Com Arnaldo Neto, Cláudio Nogueira e Matheus Berriel
“Bolsonaro se apresenta como uma nostalgia do período militar (…) Lula tem falado muito na necessidade de voltar àqueles bons tempos em que ele era presidente da República. Na minha opinião pessoal, não existe nem volta ao período militar, como Bolsonaro sonha, nem existe volta aos bons tempos com os quais o Lula sonha. São, na verdade, duas nostalgias”. No Folha no Ar da manhã de ontem, na Folha FM 98,3, foi a avaliação que Fernando Gabeira, jornalista da Globo News e deputado federal por quatro mandatos consecutivos, fez do atual presidente da República e do seu antecessor. Ambos favoritos em todas as pesquisas presidenciais às urnas de 2022, daqui a menos de um ano. Defensor de uma opção “olhando para frente, para um projeto de futuro do Brasil”, o ex-candidato a presidente pelo PV na eleição de 1989 acha que o caminho para a terceira via é apostar na decadência popular de Bolsonaro, que “não chegou ainda ao seu limite”. Gabeira também falou sobre jornalismo, fake news, crise econômica do país, meio ambiente, crise hídrica, energias alternativas, pandemia e CPI da Covid, que considera estar cumprindo seu papel, ainda que não acredite no impeachment do atual ocupante do Palácio do Planalto, enquanto Arthur Lira (PP/AL) ocupar a presidência da Câmara Federal. Gabeira também analisou pragmaticamente, mesmo admitindo relativo desinteresse, a disputa do governo do estado do Rio.
Jornalismo sob ataque – Trata-se não só de um problema brasileiro, mas um problema que aconteceu também nos Estados Unidos, com características muito semelhantes à nossa quando surgiu o Donald Trump. São candidatos de extrema direita, com uma visão muito especial e que precisam, de uma certa maneira, se colocar artificialmente. É uma colocação especial contra o sistema. Então eles chamam de sistema não só o sistema político ou as instituições, como também a grande imprensa. Eles precisam se colocar como vítimas da grande imprensa e precisam utilizá-la também como um instrumento de trabalho. Como eles utilizam como instrumento de trabalho? Dizendo barbaridades, fazendo provocações, ainda que sejam aparentemente absurdas, mas eles se colocam numa situação em que forçam a grande mídia a falar deles. Existe essa preocupação permanente de criar esse conflito com a grande imprensa, porque esse conflito é um conflito que interessa a eles. Ao mesmo tempo, eles procuram estabelecer um sistema de informação próprio, que são as bolhas onde eles circulam, e tratam de apresentar as notícias, às vezes e quase sempre, de uma forma muito parcial. Portanto, é uma tática utilizada por ele, copiada do Trump nos Estados Unidos, que só foi e é possível com o advento da internet, com a possibilidade de você criar canais próprios, se colocar como vítima da imprensa, falar o que quiser nos seus canais e utilizar a grande imprensa como um mecanismo de provocação para que o seu nome continue sendo difundido.
Reação – Evidentemente, esta tentativa, tanto do Trump quanto do Bolsonaro, sofreu alguns problemas com o advento da pandemia. Foi necessário, de uma certa maneira, acreditar na imprensa, que prestou um serviço extraordinário, e a imprensa se colocando também como aliada da ciência. Imprensa e ciência se colocaram de uma forma mais ou menos uniforme, integrada, compacta, oferecendo uma interpretação da pandemia e indicações para sobreviver à pandemia, que é entrar em confronto, lá nos Estados Unidos, com a primeira visão inicial negacionista do Trump, não era tão forte, e com a visão negacionista do Bolsonaro aqui no Brasil. Então, você teve: de um lado, o Trump foi derrotado nas eleições americanas praticamente por isso também, é um grande fator na derrota dele. Outro elemento dessa tática é o descredenciamento, que é deslegitimação das eleições. Nos Estados Unidos, esse processo passou por uma denúncia de fraude nas eleições a partir dos votos pelo correio. Aqui no Brasil, a deslegitimação foi tentada a partir de um questionamento dos votos eletrônicos, mas ambas com a mesma intenção de se posicionar, em caso de derrota, com uma denúncia mais ou menos estabelecida de que as eleições foram fraudulentas.
