Homens e deuses em tempo de Covid
(Para Charlie Watts)
Por George Gomes Coutinho(*) e Aluysio Abreu Barbosa(**)
— Eric Clapton deu uma pirada nos últimos tempos. Mas uma coisa não anula a outra, né? O que ele fez com o Cream, o que ele fez em carreira solo são pedras fundamentais da música anglo-saxã na segunda metade do século 20, com certeza! — abriu Jorge o diálogo virtual, que se estenderia entre arte, humanidade dos gênios e Covid, nos dias seguintes.
— Não concordo com as opiniões dele sobre a pandemia. Mas há contextos para a “pirada” de Clapton, como suas graves reações à AstraZeneca. E, ainda que não houvesse, não arranha o que ele foi, é e será para a música do mundo. Na certeza de que, felizmente, o politicamente correto é como laticínio em sua datação de validade, só espero que seu patrulhamento neostalinista não nuble em vida o reconhecimento que o grande artista terá depois da morte! — respondeu Aníbal, iniciando meio de sola sua participação no debate.
— Patrulhamento neostalinista? — queixou-se Jorge da entrada mais ríspida do velho amigo de data recente.
— É como eu e gente muito melhor julgamos ser esse binarismo radical e pequeno-burguês!
— Eu acho que fiz foi crítica a posicionamentos públicos feitos por uma figura pública na comunicação de massa. Nada mais condizente com sociedades de massa e capitalistas. E se Clapton não desejar ouvir críticas ao que diz publicamente, talvez seja mais inteligente não participar de nenhum debate ou questão pública até o fim dos seus dias. É sim, para mim um gênio pelo que fez. E pura decadência no que é no presente!
— Não estou falando da sua posição pessoal, Jorge. Falo da esquizofrenia de se condenar em vida um artista do tamanho de Clapton, pelo que concordo ser um erro, mas contextualizo. Lembra o que fizeram com Billie Holiday, morta algemada a uma cama de hospital, por suposta posse de narcóticos. Condeno essa mistura de udenismo com jacobinismo. Seja dos “homens de bem” dos anos 1950, que roubaram a dignidade da morte da maior cantora que já existiu, seja dessa lacração de espectro político oposto, mas igualmente pequeno-burguesa de hoje.
— Ah, sim, sim. Mas isso aí é um problema do moralismo, cara. Que está nos dois lados do espectro político, tanto na esquerda, quanto na direita, isto é certo. Mas, cara, sem dúvidas: sem “vacas sagradas”. Porque, se não, o debate não avança. O cara pode ser fantástico no âmbito da música e ser um imbecil no âmbito das relações humanas. E o trabalho de Clapton durante a pandemia foi um desfavor. Tanto que foi “ostracizado” por todos os caras tão grandes quanto ele no mundo da música contemporânea, até Paul McCartney, etc. Clapton? Que pena, né? Que pena!
— Não se trata de “vaca sagrada”. Mas de reconhecer que Richard Wagner foi um canalha antissemita, que confessamente inspirou Hitler na sua concepção do nazismo. Que Charlie Parker pegava o dinheiro da sua banda, privando seus colegas de subsistência em regime de trabalho escravo, para comprar heroína. Que Chico Buarque defendeu o PT e o governo de Dilma acriticamente, quando já não havia mais defesa. Nunca deixei que isso contaminasse os gênios da música que foram e são. Tanto ou pior que os erros que eles e Clapton cometeram, é juntar alhos com bugalhos pelo moralismo da moda. Mas, enfim, pensamos diferente. E concordamos no essencial: são gênios da música. Este, para mim, é o ponto. Não o que Clapton disse ou fez durante a pandemia.
— Pois é, bom, vamos lá. Eu também penso a mesma coisa, vide, por exemplo, o Heidegger, um dos maiores filósofos alemães do século 20 e aderiu, de pleno, ao nazismo. Agora, a grande questão é que isso aí mostra a inflexão na biografia daquela personalidade. E eu acho que conta. Que fala tanto daquele personagem, quanto fala daquele momento histórico. E evidencia o mais importante: gênios são humanos! E, invariavelmente, são capazes, enquanto humanos, até mesmo de cometer as piores coisas. Que esses exemplos, que acontecem durante a biografia desses sujeitos, funcione como uma espécie de alerta para nós, os comuns. Se eles são capazes, que a gente redobre a vigilância em termos das atrocidades que podemos cometer.
— Sim, como Erza Pound apoiou em vida o fascismo e Pessoa, o salazarismo. E continuam a ser dois dos maiores poetas do século 20 e da literatura universal. E, sim, continuam sendo humanos. O que me leva a confessar: tanto quanto pela elegância do seu futebol, admiro Zidane pela humanidade da sua cabeçada no peito de Materazzi, na final da Copa de 2006.
— Talvez, aí, neste caso, eu admire ainda mais Zidane por causa da cabeçada! — pontuou, entre risos, Jorge.
— Enfim, chegamos a um consenso!
— Pois é, cara, esse lance aí, do Fernando Pessoa com o salazarismo, eu admito que é algo que me incomoda profundamente. Depois ele fez uma revisão disso, fez um mea culpa. O que que deu? Uma das mentes mais avançadas da língua portuguesa de todos os tempos, né, cara? Mas os consensos sempre são possíveis dentro de determinados elementos civilizatórios! — aquiesceu Jorge, novamente entre risos.
— Como guitarrista, Clapton é deus. Como homem, é homem. Abraço fraterno!
— É, é isso, é isso. E mais uma vez, os deuses nunca foram tão humanos, dado as criaturas que são dos próprios homens. Abraço, nego véio!
— Adendo rápido. No consenso sobre a humanidade de Zidane, só agora fui notar a coincidência em versos escritos, 10 anos antes da final da Copa de 2006, para Clapton. Que usei ao escrever sobre o Dia do Rock. Mas que não deixam de dialogar também com a nossa discordância: “falo de encruzilhadas de vida/ atravessadas a cabeçadas/ nas convenções/ mesmo a que convenciona não tê-las”.
— É, cara, esse debate todo está merecendo virar um texto, sabe? — propôs Jorge, em meio a mais risos.
— Rapaz, sabe que é uma boa ideia? — concluiu Aníbal, rindo pela primeira vez.
(*)Sociólogo, cientista político, professor da UFF-Campos e músico
(**)Poeta, jornalista e diretor de redação do Grupo Folha
Publicado hoje na Folha da Manhã