Democracia com megafone
Por Aluysio Abreu Barbosa
“Um orador sem megafone”. Para o filósofo Aristóteles, este era o limite da democracia. Fundado na Atenas do séc. VI a.C., o “governo do povo” (demos, povo + kratos, poder) era direto. Na ágora, espaço público aberto a todo cidadão, cada um deles tinha direito a voz e voto em qualquer decisão pública. E, a partir dela, todos poderiam se revezar entre as funções de governante, legislador, magistrado e comandante militar. Construído para gerir cidades-estado, não países, teve em seu auge entre 30 e 60 mil cidadãos. Daí seu limite oral traçado por Aristóteles — “cuja cabeça sustenta ainda hoje o Ocidente”, como cantou o Caetano.
A democracia representativa, como a conhecemos, é uma invenção iluminista do séc. XVIII. Não por acaso, nos servem até hoje de modelo as repúblicas formadas nas duas mais famosas revoluções do Iluminismo: a Americana de 1776, na independência dos EUA, e a Francesa de 1789. A ambas, na economia, se sobrepôs outra, anterior: a Revolução Liberal da Inglaterra entre 1640 e 1688. Ela seria consolidada pela Revolução Industrial iniciada também naquele país em 1760 e expandida a parte do mundo no século seguinte — que, no Brasil, só chegaria nos anos 1940, com a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) por Getúlio Vargas.
Em termos do estado moderno, prevaleceu o desenho tripartite do filósofo Montesquieu em seu “Do Espírito das Leis”, publicado em 1748, com a divisão entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Olhando ao que veio de seis séculos antes Cristo até nossos dias, os antigos gregos não chamariam nosso sistema de governo de democracia. A sua era direta, sem representantes. Vissem o Brasil de hoje, por exemplo, com seus governantes e legisladores eleitos de quatro em quatro anos, seus magistrados aprovados em concurso público, de segunda e terceira instâncias nomeadas pelo Executivo, classificariam nosso regime como oligarquia (“governo de poucos”).
Não é preciso se rebaixar ao “complexo de vira-latas” do presidente Jair Bolsonaro (PSL), batendo continência à bandeira dos EUA, para se constatar que aquele país é a referência mais sólida da democracia representativa. É o único no mundo que, desde o séc. XVIII, elege presidente e Congresso de quatro em quatro anos. Nem o fato de terem disputado uma fraticida Guerra Civil (1861/65) e sido protagonistas de duas Guerras Mundiais (1914/18 e 1939/45), afetaram seu compromisso entre eleitor e urna. De fato, lá até juízes, promotores e xerifes (equivalentes aos nossos comandantes de guarda municipal) são escolhidos pelo voto popular.
Sem a mesma solidez institucional, o Brasil padece com um governo federal que parece perigosamente próximo ao fim, antes mesmo de ter de fato começado. Há menos de cinco meses no poder, Bolsonaro foi eleito por um fenômeno que deu sua primeira demonstração no mundo com a Primavera Árabe de 2011. Tsunami sobre os países islâmicos do Oriente Médio, Norte da África e parte da Ásia, aquele foi o primeiro movimento de massas da humanidade que não nasceu em nenhum partido político, sindicato, quartel militar, revelação religiosa, ou catástrofe natural, mas através das redes sociais.
No Brasil, o fenômeno demorou menos a chegar que a Revolução Industrial. Em 2013, mobilizadas pelas redes sociais, as Jornadas de Junho balançaram o governo Dilma Rousseff. E deram fim ao monopólio de 21 anos que o PT exercia nas manifestações de rua do país, com suas filiais UNE, CUT e MST, desde que os “caras-pintadas” liderados pelo hoje petista Lindbergh Farias levaram em 1992 ao impeachment do ex-presidente Fernando Collor — ironicamente, depois companheiro de Lindbergh no Senado.
Nascida de uma pauta tão difusa quanto a Primavera Árabe, as Jornadas de Junho trouxeram às ruas as primeiras camisas amarelas da seleção de futebol, que dominariam os protestos no país de 2015 e 2016. A motivação se afunilara pela deposição de Dilma, que conduziu o país à maior recessão econômica da sua história. O Congresso Nacional se aliou aos protestos para “estancar a sangria” da Lava Jato, como o ex-senador Romero Jucá (MDB) foi flagrado em gravação, enquanto era um dos principais articuladores do impeachment da presidente.