Fake news – Eu diria que é uma coisa até mais longa na história da humanidade. Você vê que eu fui candidato no Rio de Janeiro, e eles faziam panfletos, fizeram um milhão de panfletos dizendo que eu ia acabar com o feriado de Nossa Senhora, umas coisas desse tipo. Existe um livro de um grande intelectual alemão, Hans Magnus Enzensberger, que chama “Política e crime”. Então, ele levanta, ao longo da história da humanidade, a quantidade de governos que caíram por causa de boatos. Os boatos eram, na Idade Antiga, as fake news de hoje: eram informações falsas que corriam de boca em boca em certos momentos, até derrubarem o governo. Quer dizer, é uma tática antiga, mas que foi evidentemente potencializada pela internet. Por quê? Primeiro, porque a internet multiplica essas informações. Segundo, porque, através da internet também, você pode criar bolhas em que as pessoas vivem encerradas e só acreditam naquelas informações que saem de determinadas fontes. Então, você pode ter uma bolha de pessoas que acreditam que a Terra é plana e recebem informações fortalecendo a sua convicção de que a Terra é plana. Todas as notícias que vêm para elas são notícias dentro do contexto e da visão de um mundo, segundo qual a Terra é plana.
Futuro do jornalismo – Essa destruição das fake news foi uma espécie de necessidade. Mas, dentro do jornalismo, da indústria jornalística, sempre se dedicou uma parte do orçamento para justificar as notícias que se publica. Há empresas jornalísticas do mundo que produzem notícias e gastam 30% do seu orçamento de produção das notícias só na checagem. Então, esse trabalho de checagem é um trabalho específico da indústria que dá a ela mais respeitabilidade, porque, para você ganhar, de uma certa maneira, a confiança de tomadores de decisão, tanto no campo econômico como no campo político, você precisa ter informações checadas na base. Portanto, esse trabalho de desfazer as fake news é apenas um trabalho secundário. O principal é o trabalho que a imprensa utiliza para checar as suas próprias notícias, para evitar que as próprias notícias não sejam falsas, a ponto de as pessoas, com o tempo, passarem a confiar naqueles organismos que publicam notícias verdadeiras.
Aliança com a ciência – No caso da pandemia, foi preciso definir qual é o campo em que você vai atuar. Se nós vamos tratar de uma pandemia, qual é o nosso aliado? Qual é a nossa fonte? A fonte é a ciência. São cientistas. Então, vamos estabelecer com eles uma associação e vamos tentar popularizar e divulgar as teses científicas reconhecidas e aprovadas na pandemia. Eu acho que o futuro do jornalismo ficou bastante evidenciado aí, também na necessidade de você, cada vez mais, se associar àquelas fontes que são fontes legítimas e poderosas em cada tema, para poder continuar ganhando a confiança das pessoas. Se você examinar bem, a produção da notícia custa dinheiro. Fazer a notícia custa dinheiro. Eu estou aqui fazendo um trabalho sobre a crise hídrica, mas estou consumindo, usando um hotel, num quarto de um hotel, eu almoço, alugo carro, e isso tudo é importante. De um modo geral, grande parte dos comentários da internet são a partir de notícias que nós produzimos, que a empresa produz.
Crise econômica do Brasil – Nós já estávamos com dificuldades econômicas no Brasil antes da pandemia. Que, de uma certa maneira, aprofundou bastante essa crise. Ela reduziu a atividade econômica, ela aumentou o número de desempregados, ela inibiu o investimento, e nós tivemos o comportamento do presidente da República também muito negativo em relação a isso. Ele hesitou em iniciar o processo de vacinação, a compra das vacinas.
Alternativa ambiental – Quando você olha a crise econômica também em outros países, quase todos eles, pelo menos os países europeus, eles procuram determinar algumas linhas para sair dela. Uma das linhas que a Europa define, e que poderia estar presente no Brasil, é a compreensão da importância do meio ambiente. Na Europa, um dos pontos da retomada é exatamente a retomada verde. E o Brasil está, nessas circunstâncias históricas, diante de um mundo que vê a questão ambiental de uma outra maneira. Ela está presente na agenda dos principais líderes mundiais, inclusive no programa do Biden. Ela um ponto decisivo, ela está presente na Europa, ela está presente no plano quinquenal chinês, em 10 dos 13 pontos. E o Brasil, como potência ambiental, deveria estar exatamente compreendendo que grande parte do seu potencial está exatamente em valorizar a natureza e utilizar esse instrumento para projetos de crescimento. Mas, o que o governo brasileiro faz? Ele ainda está ancorado numa visão de crescimento antiga, que não se inibe na destruição do meio ambiente. E, com isso, afasta investimento. As empresas, hoje, são regidas por uma linha de trabalho chamado ESG (Environmental, Social and corporate Governance, ou melhores práticas ambientais, sociais e de governança). Os fundos de pensão passam a ser muito cobrados nos investimentos se eles escapam dessa compreensão da importância do meio ambiente. Então, você tem grandes países do mundo colocando o meio ambiente como o centro da sua agenda. Você tem as empresas internacionais determinando que o meio ambiente é muito importante.
