Paula Vigneron — No solo do Brasil

 

 

 

Foz do rio Paraíba no Pontal de Atafona, em 3 de janeiro de 2017 (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

“Por volta dos meus 20, 21 anos, a tragédia, a bárbara, que se abateu sobre essa nação no golpe de 64… Na verdade, eu nunca pensei, na minha vida, que fosse ver isso de novo. Nunca pensei (…). Sem nenhum exagero, sem nenhum tom de tragédia, eu afirmo a vocês que, para viver uma nova ditadura, eu prefiro morrer. Não vale a pena viver aquilo tudo de novo.”

Ao microfone, na praça São Salvador, Centro de Campos, vestindo uma blusa roxa com dizeres sobre o voto em que a respeita, a professora Beth Araújo estava entre mulheres e homens em coro uníssono. Centenas, que se dividiam entre palavras de ordem, palmas e celulares para registros. Do outro lado, na avenida, outros homens em carros sinalizavam seus posicionamentos contrários: gestos de armas e buzinas provocativas.

Pouco antes, ela ouvira o barulho, as vozes, os carros. Teve certeza: eram opositores ao ato que acontecia a poucos metros dali. Arrepiou-se. Em sua cabeça, um filme: Vlados, Zuzus, Stuarts. Marias e Clarices no solo do Brasil. Mães, pais, filhos, tantos que partiram em rabos de foguetes. O horror estampado nas vozes e rostos em histórias contadas anos e anos depois dos fatos, quando reconquistado o direito à liberdade de expressar e relatar os dias de chumbo.

Quatro anos antes, assistira a um evento sobre os 50 anos do golpe militar. Entre as atividades, a exibição do documentário “Vlado: 30 anos depois”, sobre o jornalista Vladimir Herzog, morto durante a ditadura. À época, registros oficiais afirmaram que ele se matou. Enforcado. O corpo foi encontrado dentro de uma cela. As pernas do homem estavam dobradas sobre uma cadeira enquanto uma corda contornava o seu pescoço, presa à parte superior do espaço. Enforcado?

Lembrou-se das palavras ditas à mesa: “Nossa democracia é muito jovem, frágil. Tem 30 anos. Precisamos ficar atentos”. Considerou, aos 21 anos de idade, um exagero. Não vivera um período que não fosse democrático. Não sabia o que era não se expressar. Não conhecera os tempos sombrios aos quais se referiam tantos que acompanharam aqueles anos, que pareciam distantes, tão distantes.

Sempre ouvira falar sobre o período ditatorial. Relatos de pessoas próximas, que precisaram sair do país, e por meio de livros, filmes, músicas. Conhecera, ainda na infância, a Angélica de Chico Buarque. Sentia, mesmo sem ter noção do sentir, a dor de uma mãe que busca por seu filho sequestrado. Torturado. Morto. Nunca encontrou o corpo do rapaz. Em uma emboscada, ela também foi morta, sem poder lembrar, agasalhar e embalar o filho, “que mora na escuridão do mar”. Assassinada em um suposto acidente no túnel do Rio de Janeiro que leva o seu nome: Zuzu Angel.

Os dias tão distantes parecem espreitar de todos os cantos. Escondidos em gestos, atos, crenças. Travestidos em busca de paz e valores éticos e morais. Escancarados em debates, deboches, discussões. Negação de si, do outro, da própria história. Mesclados a palavras aparentes de bom senso e lógica. Ilógico. O passado tão recente, presente de ontem, assombra. Retrocessos. Excessos. Buzinas e brados e gritos e brigas; cegos e surdos e mudos; noites em dias: com quantas Angélicas se faz uma democracia?

 

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Este post tem um comentário

  1. Emar

    Se a música me faz chorar, é porque eu conheço a dor de ter o maior amor do mundo afastado de mim, através do exílio.
    O texto é perfeito e toca em uma corda sensível no interior de quem tem medo.
    Bela amostragem da isenção da Folha da Manhã em relação ao cenário político.
    Parabéns, Paula! Parabéns, Folha da Manhã!

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