranças partidárias em suas ‘leituras, valores e concepções’ conjunturais e estruturais, e, não, dos eleitores! Daí que surgem as conveniências ou não. Segundo, pelo modelo do nosso sistema político eleitoral, as eleições majoritárias representam também um ‘exercício de apresentação’ do que determinada sociedade tem acumulado de ideologias (enquanto visões de mundo) e projetos de nação. Daí que nesta etapa as diversas opções apresentadas criariam um ambiente de escolhas mais próximas daquilo que seria o ideal para cada eleitor; servindo também como um ‘termômetro’ e um ‘painel’ das forças políticas. O 2º turno tem outro significado.

Eu compreendo sinceramente as preocupações da crítica recebida. Afinal pela primeira vez depois da Ditadura Civil-Militar, salvo engano, teremos uma eleição onde a extrema direita apresenta um candidato com visibilidade e apoio razoável na sociedade. Diferente de muitos, esta situação não me espanta, nem desnorteia. Ela me entristece em muitos momentos. Esta situação está arraigada a História recente da ‘Nova República’, que nasce em plena crise mundial — econômica e político-social. O ‘Bem-Estar’ econômico desmorona sob os auspícios do neoliberalismo; o ‘Bem-Estar Democrático’ político-social se fragmenta e uma de suas faces vem dos porões antidemocráticos, com o prefixo ‘neo’ — nazistas, fascistas, ou outra denominação. Fato é que é presente e crescente em todas as sociedades. Se o campo progressista ou de esquerda no Brasil não atentou ou não se preocupou com este ‘pano de fundo’ real; se não incluiu quando esteve no poder ações e políticas que emancipassem a compreensão do mundo, do ‘nosso lugar nele’, de modo que este conhecimento se transformasse em instrumento de luta eficaz, não é culpa do eleitor.

A crise chegou, desmantelou o que tínhamos de ‘sólido’! Agora é reconstruir-se historicamente. Louvado seja a História (com letra maiúscula mesmo!)! A começar reconhecendo o ‘novo ator’. Não com o que tenho visto — histerias, fundamentalismos, fakenews. Infelizmente é o que predomina nos dois campos políticos. Quem perde mais? O campo progressista/esquerda. Não tenho dúvidas disso. Reduzir a compreensão do fenômeno ‘Messias Bolsonaro’ à ignorância política é desdenhar o mesmo caminho que tem levado ao poder um ‘Trump’, por exemplo. Há enraizamento social é preciso compreender e respeitar o real, mesmo que este não venha ao encontro do que queremos, do que pensamos; mesmo que nos irrite, é preciso encará-lo. É hora do discernimento!

Sugiro, a quem interessar possa conhecer a pesquisa publicada em maio/2018, da professora Esther Solano Gallego, para entender os caminhos pelos quais se deram o crescimento da extrema direita no Brasil. Ela apresenta os resultados das séries de entrevistas feitas com simpatizantes e eleitores do candidato Messias Bolsonaro. De acordo com a autora, ele é representante da alt-right brasileira, uma figura política com biografia inexpressiva politicamente, mas que no cenário pós-impeachment de intensa polarização social e crescente retórica antipolítica e a eleição de 2018, colocou-se como um dos protagonistas da vida política”(p.10). Ao dedicar-se a conhecer o pensamento e as demandas de um grupo tão heterogêneo de admiradores deste fenômeno, suponho ser possível desmistificar o ‘mito’ e seu eleitorado, daquelas ideias de que são ‘burros e tacanhos’. Neste momento, a título de exemplo, lembro que vi nas redes sociais há algum tempo atrás, fotos e cartazes estampados de uma turma de medicina da Faculdade de nossa cidade, apoiando o ‘Messias Bolsonaro’. Aliás, outras turmas deste mesmo curso por outras bandas, também fizeram questão de externar este apoio. Não foi exclusivo daqui.

A professora Esther afirma que as razões do ressurgimento destes grupos, que não em poucas ocasiões, ameaçam a estabilidade democrática e os direitos fundamentais, não podem ser vistos de uma maneira unidimensional, é um processo e é complexo, que dependem de fatores conjunturais e estruturais. Eis algumas razões conjunturais que ela elenca:

 “O processo de um impeachment ilegítimo no Brasil supõe uma ruptura dramática na estabilidade institucional, fragiliza intensamente a ordem democrática e acelera os processos de decomposição política. A anomia política instaura-se no cotidiano, levando a uma degradação muito rápida e a uma perda de confiança das bases representativas da sociedade brasileira; A deterioração da conciliação lulista; uma imprensa hegemônica oligopolizada que, com frequência, se comporta mais como panfleto político do que como órgão informativo; a complicada governabilidade num Congresso com grande pulverização partidária e de matriz político conservador, a absoluta falta de respeito com o processo democrático que muitos representantes políticos demonstraram ter, são fatores que intensificaram a crise política, em paralelo à crise econômica que o país atravessa e que é outro fator fundamental para entender o mal-estar social brasileiro. Altas taxas de desemprego e aumento da vulnerabilidade e precariedade para amplas camadas populacionais são fatores que potencializam o desgaste no tecido social. Por outro lado, os abusos de um judiciário hiperinflacionado e militante, que extrapola suas funções e invade o equilíbrio de poderes judicializando a política, e as dinâmicas lavajatistas da justiça penal do espetáculo, numa luta moralista, populista e punitiva contra a corrupção e que não respeita as garantias penais, transformam-se em importantes fatores de risco antidemocrático”.