Brasil dá as costas ao mundo – O Brasil dá as costas para essas possibilidades. A primeira decisão do presidente da República foi uma decisão de romper com um fundo amazônico da Noruega e da Alemanha, que era um investimento a fundo perdido, exatamente para proteger a Amazônia, exatamente para dar condições de você proteger a Amazônia. E, nesse contexto, o Brasil poderia avançar até para poder tirar algum proveito do carbono que a própria Amazônia consegue reter, e também tirar proveito da possibilidade de explorações científicas da floresta, de unir o conhecimento à floresta e de buscar daí os caminhos também de crescimento. O governo brasileiro dá as costas para isso. Essa é uma visão tão estreita, que dificulta a retomada a ponto de você ter, por exemplo, um leilão, como o leilão de petróleo desta semana, que foi um fracasso. Você vai leiloar áreas ambientalmente sensíveis, não há mais empresa internacional que queira investir nisso, entende? Então, é uma é uma contradição entre a visão do Governo e a visão da realidade mundial.
Gasolina a R$ 7,00 o litro – Compreendo o sentimento de indignação com o preço da gasolina, mas não é um mecanismo que a gente possa controlar com facilidade. Não só a gasolina é cara, como ela é extremamente cara para o nosso futuro. Ela é um combustível condenado historicamente. Então, nós vemos hoje, por exemplo, que o Brasil já deveria ter avançado numa série de campos que ficaram para trás. As nossas fábricas de automóvel, como a Ford, foram embora porque não compreenderam que está havendo uma mudança ao elétrico. Com todo o mundo em modificação, o Brasil tinha que perceber e tentar se adaptar a ele. Existe agora um esforço de baixar a gasolina por intervenção do governo. Eu acho que conseguir com redução de imposto, tudo muito bem, mas eu acho que você criar um fundo para financiar a gasolina, acho que vai acabar entrando numa luta contra um adversário mais forte do que os governos podem imaginar, entende? Porque eles não têm recursos para segurar uma situação internacional desse tipo internamente, eles não conseguem segurar esse ponto.
Brasileiros passando fome – É preciso que haja realmente uma política decidida sobre a fome, é preciso reconhecer isso e ter uma política decidida sobre isso. Agora, para isso, também é preciso liberar recurso. Você vê o que se passou na pandemia: milhares e milhares de pessoas desempregadas, 14,5 milhões. Mas você viu algum nível de sacrifício que o Estado resolveu fazer, algum nível de admissão entre governadores, deputados, senadores, juízes, desembargadores de reduzir uma parcela do seu salário nessas circunstâncias? Você não viu. Nem falam nisso. E, na verdade, era preciso uma resposta nacional solidária para esse tipo de situação que a gente viveu. Você viu na sociedade, sim, alguns movimentos, mas veio de baixo para cima. De cima para baixo, não houve nenhum gesto de solidariedade. Eles continuam se comportando como se nada tivesse acontecido. Então, eu acho muito difícil, diante de um mundo em transição, diante de uma pandemia com essas dimensões, e as pessoas continuarem achando no poder que tudo será como antes, que houve apenas uma interrupçãozinha porque passou um vírus por aí.
