Hamilton Garcia — A esquerda e a “resistência”

 

 

Logo depois da contrarrevolução de 1964, a esquerda se dividiu em duas alas visceralmente opostas: uma que apontava para a saída cubana, com mobilização popular em torno de ações armadas das vanguardas revolucionárias — tendo a guerra popular prolongada, de inspiração chinesa, peso menor neste espectro — e outra que buscava uma frente ampla (democrática) com os setores descontentes com o crescente autoritarismo militar. A profunda divergência entre elas não impediu que fossem, ambas, esmagadas pelo aparato repressivo montado pela ditadura, nem tampouco a visão estratégia dos reformistas lhes garantiu a liderança da esquerda na redemocratização. A história é assim.

À época, falava-se de resistência contra o “entreguismo”, a manutenção da pobreza e a perda das “liberdades políticas”. O “entreguismo” saiu pela culatra, pois os militares, não obstante o alinhamento anticomunista (feroz) com os norteamericanos, fizeram uma política de desenvolvimento nacional junto a uma diplomacia pragmática, que buscou oportunidades econômicas inclusive no bloco comunista/nacionalista do terceiro mundo.

Já a pobreza foi reduzida de quase 70% para menos de 40%, entre 1970-1980*, e radicalmente transformada de pobreza rural (invisível e dispersa) para pobreza urbana (exposta e concentrada), com todo o corolário de desagregação social conhecido — portanto, dialeticamente agravada, não obstante reduzida. Na mosca mesmo só a previsão da perda das liberdades políticas, que muito provavelmente estaria em situação ainda pior se a revolução tivesse vencido — como demonstra o exemplo cubano e seus 60 anos de regime fechado.

Hoje, volta-se a falar de “resistência”; por incrível que pareça, da mesma. Acredita-se que Bolsonaro vai entregar as riquezas do país aos EUA (e Israel!), que a pobreza vai se aprofundar e as liberdades serão novamente tolhidas. Nada disso pode ser descartado, é verdade, mas tais expectativas parecem fazer tábula rasa dos desafios presentes na realidade brasileira, que tiveram poder determinante sobre o voto popular (vide, A Democracia na Furna da Onça).

Falar em “entreguismo” depois de quase 24 anos de desindustrialização regada à corrupção globalizada (nos 13 anos petistas), incentivo cambial aos gastos no exterior e às importações, sugere certa desorientação — se não pura desfaçatez — e elude a questão central: a retomada da industrialização de modo a sustentar, via aumento da renda interna, a economia, os empregos e a diminuição da pobreza, foi possível no regime militar com o aludido alinhamento geopolítico aos EUA, ao passo que se frustrou tanto com o globalismo liberal-democrático dos tucanos, quanto com o alinhamento “anti-imperialista” dos petistas.

Do mesmo modo, falar em “aprofundamento da pobreza” depois da brutal recessão provocada pelo estelionato eleitoral petista — que precipitou o esgotamento do Estado de compromisso (neopatrimonial) e da inclusão financista pelo consumo — mostra a vocação prestidigitadora deste tipo de esquerda. O processo de redução da pobreza ocorreu tanto por políticas de esquerda, quanto de direita e, olhando-as retrospectivamente, percebe-se que, se combinadas, teriam tido seus efeitos positivos maximizados.

Se nos anos 1970 vimos a inclusão pela aceleração econômica produtiva, sem a devida promoção social dos mais pobres, nos anos 2000 observamos exatamente o inverso, sem a devida qualificação educacional — a bolha econômica de commodities, por sua sazonalidade, por mais prolongada que seja, não pode sustentar tal processo. Em outros termos, se a diversificação das cadeias produtivas e a promoção das populações historicamente marginalizadas, por meio da escolarização e do trabalho, se conjugarem, no futuro, teremos mais chances de solucionar o problema da abissal desigualdade brasileira.

