Carmen Gomes e Sylvia Paes — Oralidade no Folha Letras

 

Livro infantil “Ururau Pançudo” e suas criadoras, as professoras de História, escritoras e integrantes da Academia Campista de Letras (ACL) Carmen Eugênia Sampaio Gomes e Sylvia Paes

 

 

Por Carmen Eugênia Sampaio Gomes e Sylvia Paes

 

A literatura oral, o contar histórias, sejam elas lendas, contos, histórias de família, é como a varinha mágica que nos remete a um tempo espaço diferenciado e único, um momento de encantamento e afetividade. É essa oralidade que primeiro toca as crianças em seu mundo de fantasias. São elas que se transformam em ururau para nadar no rio, voam em dragões e comem doces junto com João e Maria. Enquanto crianças vivemos esse universo sobrenatural de encantamento e de magia que carrega o mundo real sem a sua crueldade.

No Paleolítico o homem produziu esculturas, pintou paredes de cavernas e dançou ao redor do fogo. Ele se tornou nômade no neolítico e construiu habitações fixas em áreas férteis junto aos rios, domesticou animais e grãos, cresceu demograficamente. Iniciou trocas comercias, a divisão do trabalho e, por conseguinte, a interpretação do místico e do sagrado. Os cultos agrários foram a origem das festas populares com danças e cânticos incorporando máscaras e outros adereços. Para Nitzsche “a arte é a única justificativa possível para o sofrimento humano”. (apud Murray 2005)

Segundo documento da Unesco o Patrimônio Cultural Imaterial representam as práticas, as expressões e os conhecimentos técnicos de um grupo social, pelos quais os indivíduos se reconhecem como sendo parte desse grupo. Esse patrimônio que se transmite de geração para geração está constante recriação de acordo com a visão de mundo de cada um desses grupos. Portanto esse patrimônio é flexível uma vez que está em constante processo de mutação de valores. (Guidolin e Zanotto 2016:79)

É na infância que nossas varinhas mágicas, muitas vezes feitas de um galho qualquer, têm o poder da transformação de imaginação em “realidades” únicas e individuais. Nossas bonecas falam, o lobo mal está escondido atrás da porta, animais falam. A literatura trás na sua essência a capacidade de transformar tudo isso em objetos de afeto depois da chupeta e mamadeira. A literatura oral remete a momentos de transformação e encantamentos, o alumbramento do momento mágico. (Rios 2013)

A oralidade como patrimônio imaterial podem ajudar aos alunos a construir a sua história, a história da família, a história da nação. Os registros de memória são objetos de memória que contextualizam o tempo e o espaço. A memória popular está contida na memória familiar por meio das festas e podem ser também memórias coletivas. A memória pública está nos locais consagrados à preservação da memória. (Del Priore e Horta 2005)

 

Importância da memória para formação da identidade

Os estudos da neurociência tratam a memória como um fenômeno resultante de um sistema dinâmico e assim se associam as ciências humanas e sociais.

Para Pierre Janet (apud Le Goff, 1996 : 242) o ato da memória está diretamente ligado ao comportamento narrativo, sendo a linguagem produto das relações sociais. Primeiro se fala, depois se escreve, diz Henri Atlan, sendo a escrita uma extensão da memória. “Isto significa que antes de ser falada ou escrita, existe uma certa linguagem sob a forma de armazenamento de informações na nossa memória.” (Atlan, 1972 : 461 apud Le Goff, 1996 : 425)

Contudo a memória pode sofrer perturbações causadas pelas nossas emoções, por exemplo, que podem apagar certos detalhes ou por outro lado dar destaque demasiado a certos fatos. Também pode sofrer pela afasia[1] ou pela amnésia a perda de referenciais importantes.

Transformações significativas acontecidas na memória coletiva possibilitaram o aparecimento da escrita. Ou seja, para não se perder ou para evitar transtornos na memória social do grupo, houve a necessidade da produção de símbolos que dessem sentido à memória coletiva, à escrita. E a memória coletiva foi então gravada em muros das cidades e dos templos para sua perpetuação.

Na sua dimensão política, o patrimônio é a memória que revive é uma história remanipulada, reprimida. Os documentos antigos sejam eles escritos, iconográficos, arquitetônico, paisagem saberes e fazeres, a própria oralidade é uma herança comum. Dizem Mary Del Priore e Maria de Lourdes Horta (2005) que: “A memória é a faculdade de lembrar e conservar estados de consciência passados e tudo quanto a ele está relacionado”.

 

Leitura e identidade: Coleção “Tô Chegando”

Chegou o momento de contarmos um pouco de o nosso caminhar acerca da contação de histórias das investidas referentes à preservação da nossa cultura. Aliadas às nossas memórias locais, ao nosso patrimônio material e imaterial e, portanto, a nossa história e identidade enquanto cidadãs do maior município do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes, nos lançamos nessa aventura de promover para estudantes da educação básica material para didático que comtemple um pouco dessa nossa história e tradição cultural.