Discurso de Bolsonaro em setembro na ONU – A passagem dele pela ONU foi uma passagem em que ele se transformou para o mundo numa figura exótica. A credibilidade nacional, no que depender dele, ficou muito abalado. Os investimentos, no meu entender, tendem a cair também, porque ele não somente mentiu, não, ele foi também o dínamo de uma instabilidade muito grande no país. Então, é difícil você pensar em investir num país onde há perigo de um golpe, onde o presidente participa de manifestações em que se fala de intervenção militar. Todos eles sentem a instabilidade no ar. Então, esse discurso dele na ONU marcou uma situação muito difícil, porque você já tem a questão ambiental, que isolou muito o país, e acrescentou uma outra questão, que é a questão da pandemia. Ele rompeu o código de honra da ONU, ele foi o único não vacinado a participar do encontro. Ele desafiou, praticamente, a perspectiva da vacinação. E ele se transformou também num símbolo internacional do negacionismo. Então, embora o Brasil tenha avançado no nível da vacinação, independente dele, tem avançado, mas como é que você pode também acreditar num país liderado uma pessoa que nega duas realidades acachapantes? Uma é a pandemia, que só no Brasil já matou 600 mil pessoas, e outra é o aquecimento global, que é um ponto de referência dos eventos extremos (na natureza) que estão produzindo grandes estragos no mundo. Se você parte da negação de dois fenômenos dessa natureza, quem que vai acreditar em você para investir no seu país? É um país em que a liderança nacional está afastada das realidades mais elementares, em um universo próprio, entende? Um universo paralelo.
Crise hídrica – Quando você observa o Brasil no conjunto, o país está secando. Em três décadas nós perdemos 15,9% da nossa superfície de água. O Pantanal perdeu 29% das águas. Então, tudo isso mostra que nós estamos vivendo um processo cada vez mais difícil. E isso se acrescenta também ou é potencializado pelo fenômeno do aquecimento global. Então, o Brasil precisa se adaptar a essa nova situação. Por isso que eu estou tentando até evitar esse conceito de seca, e tentando trabalhar com conceito mais de estiagem, não é um relâmpago no céu azul. Quando a gente fala em seca, se chover, resolve. Não resolve mais. E até pode chover, tem chovido, mas não está chovendo mais o necessário. Então, eu acho que, primeiro aspecto, a gente tem que tentar romper um pouco a dependência da produção de energia hidrelétrica. A gente tem que avançar um pouco mais na eólica, na solar, em todas as formas de energia chamadas alternativas. Na eólica, por exemplo, o Nordeste hoje não tem grandes problemas energéticos, porque grande parte da matriz no Nordeste já foi alterada. O outro aspecto fundamental é: nós vamos aceitar perder a nossa água? O que nós vamos fazer com as nascentes? Vamos protegê-las ou deixar que elas continuem sendo destruídas? O que nós vamos fazer com as matas ciliares? Nós vamos protegê-las, replantá-las ou deixar que elas não existam mais? Isso tudo precipita o caminho do país para um deserto. Não no deserto completo, mas um país já empobrecido em recursos hídricos. E você sabe que sem a água, além do problema essencial que nós temos de energia, outros setores da economia vão degringolar. Por exemplo, a agricultura, que depende enormemente da água. É preciso mudar completamente o comportamento em relação à defesa das nascentes, à proteção, a um consumo mais racional, entende? O governo foi incapaz de fazer campanhas para consumo mais racional da água. Você pode até chegar ao racionamento, mas em São Paulo já se começa a ver desabastecimento. E o que o Bolsonaro fez foi dizer: “Não tomem banho de chuveiro quente”. Ou então: “Não andem de elevador, andem de escada”.
Termelétrica GNA no Porto do Açu e energia solar em Campos – Eu acho que não só tem que aproveitar para ajudar o país, como para ajudar a própria Campos. Ela pode ser uma cidade muito mais rica, muito mais próspera, se ela tomar esse caminho. Se o caminho dela é por uma energia mais limpa, ela está colocando um pé no futuro. Então, é necessário que ela se disponha a isso. Não sei qual é a posição da política dominante na cidade, se ela vai ter capacidade de compreender isso. Agora, quanto ao solar, eu acho que esse potencial também pode ser visto no caminho da descentralização. Em muitos lugares do mundo, o solar é visto também como um espaço onde a produção de energia não é mais centralizada. Cada um dentro dos seus limites, cada grupo, vai produzindo sua energia. O próprio George Bush (ex-presidente dos EUA), num determinado momento do governo dele, financiou a energia solar em residências das pessoas. Anteontem, eu estava andando pelas ruas de Chapecó (em Santa Catarina) e vi um anúncio: “Compre energia solar, instale energia solar na sua casa; você vai pagar por prestação o mesmo que paga na conta de luz hoje, e em três anos você vai, de uma certa maneira, amortizar, acabar com essa dívida”. Em três anos, passa a ter a energia de graça, e durante três anos você paga exatamente o que paga na conta de luz. E é muito melhor, porque você descentraliza, entende? Agora, se Campos tem esse potencial, era preciso que o Governo do Estado, o próprio Governo Federal, o BNDES, tivessem essa visão e abrissem uma linha de financiamento para as pessoas terem a sua energia solar instalada.
