Criada no sentido de divulgar e estimular a Literatura, a Folha Letras foi criada em 2008, circulando de lá para cá todas as sextas-feiras, sempre nas contracapas da Folha Dois. Em março de 2013, surgiu a primeira parceria da página, com a Academia Campista de Letras (ACL), que assumiu no rodízio entre seus imortais a Folha Letras da terceira sexta-feira de cada mês.
Pois a partir de hoje, um dos acadêmicos da ACL e colaborador vivo mais antigo da Folha da Manhã, assumiu a última Folha Letras do mês, como fará em todas as próximas: o historiador, professor, ambientalista, escritor e crítico de cinema Arthur Aristides Soffiati. Quem também passará a bater ponto de maneira fixa no espaço serei eu, a partir da próximo dia 4, quando passarei a assumir toda a primeira sexta-feira do mês, visando aproveitar as postagens sobre poesia feitas todo o domingo neste “Opiniões”.
Abaixo, a estreia hoje de Soffiati, meu capitão, como colaborador fixo agora também da Folha Letras:
Três livros recentes de contos
Por Arthur Soffiati
Sem necessidade de enriquecer currículo e de preparar aula, posso me dar ao luxo de ler o que quero. Sempre pensei que, na condição de professor de história, o cotidiano da sala de aula exigiria de mim cultura geral, mas me enganei. Nem sequer a literatura da minha disciplina era exigida. Esse foi um dos meus desencantos com o magistério.
Sempre gostei de poesia e de prosa de ficção. Atualmente, posso voltar a elas sem preocupação com a burocracia do magistério. Li muito em 2014-15. Destaco hoje três livros de contos: “Cantos profanos”, de Evando Nascimento (São Paulo: Biblioteca Azul, 2014), “Histórias curtas”, de Rubem Fonseca (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015) e “Amar é crime”, de Marcelino Freire (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2015).
Evando Nascimento agrupa seus contos em três partes. Na primeira, figuram “Tentação dos santos”, focalizando a divisão entre os apelos do sexo e a moral cristã. Algo na linha de “Lolita”, de Nabokov, porém mais explícito. O personagem procura justificar a pedofilia lançando a culpa numa menina de 14 anos que julga demoníaca. Em “Babel revisitada”, o autor faz alusão às torres gêmeas e enfoca a arrogância humana. Reflete também sobre construção-destruição da Modernidade. Em “Táxi”, coloca um passageiro narrando conversa mantida com um taxista formado em administração, mas incapaz de escrever bem. A narrativa se torna convincente por partir do passageiro, que sabe escrever. Em “Altamente confidencial”, a narração por um carteiro resulta em bom texto porque o carteiro gosta de ler. Sempre questiono uma narrativa a partir do narrador. É preciso escolher a pessoa que narra, se primeira ou terceira. “Terra à vista” é um conto de ficção científica em que o autor não se sai bem. Transportar-se para o futuro é mais perigoso que para o passado, embora ambos os tempos requeiram pesquisa.
Na segunda parte, o conto “Demo” se empenha em demonstrar que “A Natureza é fundamentalmente má e a Civilização é seu mais acabado produto”. “É hoje!” trata-se de um canto antimoderno, antitecnológico e anti-pós-moderno. Nele, o autor repudia todo rótulo. “Muito prazer” enfoca de um antropófago moderno. Na terceira parte, a narrativa “Curta (metragem)” não é propriamente um conto, mas um conjunto de comentários sobre cidade, patrimônio cultural, inteligência da vida, direito dos índios. É um escrito com posicionamentos do autor, que parece ser ateu, e faz a defesa do ambiente. Ele faz agradecimentos a Sérgio Sant’Anna, que parece inspirar seus contos, e dele recebe bênçãos. Mas livro o deixou-me a desejar algo mais sólido, eu que escrevo apenas como leitor.
