Adriano Moura — Três poemas pretéritos imperfeitos

 

“O par de sapatos”, óleo sobre tela de Vincent Van Gogh, Paris, 1886

 

Adriano Moura, poeta, dramaturgo, romancista, professor de Letras do IFF e membro da Academia Campista de Letras (ACL)

Poemas pretéritos imperfeitos

De Adriano Moura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

por que temer as hienas

 

preparo a massa dos dias

com a farinha do trabalho.

aqueço o forno enquanto

ponho toalha pras hienas

que chafurdam seus focinhos

na prataria da mesa.

disfarçam a fome de carcaças

com o nó bem feito das gravatas.

da cozinha soo

a risada frustrada

sabendo que na sobremesa

das hienas, serei eu:

o homem que trabalha,

a carcaça triturada.

 

 

Saudade: SÓ

Olho o vazio de teus sapatos
Recordo as noites em que pisavas
Beijava-me a testa, te recolhias
À solidão noturna do quarto.

Levo-te flores no aniversário
Digo o verso epitáfio sozinho
Como montanha imóvel se sente.

Mas SÓ se tem saudade dos vivos.
Dos mortos, é o profundo silêncio
que se preenche não com o passado

Com o presente.

Se pode contar a história de um homem
Depois de sua morte.
Por isso levanto agora este tapete de memórias
Em que pisaste.
Quanta poeira, meu Deus, escondeste de mim todo esse tempo!

 

Corpus Christ

 

Há dias junto folhas

serragens e sementes

tinjo pedras e areias

pra confecção deste tapete

que hoje pisas sem cuidado.

Meu corpo é o pão

negado aos pobres.

Meu sangue

o vinho que bebes

depois do responsório em procissão.

Cultuas minha morte

e esqueces que voltei.

Sou este que te olha

sem sapatos nem camisa

sem telhado, sem chão.

 

Folha Letras da edição de hoje da Folha da Manhã

 

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