Saldo da CPI da Covid perto do fim – Essa CPI tem uma característica um pouco diferente das outras. Ela tratou inicialmente de um tema que todos já sabiam, que era a maneira como o governo conduziu o combate à pandemia. Ela denunciou o negacionismo do presidente da República em várias etapas, até o negacionismo que foi o mais importante para o momento da CPI, que em torno da compra de vacina. Ele resistia à compra de vacinas, resistiu à compra de vacinas do Butantã (Coronavac), e a CPI funcionou como instrumento de pressão para que ele apressasse o processo de imunizar a população brasileira. Eu acho que, nesse sentido, ela teve um papel importante. Ao longo do caminho também, ao denunciar esse processo de negação do presidente da República, processo de negação que tem várias etapas. Ele negava a importância da pandemia, em determinado momento uns bolsonaristas negavam até a existência dos mortos. Eu vi uma mulher, por exemplo, uma vez dizendo que estavam enterrando os corpos com tijolos dentro, que não havia morto por Covid. Depois, começaram a admitir os mortos, mas passaram a questionar o número dos mortos: “Ah, existem mortos, mas vocês estão aumentando o número, eles estão dando como morte por Covid gente que morreu de outra coisa”. E progressivamente. Depois, a vacina. E como o presidente precisava negar a pandemia, porque ele achava que a pandemia ameaçava o governo dele, ao invés de compreender que era uma realidade e tratá-la, ele procurou uma bala de prata, que era a hidroxicloroquina. É uma forma de negar também a pandemia: “Eu tenho um remédio que resolve isso”. Na verdade, nós sabemos que não existia, não existe remédio que resolve isso. Todo nosso investimento teria que estar voltado, todo investimento emocional, político, até financeiro, para a vacina. Era a única maneira que existia de deter o processo de pandemia. Com todas as limitações, era a única maneira. E o presidente da República não aceitou isso. Então, a CPI serviu, até esse ponto.
“Quadrilhas” na compra de vacinas – Quando a CPI começou a denunciar as hesitações no campo da vacina, ela começou a denunciar também as dificuldades que o presidente da República teve em negociar com empresas estabelecidas internacionalmente e com capacidade de negociação regular, como a Pfizer, por exemplo, e as várias quadrilhas que estavam tentando vender outras vacinas por mecanismos completamente diferentes. Então, foi um outro aspecto que a CPI revelou.
Prevent Senior “levou à morte de muita gente” – Finalmente, a CPI chegou a um aspecto também importante, que está associado ao negacionismo e à busca de uma bala de prata: o caso da Prevent Senior, que foi a tentativa de levar a tese de que era possível resolver essa questão com um remédio, um kit especial que acabaria com a doença. Isso é um problema sério, levou à morte de muita gente, levou à demissão de alguns médicos, levou ao desespero de muitas famílias. Então, eu acho que a CPI tem condições de denunciar o presidente por crime de responsabilidade e outros crimes comuns. Neste sentido, a CPI cumpriu o seu papel.
Arthur Lira segura impeachment, mas quer Bolsonaro frágil – Acho muito difícil. Eu acho que ele (Lira, presidente da Câmara Federal) quer, na maior parte do tempo, manter o Bolsonaro frágil. Quanto mais ameaças de impeachment houver, mais ele valoriza o poder que ele tem de pedir ou não o impeachment. E ele vai tentar valorizar esse poder obtendo do presidente uma série de vantagens, obtendo do próprio poder uma série de vantagens. Uma dessas vantagens é o chamado orçamento secreto. Na verdade, é a emenda de relator, alguns milhões, talvez até mais, bilhões, que eles possam distribuir entre o grupo que não só apoia o governo, como apoia o Artur Lira. A possibilidade de ter dinheiro para distribuir e fazer as próprias campanhas, as próprias políticas, é tudo o que eles querem, entende? E, simultaneamente, na medida em que o governo se enfraquece, ocupar mais espaço na administração para fazer também a sua política. A eles (do Centrão) interessa um Bolsonaro fraco na maior parte do tempo, para eles poderem realmente realizar a sua política, que é uma política, evidentemente, de interesse fisiológico. Que só pode ser negada quando eles sentirem que existe uma pressão irresistível contra o Bolsonaro nas ruas e no próprio meio político. Então, aí eles abandonam o barco e diz que nunca apoiaram ele realmente, entende? Eles são Lula ou eles são aquele outro que virá para o poder.