O livro de Rubem Fonseca foi considerado pela crítica muito inferior a seus trabalhos anteriores. No fundo, é o mesmo Fonseca com seus temas prediletos. Bons sentimentos em pessoas com práticas cruéis é uma marca registrada de seus livros. Em “A grande arte” (1983), o detetive Mandrake, diante de um homicídio, preocupa-se com um peixe que morre no aquário. Em “Vastas emoções e pensamentos imperfeitos” (1988), o personagem central prefere a companhia de animais peçonhentos à de bandidos. Num conto de “O cobrador” (1979), um assassino profissional sobe o rio Amazonas à procura da vítima que deverá eliminar enquanto observa o desmatamento da floresta e mentalmente critica o governo. Por toda sua produção literária, parece que Rubem Fonseca é mesmo um misantropo moderado.
Os contos de Fonseca descambam para o humor negro e para o surreal. Num deles, um rapaz rico e antirracista pensa em matar racistas, mas se contém. Pensa em pichar muros, mas sempre recua diante da lei. Finalmente, para demonstrar que não tem preconceito racial, casa-se com uma negra e uma índia, tema que foi melhor explorado por Benedicto Monteiro em “A terceira margem”, livro que teve pouca divulgação e que hoje caiu no esquecimento. Nele, a discussão sobre os problemas ambientais da Amazônia mesclam-se com a vida sexual promíscua de um homem simples. Mas não há, em Monteiro, qualquer intenção de panfleto, mesmo caricata, como em Fonseca, que tenta demonstrar que o combate ao preconceito racial acaba também sendo crime.
Narrados na primeira pessoa, os contos de Rubem Fonseca exploram a loucura, o crime castigado com crime, o sexo praticado com uma árvore (segundo o diagnóstico médico, “dendrolatria patológica de terceiro grau”). No conto “Jardim de flores”, um assassino sexual é sensível à beleza das flores. Em “Viver”, o narrador morre, mas continua a narrar. Em “A noviça”, o narrador, sempre na primeira pessoa, declara que “Mulher só gosta de homem triste se ele for muito rico”. Em “Atração”, ele proclama que “Todo marido é um bestalhão. O sujeito que se casa tem que ser um bestalhão”. Em “Hóstias”, o narrador declara: “Eu estava viciado em hóstias, achava um verdadeiro néctar. Às vezes eu a deixava derreter na boca, outras vezes eu a mastigava. Ia à missa só para isso, para comer hóstias”.
No geral, os contos não chocam mais. Rubem Fonseca se mostra muito previsível neste livro. Trata-se do velho Rubem, com contos fracos e alguns bons. Sopesando bem, vejo esse cansaço também em Dalton Trevisan. São autores nonagenários que conquistaram o direito de se repetir, de não mais inovar. Já se tornaram celebridades.
Quanto a Marcelino Freire, autor do aclamado romance “Nossos ossos”, seu livro de contos não me convenceu, sobretudo depois de se ler os contos densos de os contos densos de “O amor das sombras”, de Ronaldo Correia de Brito, de quem falarei oportunamente. Todos os contos do livro são escritos com excesso de rimas perfeitas ou toantes, tipo “tinha/zorbinha/tanguinha”, “mundo/imundo”, “anjo/marmanjo”, “fungos fungando”. Ocasionalmente, dígrafos consonantais soantes. Também pontuação anômala, para criar impressão de vanguarda, como “De. Um. Pouco. De. Carinho”. Malabarismos como estes só se justificam com moderação ou talento. Nem todo escritor é James Joyce.
Alguns contos se salvam, a exemplo de “Mariângela” (drama de uma gorda); “Luta armada” (avô que mata a neta por ter combatido em muitas revoluções); “União civil” (“Escrever é organizar os sentimentos perdidos”; conto em que também o autor reflete sobre a arte do conto: “Ele fica lá, congelado, esperando que algo o acorde…”) e “Após a morte”. O livro originalmente foi publicado pelo coletivo artístico Edith em 2011. Agora, aparece com Marcelino Freire como autor.
Como dizem os franceses, “upa-lá-lá”! Aí está uma ótima e feliz notícia.
Vamos prestigiar o querido Professor e Ambientalista, escritor, crítico, etc.além do Jornalista e Poeta Aluysio Barbosa que já nos encanta também através do Blog também da Folha.
Fico animado com a informação, sabendo que dois ‘experts’ em Cultura nos propiciarão indicações interessantes, particularmente, isto muito me agrada. Parabéns pela iniciativa