— E as contas de Rafael de 2020? Como diria o Bento Carneiro, vampiro brasileiro do genial Chico Anysio: “se lascou-se”? — abriu os trabalhos Ivan, após molhar a palavra na mesa de bar com o primeiro gole de Original gelada.
— É possível. Mas convém esperar para ver o que o TCE diz das alegações dele, de que a recomendação pela reprovação, que será decidida na Câmara Municipal, foi baseada em informações viciadas repassadas pelo governo Wladimir. Mas se o TCE confirmar o parecer, exigirá 2/3 dos vereadores de Campos para ir contra e aprovar. De volta ao poder no município, os Garotinho não conseguiram isso para aprovar retroativamente as contas de 2016 de Rosinha. Cuja anulação da reprovação pela atual Legislatura é um aborto jurídico. Mas o fato é que fora do poder, com seus pífios 13 mil votos na tentativa de reeleição a prefeito em 2020, quando ficou em quarto lugar no primeiro turno e quase foi ultrapassado pela estreante Natália Soares, do Psol, a situação do ex-prefeito agora parece muito difícil — respondeu Aníbal, com a garganta também já umedecida de cerveja.
— O vereador Marquinho Bacellar disse na tribuna da Câmara que, para o TCE reprovar no mesmo dia as contas de Rafael e aprovar as contas de Rosinha, “é só saber dar o milho à égua, que tem mágica; e o que tá chegando é milho para dar à égua”.
— Foi leviano e duas vezes desinteligente. Leviano porque, depois da prisão de vários conselheiros na operação Quinto do Ouro, o TCE foi saneado em 2017. O juiz de Campos Glaucenir Oliveira insinuou coisa semelhante, falando de “mala grande” para Gilmar Mendes tirar Garotinho da cana dura, também em 2017.
— Eu lembro. Foi pela operação Secretus Dommus e a última das cinco prisões de Garotinho. E olha que Glaucenir tomou um gancho do CNJ, a mando de Gilmar, pelo que falou, sem ter como provar, em um grupo de WhatsApp. O vereador falou publicamente. Mas você disse que ele foi leviano e teria sido duas vezes desinteligente. Desinteligente por quê?
— Porque divulgou fake news favorável aos Garotinho. O TCE só reviu uma única questão, relativa ao salário de Chicão, mas manteve sua indicação pela reprovação das contas de Rosinha. Bastava ler o blog do Arnaldo Neto, no Folha1, para ter acesso a jornalismo de verdade e não usar a tribuna legislativa para divulgar informação falsa em benefício dos seus inimigos políticos. E foi desinteligente de novo porque, ao defender Rafael, assumiu por tabela a “acusação” garotista de união entre os Bacellar e o ex-prefeito.
— Deve estar sendo mal orientado, como foi Rafael.
— Rafael, Ivan, talvez seja o sujeito de melhor caráter que foi prefeito ou prefeita de Campos nos últimos 25 anos. Mas também foi desinteligente e confundiu coerência com teimosia. Ele ignorou todos os conselhos para substituir alguns colaboradores mais próximos. Que até foram bem na campanha vitoriosa de 2016. Mas se revelaram um desastre no governo. E contaminaram este como a Covid, que terminou seus dias entubado em um leito de UTI.
— Fato, Aníbal. Governo não deve ser de áulicos, como os de Garotinho. Como não deveria ser uma patota de amigos, como foi o de Rafael. Mas ele também teve muito azar com as finanças, sobretudo em seu último ano de governo, com duas PEs zeradas, o que nunca tinha acontecido. Ele chegou a 2020 sem sequer ter Orçamento. Foi emparedado na Câmara, no final de 2019, pelo G8 liderado pelo vereador Igor Pereira, ligado aos Bacellar. E só conseguiu aprovar o Orçamento, com 20% de remanejamento, no início de 2020. O acordo foi costurado pelo então presidente da Câmara, Fred Machado, com o então deputado federal Wladimir.
— São as voltas que a planície dá. Esperto talvez seja o Caio, que só dá as caras por aqui em tempo de eleição. Nunca se elegeu, mas é sempre bem votado.
— E o Planalto?