Nostalgias de Bolsonaro e Lula – A polarização representa, na verdade, algo muito diferente de supor que sejam dois polos idênticos. São muito diferentes em qualidade. Eu acho que o Bolsonaro é inigualável na sua incapacidade de governar o país. Agora, eu vejo os dois como duas nostalgias. O Bolsonaro se apresenta como uma nostalgia do período militar. Ele sempre sonhou com aquele período militar, sempre sonhou com aquele tempo mais tranquilo do governo militar, ele sempre sonhou em recuperar aquele momento. Ele olha muito para aquele momento. Uma retropia (retorno a um passado mitificado, que nunca existiu de fato, do qual se selecionam só algumas partes), entende? Ele olha aquele passado como se aquele momento da ditadura fosse um momento em que tudo ocorria muito bem. Por seu lado, o Lula, não sei como ele vai se apresentar como candidato. Até o momento, ele tem falado muito na necessidade de voltar aos tempos em que ele era presidente da República, aqueles bons tempos em que ele era presidente da República. Na minha opinião pessoal, não existe nem volta ao período militar, como Bolsonaro sonha, nem existe volta aqui aos bons tempos com os quais o Lula sonha. São, na verdade, duas nostalgias. Uma, um pouco mais atrasada que a outra; mas duas nostalgias. Seria interessante que o próximo presidente da República ou que as eleições brasileiras tivessem olhando para frente, para um projeto de futuro do Brasil. E quando eu digo um projeto de futuro, que levasse em conta essas alterações que houve no mundo nesses últimos anos. Alterações que escaparam completamente do Bolsonaro, que é obtuso. Mas escapam também ao Lula de uma certa maneira.
O que seria o novo governo Lula, 13 anos depois, com o país em crise e sem contexto internacional favorável? — Eu sou um pouco distante dele, eu leio algumas coisas e consigo ver, até o momento, que ele apresenta para a sociedade uma espécie de volta àqueles tempos. Mas, as conjunturas nacionais não dependem da vontade de um homem, elas são produtos de processos históricos mais profundos e muito mais complexos. Portanto você vai viver uma conjuntura que eu diria basicamente diferente daquela. E como, até o momento, ele promete aquilo que aconteceu no passado, eu fico sem saber como ele vai fazer, o que ele vai fazer diante dessa nova realidade. Primeiro, eu prefiro esperar que ele tome contato com essa nova realidade e fale qual é o programa dele em função dessa nova realidade, entende? Por exemplo, o meio ambiente. Será que ele tem consciência de que a importância da questão ambiental aumentou muito em relação àquele período em que ele foi presidente? Ele estaria disposto a aceitar? Ele sempre teve um certo pé atrás com esse tema. Não tanto quanto Bolsonaro, evidentemente. Bolsonaro é inigualável. Mas, será que ele está mudado?
Lula e o mundo digital – Por exemplo, esse mundo digital, essas transformações digitais, que são importantíssimas. No governo dele (de Lula), eu mesmo combati o projeto deles de inclusão digital, levado pelo PSB, na época, que era um projeto esdrúxulo: levar ônibus aos bairros, ônibus comprados a um preço exorbitante, para mostrar computador às pessoas. Esse tipo de inclusão digital era uma balela. Qual é a visão que existe de colocação no Brasil nesse mundo digital? Eu não sei como, porque a experiência que eu tenho com o PT nesse particular de comunicações, foi negativa. Eu era chamado de traidor, porque eu fui um dos defensores da quebra do monopólio das telecomunicações. Me lembro que, num congresso do PT que eu fui, as pessoas falavam: “E o meu telefone? Você está prometendo telefone para as pessoas”. E parecia uma coisa leviana você dizer que a quebra das telecomunicações traria telefone para um número maior de pessoas. Hoje, eu te diria que até eu, que era favorável, fico surpreso com o número de pessoas que têm telefones no Brasil e com o avanço dessa tecnologia.
