O basquete, como a vida, para além do preto e branco

 

Embora ainda sem título, que disputará contra a excelente equipe do Boston Celtis, uma das melhores duplas de armadores já vista na NBA: o veterano craque Kyrie Irving e o gênio esloveno Luka Dončić, do Dallas Mavericks

 

Era terça, dia 28, quando à tarde chegaram pelos Correios as duas camisas da seleção da Croácia de futebol. Que comprou para si e ao primo materno mais novo, meio filho adotado pelo mais velho.

Uma camisa era a branca, salpicada do tradicional quadriculado vermelho. No padrão croata que o saudoso Bussunda chamava de “toalha de cantina”. A outra era a versão azul marinho do mesmo uniforme.

As duas, a pedido, vinham com o número 10 ao peito e às costas. Nestas, também estava o nome do craque, corretamente escrito, com acento agudo no “c”, que indica a palatização fraca na língua croata: Modrić.

Quem comprou as camisas tinha o jogador franzino, pequeno e narigudo, sem titubeio, como o melhor volante e um dos mais cerebrais meias que vira jogar desde que passou a acompanhar futebol. Como já o acompanhava há 44 anos, não julgava pouca coisa.

 

Modrić sob a marcação do seu então colega de Real Madrid Casemiro, nas quartas de final da Copa do Mundo de 2022, no Qatar, em que a Croácia eliminaria o Brasil

 

Acompanhava o basquete da NBA há menos tempo, 37 anos. Desde 1987, quando tinha 15, e a Band fez a primeira transmissão, ainda em VT, das finais de 1986. Que foram vencidas pelo Boston Celtics. Foi o terceiro e último título do seu astro, o ala Larry Bird.

Em 1987 e 1988, nos dois últimos títulos dos cinco dos Los Angeles Lakers do armador Earwing Magic Johnson, reconheceu seu time e ídolo na NBA. Negro, Johnson foi o antagonista de Bird, um típico red neck — como se designa nos EUA os brancos de origem pobre e do interior.

Na popularidade da oposição racial entre o ala dos Celtas e o armador dos Lakers, bem como pela exuberância técnica de ambos, não há exagero em dizer que uma decadente NBA foi salva naqueles anos 1980. Enquanto, fora das quadras, Bird e Johnson se tornaram grandes amigos.

 

Larry Bird e Magic Johnson na rivalidade de disputa racial que salvaria a NBA nos anos 1980, mas grande amigos fora da quadra

 

Quatro décadas depois, veria o Boston varrer na noite de segunda (27) o Indiana Pacers, pelo placar de 105 a 102. E, por 4 jogos a 0, vencer a final da Conferência Leste. Não mais com Bird, natural de Indiana. Mas com um quinteto muito homogêneo e nivelado por cima.

Entre o armador Derrick White, o ala-armador Jrue Holiday, o ala Jaylen Brown, o ala-pivô Jayson Tatum e o veterano pivô dominicano Hal Horford, a surpresa veio na escolha do MVP (“Most Valuable Player”, ou “Jogador Mais Valioso”) do Leste.

Não Tatum, considerado o melhor jogador do Boston desde que lá estreou como profissional, em 2017. Mas Brown, que em 2014 ouviu da professora: “Vou procurar você na prisão daqui a 5 anos”. Dez anos depois, como MVP do Leste, o jogador negro recebeu o troféu Larry Bird.

 

Jaylen Brown e Jayson Tatum formam a principal dupla do Boston Celtics

 

Dever de casa feito, o Boston e o mundo do basquete voltaram os olhos para a noite do dia seguinte, terça. Na qual o Dallas Mavericks, vencendo a Conferência Oeste por 3 jogos a 0, enfrentaria novamente o Minnesota Timberwolves.

Após eliminar por 4 a 3 o atual campeão Denver Nuggets, do revolucionário pivô sérvio Nikola Jokić, o Minnesota passou à final do Oeste com ares de favorito. E liderado por uma grande promessa, o explosivo Anthony Edwards, de apenas 22 anos.

 

Anthony Edwards e Nikola Jokić, antes de o primeiro protagonizar a eliminação do Denver Nuggets, atual campeão na NBA

 

Só esqueceram de combinar com o Dallas. E com sua dupla de armadores de qualidade poucas vezes vista na NBA: o veterano Kyrie Irving e o esloveno Luka Dončić. Preparado para encarar o Denver, o Minnesota embaralhou a vista com os Mavericks. Que abriram 3 jogos a 0 na série.