É possível, neste caminho que se respeita o ‘real’, como a pesquisa indicada, revelar as motivações para o voto em ‘Messias Bolsonaro’, para além ‘do QI’ do que se chama de ‘bolsominions’. Reproduzo aqui (porque concordo) o elenco de motivações que o jornalista Fred Melo Paiva retirou do material apresentado pela professora Esther:

  1. Bolsonaro representa o tipo de político honesto em contraposição à “classe política corrupta” — ocuparia, assim, o espaço vazio do “outsider” que, não por acaso, a direita desta vez não conseguiu emplacar (só o instituto de pesquisas Vox Populi testou 15 desses nomes apenas em 2018).
  2. Sua retórica do “bandido bom é bandido morto” encontra respaldo na visão de que o “cidadão de bem” é uma vítima abandonada, enquanto o criminoso está superprotegido pelo Estado. A segurança pública é “fixação” plenamente justificada, diga-se, pelo recorde de 62,5 mil homicídios registrados no País em 2016 (estes são os últimos dados disponíveis).
  3. O Bolsa Família e as cotas raciais universitárias são negativos, por fomentar a preguiça e o parasita do Estado. O self-made mané o modelo de sucesso.
  4. O Movimento Negro, o Feminista e o LGBT representam grupos que sofrem preconceito, mas que se vitimizam em excesso, a fim de obter regalias — ao passo que seriam, também, indutores do “caos” que desestrutura a “família-padrão”.
  5. Os jovens identificam Bolsonaro como rebelde. É uma opção política que se comunica com eles e se contrapõe ao sistema. “Se, nos anos 1970, ser rebelde era ser de esquerda”, explica Solano, “agora, para muitos desses jovens, é votar nesta nova direita que se apresenta de uma forma cool, disfarçando seu discurso de ódio em forma de memes e vídeos divertidos.”
  6. Vários dos entrevistados que votam agora em Bolsonaro votaram antes no PT, em especial nos mandatos de Lula. Justificaram a escolha do petista com argumentos muitos parecidos aos que explicam o voto atual na ultradireita: a proximidade com o povo, o carisma e a honestidade. Que, no caso de Lula, se teriam perdido.

Além dessa classe média tradicional, que divide com o militar da reserva as mesmas ideias conservadoras a respeito de temas do comportamento, sua base eleitoral abarca ainda a classe média alta do interior do País, aquela “de chapéu e caminhonete” que, em viagem no tempo, desembarcou há pouco na Guerra Fria. “São homens jovens de renda alta que, se pudessem, matavam todos os comunistas”.

Assim compreendo o caminho do discernimento, levar a sério e com cuidado a compreensão do mundo; uma possível trilha que sufoquem a histeria, o desrespeito, o fundamentalismo, as generalizações irresponsáveis da vida política. Votem em quem quiser! Saibam o ‘porque’ para além do desejo! Pelo menos isso!

Para o campo progressista/esquerda, do qual me identifico, termino este artigo com um trecho da pesquisa, que penso nos ajuda a refletir muito e muito para avançarmos em nossa reconstrução histórica:

Vários dos entrevistados que proclamam seu voto em Bolsonaro, em 2018, admitiram ter votado no PT durante seus primeiros mandatos. Quando questiono o porquê, a maioria coincide: porque pensavam que Lula seria um líder que mudaria o país, estava perto do povo, era carismático, alguém diferente dos políticos de sempre e porque pensavam que ele não era corrupto, ou seja, argumentos muito parecidos com os colocados, hoje em dia, quando tratam da figura de Bolsonaro: proximidade, carisma e honestidade. Quando questiono a distância ideológica, programática, biográfica dos dois, isso parece não ser levado em consideração. O personagem parece ser mais relevante que o sujeito político. Especialmente interessantes são as falas dos entrevistados, que nasceram ou moram em regiões periféricas de São Paulo. Todos eles coincidem também em se sentirem traídos, enganados pelo PT, principalmente pela questão da corrupção e pelo seu afastamento da população: pensava que o Lula era honesto e próximo das pessoas. Hoje sei que ele é o maior ladrão de Brasil e agora penso que Bolsonaro é quem de verdade é honesto e próximo das pessoas (Entrevistado D).

Sigamos em frente!

 

Observações:

  • Esther Solano Gallego é Professora Doutora da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e do Mestrado Interuniversitário Internacional de Estudos Contemporâneos de América Latina da Universidad Complutense de Madrid. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri. Associada ao grupo de pesquisa Laboratório de Análises Interdisciplinares e Análise da Sociedade (Unifesp). Título da Pesquisa: “Crise da democracia e extremismos de direita”; Revista Análise – Nº 42/2018.
  • Fred Melo Paiva – cartacapital.com.br – 07/08/2018.
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Este post tem um comentário

  1. Sandra Maria Santos

    “Quer conhecer um homem? Dê-lhe o poder…”

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