Decadência de Bolsonaro como caminho à terceira via – O processo de decadência do Bolsonaro, eleitoral, não chegou ainda ao seu limite. Limite que eu diria, por exemplo, é acontecer o que aconteceu com o Crivella (ex-prefeito do Rio, que perdeu a reeleição no segundo turno para Eduardo Paes). É a pessoa se desmoralizar completamente como governante e talvez ficar arriscado no segundo turno. Então, uma grande possibilidade da terceira via existir e competir é precisamente a decadência do Bolsonaro. Crivella foi ao segundo turno, mas era facilmente derrotável. Qualquer pessoa que fosse ao segundo turno com Crivella, venceria. Eu tenho a impressão de que pode acontecer com o Bolsonaro, de ele não ir ao segundo turno, porque as crises que sucedem no Governo Federal são mais complexas, não é? São mais duras. Por exemplo: a situação econômica, pega mais. Então, existe uma possibilidade de o Bolsonaro perder energia nesse processo, progressivamente. Responsável que ele é pela condução do país e incapaz como ele é de dar solução a esses problemas todos que nós estamos vendo, é possível que um outro candidato possa ameaçá-lo. E, ameaçando, possa derrotá-lo, indo para o segundo turno. E, uma vez indo ao segundo turno o Lula contra um candidato que não seja o Bolsonaro, pode acontecer alguma coisa também.
Eleição a governador do Rio – Na verdade, em relação ao Rio, eu ando meio defasado. Eu acompanho menos o Rio do que eu deveria acompanhar. O governador (Cláudio Castro), eu não o acompanho muito. Sei que existe, tem um nome, deve estar fazendo uma campanha típica dos governadores, de conquistar prefeitos, de fazer seus votos. Mas, eu não eu não acompanho o momento, não me interesso, eu não consigo ler nada sobre ele, porque, nas coisas que eu leio, o nome dele não aparece. Eu não vejo nada a respeito dele, entende? Eu tenho visto a movimentação do Marcelo Freixo (pré-candidato a governador pelo PSB). A minha experiência em eleições no Rio de Janeiro é de que, para sermos candidatos ligados à opinião pública, que dependem da opinião pública, a candidatura a prefeito no Rio é sempre muito mais promissora que a candidatura a governador. Eu acho que a capacidade de você tornar governador no Rio de Janeiro, estado com as características que tem, é muito difícil para um candidato urbano com um apoio dos setores mais esclarecidos da opinião pública, exceto quando ele consegue romper um pouco essas limitações e consegue ser um candidato não só popular na cidade do Rio de Janeiro, como consegue também avançar muito na Baixada Fluminense, na área metropolitana do Rio de Janeiro. Quando há essa presença forte e popular na área metropolitana, é possível confrontar um candidato tradicional. E candidato tradicional, para mim, é o clientelista, que utiliza o apoio dos prefeitos para poder se eleger.
Apoio dos Bolsonaro a Castro e o 7 de setembro – Olha, eu acho que um peso sempre tem. Mas esse peso vai depender também das circunstâncias. Hoje, eu te diria que tem um peso. Hoje, o Bolsonaro, efetivamente, leva mais gente para a rua do que todos os outros, tanto no Rio como no Brasil inteiro. Bolsonaro, por exemplo fez aquela manifestação do 7 de setembro, que foi uma manifestação, em termos de público, muito superior a qualquer outra que a esquerda faz ou até que a frente de oposição a ele faz. Agora, ele já não faria hoje a mesma manifestação que fez no 7 de setembro. Daquela manifestação para frente, ele já perdeu um nível de apoio, mesmo porque ele sugeriu, naquela manifestação, um desfecho que ele não podia dar. Ele teve que recuar, entende? E esse recuo já o isolou de um certo setor. Então, eu não sei. Eu acho que a condução da pandemia, a condução da economia, a crise se agravando no Brasil, a crise social se agravando, e um presidente tão insensível como ele, né? O Bolsonaro, ontem, vetou ajuda às mulheres pobres para suas necessidades mais elementares de higiene (de absorventes íntimos). Não se sabe até onde ele pode chegar em termos de isolamento. Eu diria que o apoio dele tem um peso, mas não sei como será no ano que vem. No momento, eu acho que ele ainda consegue contribuir com um candidato. Mas, eu não sei se essa contribuição vai se estender ao longo do tempo, depende do prestígio dele.