Em 2012 sentindo a dificuldade de colegas professores de história, em obter material apropriado para o trabalho da história local, resolveram escrever para os pequenos. Então nasceu a Coleção “Tô Chegando” e o primeiro livro “Ururau Pançudo” foi lançado na Bienal do Livro de Campos em 2014. Todos os livros da Coleção “Tô Chegando” tratam do patrimônio cultural local/regional com ênfase no patrimônio intangível, contudo não deixam de abordar o patrimônio ambiental e material, sobretudo o arquitetônico.

Podemos dizer que os livrinhos têm marcas identificadoras; toda coleção tem ilustrações de Alício Gomes; tem links com imagens dos personagens; as histórias sempre terminam à noite por entendermos que o amanhã nos traz sempre uma nova história; ao final da história mantemos um glossário que sempre traz a linguagem regional; também um exercício é proposto para fixação dos saberes adquiridos com a leitura.

Bem, parece que foi ontem, mas já se passaram 10 anos do lançamento do primeiro livro da coleção “Tô Chegando”, Ururau Pançudo. Então, as autoras resolveram comemorar de forma a envolver a comunidade escolar. Dessa forma, fomos em busca de oportunidade e ela chegou quando do lançamento do programa Mais Ciência na Escola, promovido pela secretaria municipal de Educação, Ciência e Tecnologia (Seduct), que disponibilizou a área de Ciência Humana e de Interdisciplinaridade. Foi neste contexto que o projeto “Ururau Pançudo: a lenda continua…” foi agregado.

Neste momento, encontramo-nos em fase de escrita da lenda (continuação) por parte dos estudantes. Aguardamos o encaminhamento das três (03) melhores histórias de cada unidade escolar. As três (03) histórias escolhidas pela comunidade escolar serão analisadas por um grupo de especialistas da Seduct e das autoras do livro. Dessas (03) histórias, sairá apenas uma que vai disputar com as demais produções das outras escolas.

Propomos que os estudantes envolvidos no projeto pudessem valorizar o patrimônio cultural regional/local, descrevendo o espaço vivido e as características do território. A narrativa deve ser focada na realidade deles, oportunizando a observação e analise da comunidade. A questão de pertencimento e de identidade está em pauta.

A produção que ganhar o primeiro lugar terá sua história ilustrada pelo profissional Alício Gomes, responsável pela produção visual da coleção “Tô Chegando”. E terá a sua disponibilização em forma de e-book, além de outros prêmios.

 

Considerações finais

Enquanto componentes do Grupo Unsum, estamos há 10 anos na caminhada objetivando promover a valorização da cultura e da tradição local. Entendemos que não se pode amar uma história e uma tradição se não as conhecemos. Refletir que num mundo globalizado e cheios de atrativos efêmeros e transitórios de valores, buscar na memória do coletivo próximo, dos grupos em que pertencemos, os elementos que nos unem e tecem identidades específicas de dessa comunidade é de vital importância. Um povo sem memória é um povo sem alicerce e facilmente manipulado pelos interesses de grupos economicamente globalizantes, que visam apenas os interesses das grandes empresas. E assim, nós nos tornamos presas fáceis senão nos apegarmos aos nossos valores, tradições e cultura e nos fortalecermos enquanto grupos.

 

Referências

GUIDOLIN, Camila e ZANOTTO, Gisele. Patrimônio Imaterial. In: Mapeamento do Patrimônio Imaterial de Passo Fundo/RS. Passo Fundo: Projeto Passo Fundo, 2016.

HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Os lugares de memória. Memória patrimônio e Identidade. Ministério da Educação: Boletim 4, abril 2005.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas/São Paulo: Editora da UNICAMP, 1996.

MURRAY, Charles. As Festas Populares como objetos de memória. Memória patrimônio e Identidade. Ministério da Educação: Boletim 4, abril 2005.

RIOS, José Arthur. Objetos não são coisas. Rio de Janeiro: José Arthur Rios, 2013.

SANTOS, Isabela de Oliveira.  A Contação de Histórias da Educação Infantil. Monografia apresentada ao Centro de Ciências do Homem (CCH), da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, como requisito para obtenção do título de Licenciatura em Pedagogia. Campos dos Goytacazes – RJ junho2018.

[1] É a perda do poder de captação de expressão da palavra ou símbolos que podem ocorrer em casos de lesões em centros celebrais, mas que não acontecem por defeito ou perda auditiva ou do mecanismo fonador.

 

Folha Letras da edição de hoje da Folha da Manhã

 

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