Em que pesem todas as denúncias de corrupção contra Michel Temer (MDB), que já lhe geraram duas prisões, o vice eleito por quem votou no PT em 2010 e 2014 assumiu a presidência e conseguiu entregar um país em situação econômica menos pior do que pegou. Não conseguiu fazer a reforma da Previdência por conta de outra gravação, feita pelo empresário Joesley Batista, que fez sua fortuna nos governos petistas e cujo advogado seria flagrado num bar de Brasília com o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
Em outro áudio de conversa com Joesley, Aécio Neves foi flagrado pedindo dinheiro e falando em mandar matar como bandido reles. Após quase vencer a eleição presidencial de 2014, arrastou consigo um PSDB que já não vinha bem das pernas e, como o PT, não soube cortar na própria carne. Com Lula preso pela Lava Jato e impedido de concorrer em 2018, o fenômeno Bolsonaro foi o tsunami que varreu as urnas, com congêneres ainda mais surpreendentes, como Wilson Witzel (PSC) no Rio e Romeu Zema (Novo), nas Minas de Aécio. E todos foram eleitos a partir do discurso antiestablishment ecoado nas redes sociais.
O Congresso, que julgou poder usar o governo Temer como teflon às investigações de corrupção, foi também solapado pelo voto. O Senado teve renovação de 85,19%, enquanto a Câmara Federal, de 52,54%. Ainda assim, diante da fraqueza de um presidente eleito com discurso de autoridade, mas que não consegue mandar nem nos próprios filhos, tem imposto sucessivas derrotas ao novo governo. E, de quebra, enfraquecido a Lava Jato, cujo principal símbolo, o ex-juiz federal Sérgio Moro, se deixou reduzir a “funcionário de Bolsonaro” — como o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM) se referiu ao ministro da Justiça. Isso, antes de lhe desarmar do Coaf e mirar no decreto presidencial de flexibilização do porte de arma.
Sem articulação política, enfraquecida após o ministro da Casa Civil Gustavo Bebianno (PSL) ser exonerado por um simples vereador carioca, mas investido do poder imperial de filho do “rei”, tudo indica que Bolsonaro sangrará mais com as investigações do Ministério Público sobre outro rebento. Não há olhar desapaixonado sobre o senador Flávio (PSL) incapaz de ver os fortes indícios de lavagem de dinheiro, fraude fiscal, “rachadinha”, ou da relação intestina da sua família com as milícias fluminenses.
É sobre um presidente acuado que o Congresso avança abertamente: tomará para si a reforma da Previdência e projeta fazer na sequência a reforma tributária, no que já está sendo chamado de implantação do “parlamentarismo branco” no Brasil. Em reação, os defensores do governo, em número menor a cada nova pesquisa, planejam manifestações para o próximo dia 26. Nas redes sociais, muitos já pregam a invasão do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Inadmissível no estado democrático de direito, seria perigoso à sobrevivência de qualquer ditador cujos filhos e astrólogo atacassem diariamente sua cúpula militar.
As redes sociais parecem ter dado ao mundo o “megafone” aristotélico. A partir do seu eco, os limites da democracia representativa foram extrapolados numa nova ágora virtual, em que cada cidadão quer ter sua voz ouvida em tempo real, não mais só de quatro em quatro anos. No Brasil e no mundo, a direita teve a virtude de ter entendido antes o que o filósofo Umberto Eco chamou de “voz aos idiotas”. Afinal, se o jornalista William Bonner disse em passado recente que apresentava o Jornal Nacional ao Homer Simpson, com as redes sociais todo Homer Simpson passou a se achar um William Bonner.
Ao colocar em xeque a democracia representativa, mas cujo mate ninguém ainda conhece, esse novo jogo mundial fez de Bolsonaro presidente. E foi nele que teve sua primeira derrota, nos protestos do dia 15 contra os cortes do governo na educação pública, que tomaram as ruas de todo o país. As hashtags #tsunamidaeducação e #TodosPelaEducação registraram mais de 400 mil compartilhamentos no Twitter. Já a hashtag oposta #BolsonaroTemRazão teve só 37 mil compartilhamentos.
Chamar os manifestantes pela educação de “idiotas” e “imbecis” não altera a soma. Mas pode influenciar na subtração.
Publicado hoje (19) na Folha da Manhã
Já faz parte da cultura politica do Brasil, se não tiver esse toma lá da cá ninguém consegue governar nada nesse País.