Apoio de Lula na eleição a governador – Eu acho que o Lula vai observar as chances de cada um. Ele vai ver como cada um cria sua própria força, e, dependendo disso, ele vai tomando as posições. Eu acho que, inicialmente, em termos mais abertos e tal, ele tende a apoiar o Freixo. E faz parte também de um entendimento nacional que envolve o PSB. Eu acho que, inicialmente, ele pode apoiar o Freixo. Agora, o que pode acontecer no futuro, é difícil dizer. Ele pode apoiar o Freixo, mas, num determinado momento, se ele sentir que existe uma correlação de forças diferente e que ele, como candidato a presidente da República, precisa assumir posições mais realistas, pode ser que ele assuma.
O que seria o governo Gabeira na cidade do Rio, quando perdeu a eleição de prefeito de 2008 para Paes, no segundo turno, por apenas 1,6% dos votos? – Olha, naquela época era uma projeção de um conjunto de pessoas, não é? Havia uma discussão, primeiro porque a campanha partiu de grupos discutindo programas. Então, surgiu um grupo discutindo saúde, um grupo discutindo educação, outro grupo discutindo urbanismo, outro grupo discutindo meio ambiente. Havia não só uma disposição na sociedade, como um conjunto de pessoas decididas a participar do governo. Eu tenho a impressão de que era possível fazer um bom governo ali, de acordo com o programa que a gente imaginava de transformar o Rio numa cidade mais habitável, de avançar no meio ambiente, na posição internacional das cidades, avançar no desenvolvimento da cultura, avançar no desenvolvimento da inteligência, um instrumento também econômico na cidade, abrir a cidade para processos de criação, trazer até gente do mundo inteiro. Naquela época já, e hoje mais agudamente, não importa muito certas empresas onde elas estão, desde que você tenha boas comunicações. Certas empresas de criação poderiam estar no Rio também. Então, era uma visão de uma cidade integrada ao mundo a partir do próprio prestígio que o Rio tem, e uma tentativa de solucionar os problemas sociais da cidade. Não sei se hoje eu conseguiria reunir uma equipe com aquela dimensão e perspectiva. E também não sei se veria na classe média e em vários setores do povo a mesma expectativa com a política que havia naquele momento. A política se degradou mais ainda.
Vida política encerrada? – Olha, se você entender a política como política eleitoral, sim. Mas se você entender a política como a participação nas questões coletivas, a crítica ou a aprovação de governos e de políticas de governo, a discussão dos temas nacionais, não. Eu permaneço, eu escrevo em dois importantes jornais brasileiros toda semana: uma vez por semana em “O Globo”, e de 15 em 15 dias no “O Estado de S. Paulo”. Escrevo sobre temas políticos. Da mesma maneira, o fato de eu ser, pela circunstância da pandemia, comentarista da Globo News, me coloca também como uma pessoa que fala sobre política. A própria resenha dos 25 anos da Globo News, no campo da política, eu apresentei. E, no ano que vem, é possível até que eu faça trabalho de jornalismo ligado à eleição. É possível.
Confira abaixo em vídeo a íntegra da entrevista de Fernando Gabeira ao Folha no Ar da manhã de sexta:
Publicado hoje na Folha da Manhã.
Com todo respeito a Gabeira, na minha opinião só em ele fazer parte do jornalismo da Globo e
da Folha de São Paulo ele perde a credibilidade.
Caro Cesar Peixoto,
A Globo News, há 25 anos, é um grande canal de notícias. Que ficou ainda melhor com o reforço de Gabeira, após ele deixar a política para voltar ao jornalismo. A Folha de São Paulo também é uma grande jornal. Mas, além de O Globo, o outro jornal no qual Gabeira atua como articulista, como ele deixa claro na entrevista e vc deve ter se embaralhado entre leitura e escrita, é O Estado de S. Paulo. Este, na minha opinião, o melhor jornal brasileiro.
Abç e grato pela chance do esclarecimento!
Aluysio