Após vencerem os três primeiros jogos, Dončić e Irving foram também vencidos. Sobretudo por conta da atuação apagada do segundo no jogo 4. No qual Edwards e o ala-pivô Karl-Anthony Towns comandaram a primeira vitória do seu time na série.

Quem assistia de casa, mesmo torcendo pelo Dallas, por conta do basquete diferente de Dončić, escasso em explosão e abundante em técnica, passou a torcer pelo Minnesota do explosivo Edwards. Porque o jogo estava tão bom, mas tão bom, que merecia outro.

Como a Eslovênia de Dončić, a Sérvia de Jokić e a Croácia de Modrić compunham a antiga Iugoslávia, usava a camisa azul do terceiro que recebera pelos Correios, por acaso, naquele dia. Para, trajado do futebol croata, acompanhar o gênio esloveno do basquete nos EUA.

Marechal Josip Broz Tito participando da segunda sessão do Conselho Antifascista de Libertação Nacional da Iugoslávia, em novembro de 1943, contra a invasão da Alemanha nazista

Sempre admirou aquele povo balcânico, ao norte da Antiga Grécia. Que ajudou a formar com os dóricos e os macedônios de Alexandre. Como sua resistência ao nazismo de Hitler na II Guerra, sob o comando de Tito. Comunista que não se submeteria depois à União Soviética.

Após a morte de Tito, em 1980, a Iugoslávia se esfacelaria em guerras fraticidas nos anos 1990. Mas ainda via no presente essa história milenar e secular refletida numa maneira comum de se expressar pelo esporte. Embora incomum aos demais.

Como um jogador de futebol sem explosão, velocidade ou força, como o croata Modrić, pode ter sido o único a furar o monocórdio revezamento entre o argentino Lionel Messi e português Cristiano Ronaldo, na década passada, como melhor boleiro da Terra?

Como dois jogadores de basquete sem explosão, velocidade ou impulsão, como o sérvio Jokić e esloveno Dončić, podem ter tanto destaque num esporte inventado nos EUA, dentro dos EUA? E  que tem no voo de Michael Jordan a sua referência mais elevada?

Quem realmente duvida que o esporte, enquanto expressão também de arte, tem tanto ou mais de intelecto e cultura do que de força física, que veja o primeiro tocar uma bola com os pés. Ou os outros dois com as mãos. E depois dê o braço, ou a perna, a torcer.

Após dar a camisa azul de Modrić ao primo na quinta (30), vestiu a branca para assistir à noite ao jogo 5 entre Dallas e Minnesota. Enquanto refletia se não era jogo de cena a fala de Dončić após o jogo 4: “Acho que a culpa da derrota é minha. Não consegui dar energia suficiente”.

A cena se revelou na abertura do jogo 5. Com apenas 2 minutos e meio, Dončić já havia marcado 10 pontos. Aos adversários e companheiros, deu de cara uma prova da tal energia. Ele terminaria com 20 pontos o 1º quarto. No qual o time do Minnesota, junto, marcou 19.

No placar de 35 a 19, se a vantagem do Dallas ao fim do 1º quarto era confortável, quem a ampliou no 2º foi Kyrie Irving. Quando anotou 15 pontos. Para partir ao 3º quarto com 69 a 40. Nos quais Dončić e Irving marcaram, juntos, 44. Sozinhos, bateram todo o Minnesota.

A vantagem chegaria a ultrapassar os 30 pontos, mas seria reduzida com tentativas de reação do Minnesota, comandadas tardiamente por Towns e Edwards. Nada que impedisse a vitória do Dallas pelo inapelável placar final de 124 a 103. Tanto quanto o de 4 jogos a 1 na série.

Se Dončić e Irving empataram ao marcar, cada um, 36 pontos na conquista da Conferência Oeste, não houve na eleição do MVP a dúvida do Leste entre Jaylen Brown e Jayson Tatum. Também de cara, o anúncio nos EUA foi claro: “O MVP é da Eslovênia”.

Assim como Brown havia recebido três dias antes o troféu Larry Bird, o branco Dončić recebeu o troféu Earwing Magic Johnson. O basquete, como a própria vida, guarda sempre arremessos mais precisos a quem é capaz de distinguir além do preto e branco. Que venham as finais!

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

fb-share-icon0
Tweet 20
Pin Share20

Deixe um comentário