— Em 1992, Collor sofreu impeachment por uma dúvida: usou ou não dinheiro de caixa 2 de campanha para comprar um Fiat Elba? Em 2016, Dilma sofreu o impeachment por uma dúvida: pedalada fiscal é ou não crime? Agora nós temos o relatório da CPI da Covid no Senado que pede o indiciamento do atual presidente por nove crimes. E deixou uma dúvida: Bolsonaro cometeu genocídio na pandemia, ou “só” crime contra a humanidade?
— Você não está defendendo a Dilma ou dizendo que o relator Renan é um cara sério, está?
— Quem finge ignorar a corrupção sistêmica do PT em seus 13 anos no poder, a catástrofe econômica do governo Dilma, ou que Renan é mais sujo que pau de galinheiro, merece ser levado tão a sério quanto quem afirma que Piquet foi melhor piloto que Senna, ou diz ter esperança de que algo que preste saia de Bolsonaro.
— Sim, a CPI certamente não é feita de anjos. E, bom lembrar aos do “Deus acima de todos”, Lúcifer era um anjo.
— No mundo dos homens, o que importa é que a CPI provou, com fartura de evidências e testemunhos, a culpa do governo e seus generais vendidos no incentivo à contaminação dos brasileiros para se atingir a tal imunidade de rebanho, na produção e distribuição de cloroquina a quem morria sem oxigênio, no combate a medidas não farmacológicas como uso de máscaras, no atraso doloso na compra de vacinas, na corrupção na compra de outras, nos experimentos humanos da Prevent Senior, que nada ficam a dever ao que os nazistas fizeram no campo de concentração de Auschwitz, sob comando do médico da SS Josef Mengele. Que, talvez não por acaso, morreria afogado nadando na praia de Bertioga, no Brasil.
— E o novo Auxílio Brasil de Bolsonaro com o Chicago Boy convertido em fura teto Paulo Guedes? Que causou a debandada de quatro secretários do primeiro escalão do ministério da Economia?
— Tiveram mais compromisso com suas biografias liberais do que Guedes. Como não teve com seu jaleco o ex-presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, hoje ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Tão colega de Mengele quanto o tal do Mauro Luiz de Britto Ribeiro, presidente do Conselho Federal de Medicina. Que teriam seus CRMs cassados se a medicina no Brasil fosse mais digna do juramento de Hipócrates do que do seu corporativismo.
— Dar assistência social a quem está revirando o lixo para ter de comer, é uma necessidade. Mas, como tudo nesse governo, é uma medida eleitoreira feita à galega.
— Exato. Dinheiro não nasce em árvore. Até porque a causa é justa, deveria ser tratada com mais responsabilidade e compromisso. O governo não aprovou a PEC dos Precatórios, para dar o beiço em quem tem dívidas a receber transitadas em julgado com a União. Nem tem coragem de tirar das tais “emendas secretas”, feitas por Bolsonaro para os deputados e senadores do Centrão roubarem bilhões à vontade. É o suborno pago com dinheiro público para não ser posto em votação um dos mais de 120 pedidos de impeachment do capitão.
— Bem, pelo menos Arthur Lira, líder do Centrão e presidente da Câmara, teve sua primeira derrota no Congresso, que barrou a PEC que queria colocar canga no Ministério Público. E sabe quem é o autor? O deputado Paulo Teixeira, do… PT!
— A vitória do MP, contra a união entre PT, Bolsonaro e Centrão, foi da sociedade. E, em nome dela, os doutores procuradores e promotores deveriam aproveitar a lição e instituir para ontem seu código de ética. Sua inexistência até hoje não é só um flanco aberto; é um absurdo!
— Mas e o Guedes? E o Guedesssh? — sibilou Ivan, como Caetano cantando “Qualquer Coisa”, com a boca molhada por mais um gole de Original gelada.
— Foi rebaixado. De Posto Ipiranga vendendo gasolina a R$ 7,50 o litro, a tesoureiro da campanha de Bolsonaro. A conta, com o aumento do desemprego e da recessão, será paga por todos nós — disse Aníbal, mirando a espuma restante no fundo do copo vazio.
Publicado hoje na Folha da Manhã.