Opiniões de poesia — José de Anchieta

 

O momento mais prazerozo das quartas, quando a política cede espaço neste blog à poesia, não poderia falhar justamente hoje, quando termina a reprodução, neste “Opiniões”, dos textos escritos para o hoje extinto “Cantos”, do qual participei ao lado do professor Adriano Moura e da antropóloga Fernanda Huguenin, ambos também poetas. Não por motivo diverso, chegou a vez  do artigo que, mesmo no “Cantos”, já se tratara de republicação, posto ter sido originalmente escrito a Folha Letras, página semanal dedicada à Literatura que este misto mal ajambrado de blogueiro, jornalista e poeta inaugurou nas contracapas de sexta da Folha Dois.

Se, como HAL nos ensina em “2001 — Uma Odisséia no Espaço”, para renascer, é preciso morrer, nada mais apropriado que terminar aqui essa série de republicações com aquilo que deu início à poesia brasileira…

José de Anchieta — Primeira poesia

“Semeador de esperanças e quimeras,

Bandeirante de entradas mais suaves,

Nos espinhos a carne dilaceras:

 

E por que as almas e os sertões desbravares,

Cantas: Orfeu humanizando as feras,

São Francisco de Assis pregando às aves…”

(Do soneto “Anchieta”, de Olavo Bilac)

Anchieta escreve o poema “Da Virgem Santa Maria Mãe de Deus” na areia da praia, quando era refém dos índios tamoios, óleo sobre tela de Benedito Calixto

 

Página semanal dedicada à Literatura, sempre na contracapa das edições de sexta da Folha Dois, a primeira edição da Folha Letras apresentava suas armas com alça e massa de mira alinhadas para “nunca perder de vista a necessidade das pontes entre você, leitor, e os grandes escritores e obras, do Brasil e do mundo — ‘os mais fortes heróis que na terra viveram’, como evocou o grego Nestor em outra planície, a de Tróia”. Opção influenciada pelos versos com que Homero (séc. 8 a.C.) fundou a Literatura, este espaço a ela dedicado inicia hoje, em publicações alternadas, o contato direto com os maiores poetas brasileiros, herdeiros do pioneiro grego, mas com certidão de nascimento lavrada na prosa de Pero Vaz de Caminha (1450/1500), em sua carta a El Rey de Portugal, narrando o achamento da Terra de Vera Cruz (mais tarde Brasil) pela expedição de Pedro Álvares Cabral (1467 ou 1468/1520 ou 1526), a 22 de abril de 1500.

Em que pesem manifestações autóctones, anteriores e paralelas ao descobrimento e à colonização pelos portugueses, o marco zero para nossa cronologia da poesia brasileira será determinado pela introdução e gradual prevalência da língua de Luís de Camões (1517 a 1524/1580), que nos bate ao palato há meio milênio. Foi com Camões, aliás, que debutaria em versos nosso país, ainda com seu primeiro nome, mas tendo já citada a madeira nativa que depois o batizaria em definitivo:

 

Mas cá onde mais se alarga, ali tereis

Parte também, co’o pau vermelho se nota;

De Santa Cruz o nome lhe poreis;

Descobri-lo-á a primeira vossa frota.

(“Os Lusíadas”, Canto X, 140 a 144)

 

A língua portuguesa e sua (talvez até hoje mais alta) expressão em poesia não se fundamentariam sem o Brasil na argamassa.

Na nação (a brasileira) que ainda engatinhava, os primeiros passos da poesia seriam dados pelo jesuíta José de Anchieta (1534/1597). Nascido na ilha de Tenerife, maior do arquipélago das Canárias, era espanhol, com linhagem paterna na nobre família basca Antxeta (Anchieta), e de cristãos-novos (judeus convertidos) por parte de mãe, o que o levou a estudar em Coimbra, já que a Inquisição Católica, na Espanha, era menos tolerante do que a de Portugal quanto a origens hebréias. Com 20 anos incompletos, veio como missionário ao Brasil, onde morreria 43 anos depois, não em antes ser um dos fundadores da cidade de São Paulo e desempenhar papel fundamental na pacificação e catequese dos índios em todo litoral da nova colônia portuguesa, papel que os historiadores até hoje se dividem se de proteção ou dominação.

Dúvida também há sobre a veracidade de uma passagem narrada pela tradição. Deixando-se fazer refém da Confederação dos Tamoios, para pôr fim à guerra destes contra os portugueses, Anchieta teria escrito com um galho, na areia de uma praia do litoral sul paulista, os versos do seu “Poema à Virgem”, memorizando-os no cativeiro para, depois de liberto, repassá-los ao papel. Talvez nunca se saiba se o amor à palavra mereceu o impressionante esforço, ou se habitou apenas a imaginação de quem criou a estória e daqueles que a repetem há cinco séculos. Mas traçada na areia da praia ou na lenda sobre a areia do tempo, a poesia transita em mão dupla na ponte entre os gestos.