Até mesmo o tema da liberdade política fica comprometido pelo olhar da esquerda anacrônica, não só pelas relações carnais dela com as ditaduras “populares” do Ocidente e do Oriente — como, de resto, já sucedera aos comunistas no século passado, embora de maneira menos escandalosa —, mas também por sua simbiose com as classes neopatrimoniais, que acabou levando LILS à prisão. O fracasso do Governo Bolsonaro, neste quesito, está longe de significar a vitória da “resistência democrática”, sendo mais provável que signifique a vitória do MDB-Centrão — naturalmente em parceria com sua “esquerda” (o lulopetismo).

Esta tendência farsesca em relação à história e sua repetição, é ainda mais explícita nas alas “revolucionárias” do petismo, para as quais as transformações ocorridas ao longo dos séculos no capitalismo não afetaram nem sua composição de classe — proletariado e burguesia permanecem como classes originais em sua constituição —, nem suas relações com o Estado — “comitê executivo da burguesia”, no dizer do Manifesto Comunista de 1848(!). Um prodígio de teoria sem fatos, que nos faz compreender plenamente as razões da famosa frase do velho Marx: “tudo o que sei é que não sou marxista”.

A ideia predominante entre estes setores mais radicais, é que a derrota do PT não foi tática, mas estratégica: “depois de treze anos e meio no governo”, nos diz Valério Arcary[i], “a principal lição (…) é que não será possível transformar a sociedade brasileira através de negociações de um projeto de reformas com a classe dominante”, que “tolerou o PT no contexto da conjuntura, muito excepcional e inédita, de um mini-boom de crescimento econômico, turbinado pela (…) ascensão chinesa”. Ou seja, a revolução volta ao proscênio, como ocorreu na Venezuela de Chaves — que é apoiada pelos petistas apesar do desastroso resultado.

“A estratégia da burguesia brasileira para retirar o capitalismo semiperiférico da estagnação prolongada, prossegue o autor, é atrair investimentos externos e impor padrões de superexploração ‘asiáticos’. Portanto, não está disposta à concessão de reformas ‘europeizantes’” — que o PT, diga-se de passagem, tentou fazer em patamar de produção muito inferior ao “europeu”, fadando-as ao fracasso, sem  que o autor disto se aperceba.

Este pequeno detalhe se agrega a outro, que também passa despercebido, não obstante seu caráter histórico, impedindo um olhar mais profundo sobre o real equívoco estratégico do PT e da esquerda bolivariana em geral, que é o de continuar considerando, mesmo depois do fracasso cubano e do colapso soviético, que a simples eliminação da burguesia e a formação de Estados politicamente dirigidos por socialistas, seria o suficiente para colocar as economias nacionais em graus mais avançados de produtividade e as liberdades em níveis interditados ao capitalismo (vide, A Que Herança Renunciamos — do socialismo cientítico ao socialismo mítico). Mesmo no caso da China, onde a NEP pôde se desenvolver plenamente, as liberdades continuaram circunscritas aos anéis burocráticos do Estado-partido, não obstante o sucesso econômico.

Estamos, de fato, “diante de um projeto de reposicionamento global do Brasil no mercado mundial e no sistema de Estados”, como diz Arcary, mas reduzir este processo à dimensão conotativa da denúncia do “neoliberalismo” e da ode ao “proletariado internacional”, é apenas reiterar a impotência político-intelectual do velho stalinismo.

Seria melhor que a esquerda voltasse ao pensamento (auto)crítico de Marx&Engels e se preparasse para a hipótese de um novo arranjo entre a direita e os militares, diverso do liberalismo anacrônico oitocentista, pleiteando para si a melhor forma de atender às demandas da modernidade social, que, entre nós, passa pela questão republicana (superação do neopatrimonialismo) e a valorização do desenvolvimento para todos, nos moldes de uma NEP democrática, que nada teria a ver com o “politicamente orientado” que conhecemos, onde a questão social é residual e os grandes interesses reinam sobre o conjunto das classes sociais impedindo a consolidação e o progresso democrático.

 

[i] Vide Valério Arcary, Esquerda Online, 16 de dezembro, in. <https://esquerdaonline.com.br/2018/12/16/as-revolucoes-tardias-sao-as-mais-radicais/>, em 09/01/19.

 

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Este post tem um comentário

  1. José Frederico Straggiotti Silva

    Excelente o artigo. meus parabéns.

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