Mais atentos à obra do que ao mito, Antonio Cândido e Aderaldo Castelo, em “Presença da Literatura Brasileira”, consideraram Anchieta “exemplo significativo do século XVI, da realização de uma expressão literária que correspondesse às novas condições do homem na paisagem americana”. Na dúvida se este “homem” se tratava do colonizador d’além mar ou do índio que aqui já vivia, o indicativo da primeira opção se dá quando analisada sua “expressão literária”, construída sobre a sólida base latina do jesuíta “zeloso leitor de Virgílio (70 a.C. a 19 a.C.) e Ovídio (43 a.C. a 17 d.C.)”, como definiu Alfredo Bosi, em “História concisa da Literatura Brasileira”.

No Brasil, Anchieta escreveu em português e latim, mas, sobretudo, em castelhano (sua língua materna) e tupi, que adotou a ponto de dedicar-lhe uma de suas mais importantes obras: “Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil”. Em sua composição, ao notar a inexistência dos sons F, L e R entre os índios, ele deduziu que um povo “com tal deficiência em sua fonologia no podia ter nem Fé, nem Leyes, nem Rei”. Conclusão que a professora Marisa Lajolo completou: “contando-se entre os lucros da colonização a Fé que os jesuítas traziam, o Rei trazido pelos portugueses, e as Leis que vinham na bagagem de ambos”.

Em poesia, a obra mais famosa de Anchieta foi “De gestis Mendi de Saa” (“Os feitos de Mem de Sá”), primeiro poema épico das Américas e primeiro escrito no Brasil a ser publicado, que descreve a batalha do nosso terceiro governador geral, na Baía de Guanabara, contra os franceses comandados por Nicolas de Villegagnon, fundador da França Antártica no Rio de Janeiro. Editada em Coimbra, em 1563, a epopéia renascentista veio a público antes de “Os Lusíadas”, que só seria publicado em 1572, mesmo tendo sido concluído por Camões, provavelmente, desde 1556.

Além do já citado “Poema à Virgem”, Anchieta escreveu também outros poemas religiosos, como essas redondilhas dedicadas a Santa Inês, concebidas numa singeleza que, segundo o poeta e tradutor Alexei Bueno, “talvez só tenha vindo a repetir-se em alguns momentos do nosso Romantismo”, três séculos depois:

Cordeirinha linda,

 como folga o povo

porque vossa vinda

lhe dá lume novo.

 

(…)

 

Por isso vos canta,

com prazer, o povo,

porque vossa vinda

lhe dá lume novo.

 

Não é d’Alentejo

este vosso trigo,

mas Jesus amigo

é vosso desejo.

 

(…)

 

Santa padeirinha,

morta com cutelo,

sem nenhum farelo

é vossa farinha.

 

Ela é mezinha

com que sara o povo,

que, com vossa vinda,

terá trigo novo.

 

O pão que amassastes

dentro em vosso peito

é o amor perfeito

com que a Deus amastes.

 

Deste vos fartastes,

deste dais ao povo,

porque deixe o velho

polo trigo novo.

 

Não se vende em praça

este pão de vida,

porque é comida

que se dá de graça.

 

Ó preciosa massa!

Ó que pão tão novo

que, com vossa vinda,

quer Deus dar ao povo!

 

(…)

Fácil vislumbrar a metáfora do lume, do trigo novo, como a novidade da fé cristã diante da nova terra, o Brasil, à densa sombra da selva ainda virgem. Ecoado desta, no lugar do “horror” sentenciado pela prosa inglesa do polonês Joseph Conrad (1857/1924), o espanhol quinhentista tinha ouvidos de escutar, na colônia portuguesa, o rugido de fome espiritual da imensa maioria pagã (os índios), que estudou e compreendeu como poucos europeus do seu tempo.

Talvez não sem motivo, um Chico brasileiro de Holanda, também grande entendedor do povo desta Terra de Santa Cruz, tenha cantado as boas novas no eufemismo de 500 anos depois:

 

A novidade

Quem tem no Brejo da Cruz

É a criançada

Se alimentar de luz

 

(…)

Meio milênio driblado, como um João de Mané, na tabela de Zé a Francisco, de Chico a José, o método antes proposto à conversão ganha contraste em outros versos do jesuíta:

 

Como, vem guerreira

a morte espantosa!

Como vem guerreira

E temerosa!

 

Suas armas são doença,

com que a todos acomete.

Por qualquer lugar se mete,

sem nunca pedir licença.

Tanto que se dá sentença

da morte espantosa.

como vem guerreira

e temerosa!

 

(…)

 

A primeira morte mata

o corpo, com quanto tem.

A segunda, quando vem,

a alma e o corpo rapa.

Co’o o inferno se contrata

a morte espantosa.

Como vem guerreira

E temerosa!

Se antes expõe a oferta aparentemente livre (“quer Deus dar ao povo”), cuja aceitação é sugerida no realce às possibilidades de luz e alimento da fé cristã, nos versos seguintes o autor age como os pastores evangélicos de hoje, protestantes tão odiados e combatidos pelo padre jesuíta. A analogia se dá na prevalência do apelo dramático e, sobretudo, quando o “mal” é ressaltado para se tentar vender o “bem”, não só com a morte terrena pela peste (trazida à América pela cristandade católica e protestante), mas com a danação eterna do inferno, que, na mão inversa a Conrad, tanto horror deve ter causado aos índios.

A Literatura parece confirmar as dúvidas da História sobre Anchieta. Parida no dualismo, na dialética fundamentada pelos gregos antigos, a poesia surge, no Brasil e no mundo, para refletir as contradições do homem de sempre.

 

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